Palhaços sem Fronteiras, a risada como patrimônio da humanidade 1
Algumas experiências pessoais assumem uma dimensão social e coletiva que não poderiam se restringir unicamente à memória individual, o que impediria o acesso de outras pessoas sobre os conhecimentos e conseqüências provenientes desta experiência. Neste sentido, apresentamos o relato da missão humanitária destinada ao Sri Lanka, organizada por Palhaços Sem Fronteiras e coordenada por Médicos Sem Fronteiras. Tivemos como objetivo minimizar os efeitos da catástrofe que afetou o Sri Lanka no final de 2004 através de espetáculos e oficinas circenses em centros educativo-sociais e principalmente nos campos de refugiados.
Desde a fundação das primeiras Organizações não Governamentais (ONGs) 2, além de outras instituições privadas que também se dedicam a ajuda humanitária,observamos que o poder público não é o único capaz de contribuir no processo de reintegração social e cultural de sociedades ou países vítimas de conflitos militares, problemas sócio-econômicos e catástrofes naturais.
Entidades como Médicos Sem Fronteiras 3, Cruz Vermelha, Safe The Children ou Médicos do Mundo, representam atualmente grande parte das possibilidades de assistência aos grupos mais necessitados em quase todas as partes da geografia mundial. Por outro lado, outras organizações com menor infra-estrutura e de ação social mais limitada, como é o caso de Palhaços Sem Fronteiras, compõem um coletivo deentidades e pessoas que levam ajuda humanitária de forma continua e responsável às populações carentes.
Algumas destas organizações dedicam-se à minimização das conseqüências das situações extremas já mencionadas atendendo à população envolvida de forma imediata e buscando solucionar problemas básicos de subsistência como, por exemplo, o tratamento de lesões, doenças infecciosas, surtos generalizados, além de problemas de saneamento básico, habitação, alimentação. A ajuda humanitária normalmente se mantém nas zonas afetadas por um prolongado período de tempo, ou pelo menos é o que deveria ocorrer, buscando a estabilização social, cultural e econômica destas regiões para que possam, num futuro próximo, desenvolverem-se autonomamente. Neste sentido, algumas organizações realizam trabalhos de reconstrução permanente de moradias, dos sistemas de tratamento e saneamento básico, dos sistemas educativos e sociais elementares, da produção alimentos e água, da superação psicológica de traumas e conflitos e, fundamentalmente, do planejamento familiar, político e sócio-econômico.
Foi visando exatamente a segunda parte da ajuda humanitária, um auxílio pósemergencial que deve ser realizado de forma contínua para que os necessitados possam retomar a normalidade de suas vidas uma vez superados os primeiros impactos destas situações-limite, que motivou a criação da ong Palhaços Sem Fronteiras 4 no ano de 1993 em Barcelona , Espanha. Durante os 12 anos de existência, esta organização sem ânimo de lucro vem defendendo o potencial do riso como catalisador do processo de recuperação física e psicológica das pessoas envolvidas nos conflitos. Além disso, tratase de uma organização que pretende divulgar as artes circenses em todas as regiões por onde atua.
Desde sua criação, Palhaços Sem Fronteiras realizou missões humanitárias emdiversos países e regiões como, por exemplo: México, Guinéa Equatorial, Guatemala,Palestina, Croácia, Afeganistão, Brasil, Colômbia, Marrocos, Costa Rica e outrasregiões do Saara Ocidental, desenvolvendo alguns projetos temporários ou pontuais eoutros de caráter permanente em colaboração com entidades e governos locais.
No dia 26 de dezembro de 2004, todo o mundo ficou comovido pelas noticiasque chegavam do sudeste asiático descrevendo as terríveis conseqüências do terremotoe do posterior tsunami que devastou aquela região do planeta. Imediatamente iniciou-seuma série de discussões de planejamento de auxílio à população envolvida,principalmente pensando na superação dos traumas sofridos pelos adultos eespecialmente pelas crianças. Pretendeu-se minimizar o sofrimento destas pessoas como riso e a alegria que o circo, em seus diversos desdobramentos, pode oferecer.
Imediatamente, através de um convênio institucional entre Palhaços SemFronteiras e Médicos Sem Fronteiras foi organizado duas missões de aproximadamente20 dias de duração cada uma, contando com a participação de 12 artistas. Osprofissionais envolvidos dedicaram-se de maneira totalmente voluntária na operação,sem qualquer ajuda de custo ou remuneração.
