Nesta fase do circo, a acrobacia, a dança, o funambulismo e os intermédios cômicos eram realizados quase na sua totalidade sobre o dorso dos cavalos. Considerado como o “templo do cavalo”, o espetáculo circense, com seus ginetes acrobatas e amazonas, tornou-se grande sucesso de público, além de figurar como tema de romances, poesias e pinturas. Os exercícios alternavam-se entre os volteios chamados “galopes livres” e os da “alta escola”. Nos primeiros, o artista demonstrava suas habilidades tanto no manejo de cavalos em liberdade, galopando sem cavaleiros, como cavalgando com selas ou no cavalo em pêlo. Nos segundos, cavaleiros e amazonas montavam “elegantemente cavalos soberbos treinados com rigorosa precisão”8, diferenciando-se da acrobacia eqüestre por ser realizada apenas por um(a) jóquei, que fazia “diversas evoluções e passos artificiais, ditos de escola”.
Ao aliar as apresentações eqüestres aos artistas ambulantes, Astley não produziu apenas demonstrações de habilidades físicas e da capacidade de adestrar o animal. O modo de produção do espetáculo pressupunha um enredo, uma história com encenação, música e uma quantidade muito grande de cavalos e artistas. Eram chamadas de pantomimas de grande espetáculo. Nesse momento, é importante uma breve introdução sobre a pantomima, que não pode ser vista apenas como uma forma “não falada” de expressão cênica e gestual, pois o mimo muitas vezes falou.10 Robson Corrêa de Camargo, em sua pesquisa, apesar de não ter se proposto a estudar as origens circenses, acaba nos auxiliando quando descreve e analisa a produção da pantomima como um gênero teatral. Mostra que, por seu modo de apresentação não ter no texto a única base de ação, até recentemente foi desconsiderada por certa visão oficial como uma forma de “teatro”. Como texto espetacular, não baseado apenas no escrito, caracterizava-se “por ser uma forma híbrida, amalgamada não apenas do cruzamento dos gêneros diversos, entre os quais se apresentava”, mas porque se destinou, também, à apropriação de culturas distintas.
Na história do teatro a pantomima tem uma larga tradição, tendo sido nos séculos XVII e XVIII um gênero muito em voga na Europa, particularmente nas feiras francesas e teatros ingleses. Nas descrições das atuações dos artistas das feiras desse período encontramos diversas características que estarão presentes nos grupos responsáveis pelo processo de constituição dos circenses, no final do XVIII: apresentavam uma variedade de números, como trapézio, equilíbrio, engolidores de fogo e de espada, ilusionismo, animais treinados, pernas de pau, música, histórias, performance, “tudo misturado e construído ao mesmo tempo”.
Alguns estudos indicam o aumento da produção nos teatros denominados de boulevards, os quais permitem construir um paralelo entre os gêneros encenados nestes teatros e os que estavam sendo produzidos nas pistas e palcos. Dentre aqueles gêneros representados nos teatros de boulevard, dois eram particularmente interessantes para estabelecer a relação entre esta produção e os espetáculos circenses: o vaudeville e o melodrama, que se entrecruzavam no palco. O primeiro era a “comédia musical ou, mais exatamente, a comédia com canções interpoladas, que deve ser incluída entre as predecessoras diretas da opereta”. O segundo, uma forma mista, que compartilhava “com o vaudeville seus acessórios musicais”, mas com outros gêneros, sobretudo com o drama e a peça de exaltação histórica, “seus enredos sérios e freqüentemente trágicos”.
Assim, de todos os modelos apresentados pelo melodrama, o mais importante era a pantomima, que no final do século XVIII era do tipo “pantomimes historiques et romanesques”. Tratavam de “temas mitológicos e dos contos de fadas, como Hércules e Ônfale, A bela adormecida e O máscara de ferro”, e posteriormente também de temas contemporâneos. Essas pantomimas consistem usualmente em agitadas e tempestuosas cenas reunidas à maneira de revista, e “visam à criação de situações em que o elemento misterioso ou milagroso, fantasmas ou espíritos, masmorras e sepulturas, desempenha um papel de destaque. Com o correr do tempo foram inseridos pequenos comentários explicativos e diálogos em cada cena e, desse modo, converteram-se, durante a Revolução, nas curiosas pantomimes dialoguées e, finalmente, no mélodrame à grand spectale, que perde gradualmente seu caráter espetacular e seus elementos musicais para transformar-se na peça de intriga, de fundamental importância na história do teatro do século XIX.” (Arnaldo Hauser – História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 701.
O espetáculo teatral, na sua forma pantomímica ou melodramática, não se constituiu como “unidade” genérica coerente. “O pantomimeiro agia sempre sobre a música, usasse ou não a palavra. O mimo sabia recitar e declamar, assim como mimicar o monólogo cantado pelo coro” (Robson Corrêa de Camargo). É preciso levar em conta que a pantomima sempre foi produzida para uma platéia fundamentalmente oral, em um mundo quase iletrado, e, dessa forma, “fica mais claro o porquê da existência desta cena com predominância de gestos”, e a intensa absorção pela platéia.
“O elemento visual desses espetáculos era dominado pelo pitoresco da decoração, dos truques cênicos e pela misé-en-scène, na qual a alusão ao escatológico, em todos os seus sentidos, era uma constante. Este tipo de espetáculo originado nas feiras, dentro do espírito comercial do ‘deixa fazer, deixa passar’, não buscava uma forma pura, ao contrário, propunha a mistura de gêneros ou um gênero das misturas, de épocas, de tons, com audácia de linguagem, transgressão calculada, utilizando a irreverência cotidiana, os lazzi, as acrobacias, o jogo de palavras, a sátira, os sarcasmos, as ironias e piadas a granel.” (Robson Corrêa de Camargo)
Dentro desse tipo de espetáculo teatral, a assimilação explícita das estruturas dos outros gêneros existentes, como as músicas repetidas de operetas ou das comédias musicais, ou da paródia contínua traziam não apenas a introdução dessas estruturas ou elementos destes outros estilos dramáticos, mas também implicitamente uma crítica aos limites pré-estabelecidos dos gêneros ou
formas teatrais contemporâneos. O teatro da pantomima, mesmo emudecido ou gestual, estará sempre em diálogo.
Quando da introdução do palco e da pista – primeiro por Hughes e depois por Astley –, o espetáculo passou por outra alteração, sob a influência mais presente ainda do teatro de mímica no circo, realizado pelos próprios artistas ambulantes, que também apresentavam habilidades eqüestres. Estes, que já dominavam formas de teatros de variedades e da mímica nas feiras, tinham a capacidade de desenvolver números rápidos, pois o público da rua tinha que ser impactado logo nos primeiros minutos.
Fonte: Erminia Silva – Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Editora Altana, 2007, pp. 38-40