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De como a evolução do circo transformou o teatro. Estudo resgata a história de Benjamim de Oliveira, o palhaço negro

Alves, Uelinton Farias – “De como a evolução do circo transformou o teatro. Estudo resgata a história de Benjamim de Oliveira, o palhaço negro”. In: Jornal do Brasil, 05 de abril de 2008.

Se o teatro é a arte da representação ou “o local aonde se vai para ver”, o circo-teatro, por sua vez, não foge muito ao seu legado, na acepção da palavra e na imitação dos seus trejeitos e expressividades, na forma de entretenimento e da teatralidade, na formação do público e no encantamento da platéia. Um e outro fundem-se, na verdade, em função da dramaticidade e da comicidade, sendo o teatro de formação clássica, fundida nas grandes óperas, para uma sociedade de escola, enquanto o circo tem sua origem na população mais humilde, formada na itinerabilidade com que percorria os lugarejos distantes, as feiras das cidades interioranas ou dos burgos de gentes simples.

Caminhos controvertidos
Ao contar a história do circo no Brasil, Erminia Silva percorre um dos caminhos mais controvertidos e polêmicos que os fatos e as ações podem lhe oferecer. Juntando elementos da commedia dell´arte, ela tece os substratos para estabelecer os paralelos dos espetáculos entre o palco e o picadeiro, datando-os desde o século 18. É, sem dúvida, uma proposta ousada, de grande fôlego e arrojo, manifestada pela primeira vez como tese de doutoramento em história pela Universidade Estadual de Campinas, agora publicada no livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil.

Com observância acurada, analisa o papel dos clowns europeus, sua evolução pelo mundo, como já o fizera, em outros tempos, Machado de Assis. Mapeia os conflitos artísticos entre uma dramaturgia e outra, e faz menção ao requerimento irritadiço do consagrado ator João Caetano ao marquês de Olinda, em 1862, solicitando a proibição dos espetáculos circenses nos mesmos dias das récitas do teatro nacional, por ser uma “diversão descomprometida e sem caráter educativo”.

Essas e outras polêmicas vão tomar conta da trajetória do teatro e do circo brasileiros. E como demonstra Ermínia Silva, o circo aproxima-se cada vez mais da dramaturgia teatral, ao passo que o teatro perde fôlego e a própria teatralidade, circunscrita a um círculo de público cada vez mais fechado, elitista e burguês. Já o circo, no entanto, além de agregar tecnologias, como a orquestra de músicos à boca de cena, a abolição da figura do ponto, e, mais para o final do século 19, o cinema e o sistema radiofônico, como o disco e o rádio, mantém, ao mesmo tempo, os ingredientes que lhe marcaram as origens e sobrevida: as apresentações eqüestres, a acrobacia, a ginástica, a mágica, o malabarismo, o palhaço de cara pintada de branco.

Diálogo com a história
Menos para fugir das comparações óbvias, das representações circenses teatralizadas ou pantomímicas que tanto sucesso fizeram nos palcos e picadeiros, e sim para estabelecer a linha divisória, a fronteira limítrofe entre, talvez, o picadeiro e o palco, é que o livro de Ermínia Silva se propõe a ser um diálogo com a história do circo e um diálogo também com a história do teatro, sendo a autora, como se sabe, descendente de pioneiros artistas circenses, a quem haveria razões de sobra para a defesa de um em detrimento do ataque de outro. Pelo contrário, é tudo o que ela não faz.

O palhaço negro
De comunhão com a história do teatro e do circo-teatro, está a história do pioneiro da teatralidade circense entre nós. Trata-se do palhaço, ator, compositor, dramaturgo, produtor e diretor Benjamim de Oliveira. Em vida era considerado o mais perfeito artista de representação popular, ao atuar e criar farsas, peças burlescas e pantomimas, como então chamavam-se as representações desenvolvidas a partir da adaptação para o circo Spinelli de textos consagrados da dramaturgia, como O guarani, de Carlos Gomes e A viúva alegre, de Henri Meilhac.

O livro traça um dos retratos mais apaixonadamente nítidos sobre a história do circo a partir da trajetória de Benjamim de Oliveira, o palhaço negro. Mesmo um cético como Artur Azevedo, cronista respeitado da Gazeta de Notícias e mentor da criação do Teatro Municipal do Rio, assistia com a família ao circo-teatro e se tornara amigo do grande artista circense. Benjamim de Oliveira teve uma carreira inusitada: fugiu com o circo quando criança, pois não suportava ver o pai, um feroz capitão-do-mato, perseguir com crueldade escravos fugidos. No circo, comeu o pão que o diabo amassou. Sua estréia foi das mais traumáticas: vaias e pedradas foram as primeiras oferendas recebidas. Mas, persistente, venceu pelo talento, e, segundo os jornais da época, tornou-se não só “o querido do povo”, mas uma verdadeira celebridade.

Arte menor?
Ao expor, em sua pesquisa, a vida e a obra de Benjamim de Oliveira, Ermínia Silva utiliza como pano de fundo o nascimento do circo, desde seu surgimento na Europa, passando pelos Estados Unidos, e os países da América Latina, como Argentina e o Brasil. No Brasil, pelo que se depreende, o circo encontrou campo fértil, por sua tradição nas feiras livres, nos lugarejos distantes, bem como na ocupação de espaços onde a elite cultural torcia o nariz para comparecer.

Mesmo em cidades como as do Rio de Janeiro, considerada o celeiro da “melhor cultura”, o circo tornou-se a opção das classes pobres e mesmo ricas, ocupando os espaços da nobreza, como o teatro Lírico e o imperial São Pedro de Alcântara.

Guardadas as proporções, é possível dizer que a evolução do circo, ao passo que transformou platéias, atitudes e movimentou a economia, transformou também o teatro, diga-se de passagem, na crise que o assolava desde os seus primórdios.

Os críticos da época viam o circo ou o circo-teatro como “arte menor”, por ser armado em qualquer lugar e ser aceito por um público variado, de origem suburbana e de camadas pobres; enquanto o teatro, que falava a língua de Sarah Bernhardt, e das importantes companhias estrangeiras, preocupava-se em estar sempre à altura dos acontecimentos memoráveis, mas sem apaixonar as grandes multidões.

O trabalho de Ermínia Silva conta histórias pitorescas, sobre palcos e picadeiros. Detalha, como poucos já o fizeram, momentos expressivos da arte de representar debaixo de lonas e tablados. As polêmicas são, naturalmente, inevitáveis.

Entretenimento barato
O circo, ainda hoje, como no passado, assume papel preponderante no entretenimento da população, principalmente por ser mais barato e de certa forma mais democrático: não distingue o público; o agrega. Junto com o teatro, são formadores de belos públicos, com suas diferentes características: representam manifestações populares, modelos artísticos e a grandeza da história cultural de um povo.

Editado pela novata Altana, Circo-teatro… é uma ótima oportunidade para conhecermos a arte circense por dentro e por quem entende, de fato, o que ela representa. Segundo a autora, tem sido a arte mais festejada de todos os tempos, no Brasil e no mundo. A ela tem se associado artistas e intelectuais de todos os matizes.

Tida como arte popular, dentro das generalizações comprometidas pela força do termo, voltada para as “massas mais incultas” da população (e não da sociedade), em contraponto à alta cultura, das artes dramáticas, o circo tem marcado a vida de muitas gerações. Com certeza pensando nisso é que Ermínia Silva resgatou história tão emocionante para os nossos dias.

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