Missão Sri Lanka: um pequeno grão de areia na a reconstrução da vida de milhares de pessoas
Nossa missão começou no meio de fevereiro ainda em Barcelona com algumasreuniões norteadoras. Planejamos as atividades e coordenamos as ações com a ajuda deMédicos Sem Fronteiras que já estava presente na região desde o dia posterior àtragédia. Anteriormente, passamos por uma série variada e dolorosa de vacinaçõescontras diversas doenças (dengue, febre amarela, tifo, raiva, tétano, malaria), algumasdas quais pensávamos que já estavam erradicadas.
A missão partiu de Barcelona dia 24 de fevereiro. Os dois líderes do grupoviajaram quatro dias antes para realizar todos os preparativos de nossa chegada como a agenda de atividades, o transporte e a alimentação. Chegamos a Colombo, capitalsirilanquesa, no dia 25 de fevereiro depois de passar por Dubai (Emirados Árabes),enfrentando mais de 20 horas de viajem. Com o auxilio de um guia logístico de Médicos Sem Fronteiras, de um motorista e de intérprete local, fomos levado à região ondetrabalhamos a maior parte do tempo. Em resumo, cerca de 17 horas de viajem cruzandotransversalmente todo o país.
Já no estado de Ampara, mais precisamente na cidade de Kalmunai, regiãonordeste e a mais afetada pelo tsunami, nos instalamos numa casa alugada por MédicosSem Fronteiras e que se tornou nosso campo-base entre as inúmeras viagens e atuações que transcorreram nos dias seguintes.
Desde o princípio, a ajuda logística e especialmente a orientação cultural esanitária do grupo de Médicos Sem Fronteiras da Espanha, responsável pela missão, foifundamental para que não ocorresse nenhum problema de saúde com o grupo e para queficássemos tranqüilos no cumprimento de nossos objetivos, realizando o maior númerode apresentações e oficinas possíveis no período de tempo que o projeto abarcava.
Dia a dia acordávamos bem cedo e depois de um breve café da manhãcarregávamos nossa “van”, sempre pontualmente com nosso fiel protetor, guia etradutor Mr. Hatman, com o material do espetáculo e saíamos para a primeira missãomambembe do dia. Normalmente visitávamos dois ou três campos de refugiados ouescolas diariamente (existiam mais de cem somente naquela região). Pedíamos aautorização para os responsáveis do local, embora na maior parte das vezes aapresentação já estava combinada. Montávamos nosso pequeno cenário composto porum tapete, duas caixas de som e dávamos um pequeno toque da maquiagem. Não era ala situación psicológica de las poblaciones de campos de refugiados y zonas de conflicto y exclusión; ysensibilizar nuestra sociedad y promover actitudes solidarias” (www.clowns.org – Consulta: 12-5-05).5preciso chamar a atenção do público que já se encontrava ao nosso redor, aguardandocom curiosidade e ansiedade a atuação daqueles seres estranhos disfarçados de palhaços. A entrevista realizada por René e Fernández (2005: 21) a um dos participantesda primeira missão mostra outros detalhes de nossas operações, além de outrasimpressões pessoais sobre todo o trabalho realizado.
A gratidão do público e das autoridades locais pôde ser percebida facilmenteatravés dos risos e das incansáveis saudações de agradecimento. Isso foi, sem dúvida, aprincipal motivação para que pudéssemos superar as adversidades climatológicas (umcalor de 40 graus) e os poucos recursos e a complexa situação vivida naquele momento.Com este incentivo humano, pudemos realizar muitos espetáculos num breve período detempo sem que nos sentíssemos arrebatados pelo cansaço. Talvez um depoimento queexpressa claramente a importância do trabalho realizado foi o dado pelo diretor de umadas escolas visitadas: “graças a vocês hoje foi o primeiro dia que nossas crianças forampara casa falando de outra coisa que não fosse o medo de que voltasse a acontecer outrotsunami: o único que falavam era sobre nossa atuação”. 5
Nossa estância no Sri Lanka foi uma prova da possibilidade de uma convivênciaharmoniosa entre pessoas, línguas, culturas, religiões e costumes diversos. É realmenteincrível perceber que as diversas mesquitas (maioria na região de Kalmunai), templosbudistas, hinduísta e algumas igrejas católicas e protestantes concorriam lado a lado semqualquer antagonismo ou oposição de forças.
Outro aspecto que gostaríamos de salientar relaciona-se com a questãolingüística. No Brasil, apesar de suas extensas dimensões geográficas, nos comunicamosnuma única língua, em todas latitudes. Países como Sri Lanka revelam uma realidadecompletamente diferente. O língua oficial do Sri Lanka é o “cingalês”, no entanto, naregião de Kalmunai impera o idioma Tâmil. Além disso, muitos habitantes secomunicam em árabe, em hindu ou em inglês. Basta viajar algumas dezenas de kilômetros para perceber outros dialetos e variações destes idiomas que remontam erasmilenares da civilização. Trata-se de um enorme desafio para o governo na organizaçãodos programas de educação e desenvolvimento sociocultural e também para os missioneiros.
Por outro lado, esta região vive há décadas um conflito armado entre a milíciaparamilitar denominada Exército Tâmil e o governo. Esta permanente tensão gerachoques e enfrentamentos graves resultando em vítimas fatais, o que gera controlesfreqüentes do exército federal e esporádicos toques de queda. A pesar do “cessar fogo”declarado por ambas partes por conta da catástrofe, fomos obrigados a permanecer porum dia inteiro em nossa residência, pois na noite anterior ocorreram alguns assassinatosnas cidades que visitávamos. Durante o dia as ruas e estradas não eram seguras e, alémdisso, o exército procedia com controles mais detalhados, sendo muito perigoso odeslocamento de um lugar a outro.
A maioria de nossos espetáculos foi acompanhado de perto por soldadosarmados que faziam à proteção dos centros educativos ou dos campos de refugiados.Talvez a experiência mais marcante foi à chegada de um caminhão com váriasguerrilheiras fortemente armadas denominadas Tigresas Tâmil (uma facção destamilícia formada somente por mulheres). Elas limitaram-se a observar os nossostrabalhos e a oficina que ministrávamos a um grupo de jovens nativos. 6
Também chamou nossa atenção a constante presença de animais, vacas,cachorros, cabras, ovelhas que, segundo nosso guia, “que não tinham dono”. Estesanimais vagavam pelas ruas e estradas alimentando-se dos restos que encontravam. Damesma forma, convivíamos com os mercadores de rua que vendiam carne, peixe ouqualquer coisa que pudesse ser vendida ou trocada. Finalmente observamos o contrasteprojetado nas diversas lojas de jóias, ouro e tecido finos que se alastravam em quasetodas as vilas e cidades que visitamos.
Durante nossa viajem vimos que grande parte das escolas, hospitais, centroscomunitários, casas, barcos e tudo que estava construído na costa foi arrasado pelasduas ondas gigantes. Vimos como uma cultura acostumada a construir a maior parte dasua vida social a beira do mar, fonte de grande parte de sua subsistência através dapesca, foi reduzida a escombros em minutos.
Viajamos mais de 1.000 km ao longo da costa deste país e realmente tudo seencontrava destruído. A imagem mais impressionante observada, se for realmentepossível destacar algo deste terrível panorama, foi um trem com suas linhas férreastotalmente retorcidas no qual, segundo as autoridades e testemunhas, mais 4.000pessoas morreram pois a onda gigante acertou o comboio justamente no momento emque atravessava o local.
Nos últimos dias desta expedição, deslocamo-nos para o sul do país ecolaboramos com outras missões de Médicos Sem Fronteiras da Suíça e da França,momento em que pudemos perceber que a realidade desta região era um pouco distintapois, apresentando-se como uma importante zona turística, estava mais desenvolvida epôde responder mais rapidamente aos problemas mesmo encontrando-se num estado dedestruição bastante semelhante.
Considerações Finais
Em primeiro lugar, gostaríamos de ressaltar que somente através da colaboraçãoinstitucional foi possível realizar este projeto humanitário, uma experiência que deveriainspirar uma reaproximação global entre as ongs e outros tipos de organizaçõesdedicadas ao auxílio humanitário.
Nesta situação extrema percebemos como profissionais de distintasespecialidades (bombeiros, engenheiros, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas,advogados entre outros) atuam sob o refrão “sem fronteiras”, colaborando, cada qual com seu conhecimento específico, por uma causa comum e mais importante quequalquer outro motivo político, burocrático ou social: a solidariedade. Nesta lição observamos que todos podem ajudar com aquilo que sabem fazer, não sendo precisoatuar apenas em situações extremas. É possível colaborar com projetos desta natureza,principalmente porque temos problemas bastante graves em nossa sociedade quepoderiam, seguramente, ser minimizados com a integração dos diversos setores.
Não poderíamos concluir sem mencionar que nas últimas décadas observamos aaparição e a expansão de pequenas associações filantrópicas como, por exemplo, Doutores da Alegria, Doutores do Barulho 7, através das quais palhaços, clowns e outrosartistas (músicos, acrobatas, equilibristas, pintores, escultores, bailarinos) se dedicam aajudar enfermos, pessoas idosas e necessitadas atuando gratuitamente em hospitais,clinicas geriátricas e outros lugares onde o riso e o divertimento poderiam promover amelhora da qualidade de vida destas pessoas. Este tipo de ajuda vem sendo pesquisadaseriamente pela comunidade científica e os dados apontam que se trata de um recursoeficaz na melhora do estado físico e psíquico dos enfermos e que, além disso, permite asuperação das barreiras sociais que impedem o pleno desfrute de uma vida normal.
Gostaríamos de finalizar comentando que, afinal, aquela exótica ilha nãopareceu tão estranha. Tanto os pratos, como a vegetação, o clima e os animais(excetuando-se os elefantes) assemelham-se bastante com algumas regiões brasileiras. Amesma experiência, no entanto, foi bastante diferente para meus companheirosespanhóis. Também é certo que o uso tão intenso de especiarias na preparação dosalimentos, as vestimentas, a música, os costumes e hábitos festivos e cerimoniais e aspráticas religiosas (budismo, islamismo, hinduismo, taoísmo) são totalmente diferentesdas que tínhamos vivenciado anteriormente, contribuindo para o caráter inesquecíveldesta experiência que não poderá jamais ser esquecida.
1. Agradecimento especial ao Prof. Rafael Madureira (Unicamp) pela revisão gramatical e lingüística do texto, a Palhaços Sem Fronteiras por esta incrível oportunidade e também aos meus companheiros de missão Julián, Letícia, Cristina, Marta e Luismi.
2. Uma Organização não Governamental – ONG é um tipo associação voluntária com fins e objetivos definidos por seus integrantes criada independentemente dos governos locais, regionais e nacionais, assim como também dos organismos internacionais (Fontes: Fundação Lealtad http://www.fundacionlealtad.org e Wikipediahttp://es.wikipedia.org/wiki/Ong).
3. Conforme podemos observar na página web oficial (consultada em 28-4-05), Médicos Sin Fronteras(MSF) “es una organización humanitaria internacional fundada en 1971 en Francia de acción médica queaporta su ayuda a poblaciones en situación precaria y a víctimas de catástrofes de origen natural ohumano y de conflictos armados, sin ninguna discriminación por raza, religión o ideología política. Enreconocimiento a su labor humanitaria. MSF recibió el Premio Nóbel de la Paz en 1999.
4. Segundo a página oficial da entidade: “Payasos sin Fronteras es una asociación sin ánimo de lucro, deámbito internacional y de carácter humanitario creada por un colectivo de artistas procedentes del mundode las artes escénicas. Formada por payasos, otros artistas y socios solidarios tiene dos objetivos: mejorar la situación psicológica de las poblaciones de campos de refugiados y zonas de conflicto y exclusión; ysensibilizar nuestra sociedad y promover actitudes solidarias” (www.clowns.org – Consulta: 12-5-05).
5. Cita original em espanhol (René e Fernández, 2005: 21).
6. A Fundação Forut, outra ONG também em missão humanitária nesta área, organizou as condiçõeslogísticas e materiais para que realizássemos um curso de formação em técnicas circenses (malabarismo,clown, acrobacias) destinado a um grupo de 30 jovens. Nossa intenção foi instrumentalizar um grupo detrabalho que desse continuidade ao projeto realizando atividades circenses após nossa partida.
7. Doutores da Alegria foi fundada em 1991 em São Paulo por Wellington Nogueira depois de colaborarem EUA com o pioneiro projeto do Big Apple Circus em Nova York que deu origem a Clown Care Unit.O projeto Médicos do Barulho está em funcionamento em Juiz de Fora desde 1996 com as mesmascaracterísticas dos anteriores. Estas associações brasileiras realizam o mesmo trabalho que outrasentidades internacionais como Die Klown Doktoren (Alemanha), Fundación Doctora Clown (Colômbia),Le Rire Medecin (França) e Somriures Sense Fronteres (Espanha). A maior parte destas instituições sededica a apresentações em hospitais, clínicas e outras entidades sanitárias, especialmente para crianças eidosos. Gradualmente também estão começando a atuar em outros campos como em zonas de alto índicede pobreza ou com problemas sociais significativos.
REFERÊNCIAS:
CLOWN CARE UNIT (EUA) http://www.goodnewsbroadcast.com/clown.html
DIE KLOWN DOKTOREN (Alemanha) http://www.doctor-clowns.de/
DOUTORES DA ALEGRIA www.doutoresdaalegria.org.br