Circo, Educação e a Cena Contemporânea

A segunda metade do século XX foi marcante para o contexto circense enquanto começaram a se intensificar novas experiências que interessaram seja a transmissão das técnicas, que os processos de criação e encenação dos espetáculos.

Com as crescentes dificuldades encontradas pelos circos itinerantes devidas a um conjunto de fatores, entre os quais pode-se destacar a difusão da televisão e do cinema que levou o circo a ter menos público e o fato de que muitos dos filhos de circenses decidiram se dedicar a carreiras diferentes, por volta do final da década de 1970 começaram a se expandir, cada vez mais, as escolas de circo.

Essas escolas, entre as quais ressaltam os nomes da Escola Fratelini na França, e a Escola Piolin, no Brasil, incluíram em seus cursos de técnicas circenses muitos alunos que não eram oriundos de famílias circenses,  mas que provinham, e ainda hoje provém, de contextos diferenciados.

Assim, artistas e diretores ligados às escolas de circo propiciaram a criação de espetáculos que começaram a se distanciar em forma e conteúdo, em muitos casos, dos espetáculos de Circo Moderno. É suficiente pensar nos espetáculos produzidos pela Intrépida Trupe, ou ainda nos espetáculo do Cirque du Soleil.

Esse tipo de produção circense, que é controversamente definida de “novo circo”, popularizou-se rapidamente no cenário mundial, apresentando uma dramaturgia dos espetáculos que nem sempre busca apenas o virtuosismo e, como apontado por Costa (1999), o equilíbrio entre a  tensão e o relaxamento dessa tensão no espectador, mas foca o roteiro do espetáculo no aspecto narrativo que pode se constituir por meio da linguagem circense.

Observa-se, portanto, que aproximações e conflitos surgem e acentuam-se no momento de fazer um paralelo com contexto teatral. Deve-se considerar que se de um lado esses espetáculos se baseiam numa narrativa que se constitui a partir da inter-relação e do diálogo dos recursos cênicos, (luz, musica, cenário, figurino, trabalho do ator), do outro lado, como ressaltado por Bolognesi (2006), esses espetáculos reduzem o transito entre o sublime e o grotesco que caracteriza o espetáculo de Circo Moderno para ir à busca do belo; o caráter narrativo do espetáculo e a utilização de técnicas ilusionistas tendem a levar o público à passividade, minimizando a interação entre público e picadeiro que sempre foi elemento importante sobre o qual se baseia o espetáculo de circo.  Enfim, nota-se que se de um lado atualmente o teatro busca formas anti-ilusionistas e a relação direta do ator com o público, o que se define de “novo circo” está fazendo o caminho contrário.  Paradoxalmente, cria-se uma situação na qual o que é cronologicamente “novo” para o circo, para o teatro é “velho” e vice-versa.

Existe, porém, um segmento da produção artística circense que traz inovações para a cena contemporânea, não a partir da poética e da estética dos espetáculos, mas da própria finalidade do espetáculo que não se fecha no aspecto comercial ligado ao conceito de produto cultural. É esse o caso do Circo Social.

O Circo Social é entendido como o fenômeno onde a arte circense é utilizada como ferramenta pedagógica para a educação, formação e inclusão social. A sua difusão enquanto prática e o número de pessoas interligadas a esse âmbito destacam que este fenômeno está adquirindo importância no mundo inteiro, seja como abrangência da atividade desenvolvida, seja como expressão artística. A presença de redes como a “Rede Circo do Mundo Brasil” ou o programa “Cirque du Monde”, mostram as fortes relações que existem entre instituições que atuam com o Circo Social, e colaboraram para que o desenvolvimento do Circo Social, após aproximadamente duas décadas do seu surgimento, seja consistente e em continua expansão, interessando globalmente contextos diferenciados, mas mantendo pressupostos éticos,  teóricos e práticos semelhantes.

Primeiramente, ressalta do conceito de Circo Social que essa perspectiva de formação e educação relacionada ao exercício da cidadania, interligada com o fazer e a prática circenses, é nova na história do circo; são propostas mudanças que envolvem o modo de organização das instituições promotoras, os agentes envolvidos, a finalidade e o método de transmissão das técnicas, até a concepção do espetáculo.

Os pressupostos dessa finalidade educadora do espetáculo são recentes também no contexto teatral, enquanto visam uma formação e uma educação que se distanciam da intenção de educar o espectador através de uma catarse como no teatro aristotélico, da pretensão de conscientizar o público sobre problemas sociais como no teatro brechtiano e de incentivar o espectador à ação como no Teatro do Oprimido de Boal. A grande diferença está no fato de que o processo educacional e de formação são direcionados primeiramente aos próprios artistas que apresentam o espetáculo ao invés que ao público.

Para sustentar essa afirmação, é suficiente analisar e trazer o exemplo de como o Circo Social atua.

Em relação à organização do Circo Social, pode-se constatar que a quase totalidade das instituições que atuam nesse âmbito são ONG (organizações não governamentais) e associações sem fins lucrativos. Estas por se articulam em um trabalho em rede demonstram claramente a posição ético-política de suas atuações e se diferenciam seja dos circos itinerantes que das escolas de circos profissionalizantes, isso porque, no Circo Social, a prática artística é constantemente interligada com atividades complementares e acompanhamento pedagógico, sendo esta prática parte do processo de formação e não o único fim.

Sobre os agentes envolvidos, o Circo Social se distancia de Circos Itinerantes e de Escolas de Circo profissionalizantes pelo fato de as questões político-pedagógicas envolvidas nas atividades desenvolvidas levarem à participação de Artistas Sociais, estes aqui entendidos como aqueles artistas que operam ativamente através do fazer artístico na busca de transformações na sociedade, e de Instrutores Sociais, os quais são instrutores de circo que tem também uma formação em educadores sociais.

Analisando em nível teórico as atuações do Circo Social observa-se que elas encontram fundamentos no horizonte teórico da arte-educação, ressaltando, de acordo com Barbosa (2005) o enfoque cognitivo da prática artística; nas teorias pedagógicas de Paulo Freire (1980), especialmente no que se refere à ação dialógica, a busca da autonomia do aluno e a busca de temas geradores como pontos de partida para o trabalho pedagógico e artístico desenvolvido. Esses temas geradores se tornam salientes especialmente no momento dos espetáculos. Além de Freire, as bases teóricas de Boal (1987) também se tornam importantes, não no que se refere ao seu método de trabalho, e sim nos princípios que o norteiam. Encontra-se, portanto, que o Circo Social faz um uso político de seu fazer artístico, visa uma transformação social e produz um tipo de arte popular no sentido de se direcionar preferencialmente “aos bairros”, seja em relação aos sujeitos atendidos, que no momento destes se apresentarem ao público.

Ao se desenvolver uma análise do espetáculo de Circo Social ressalta o fim educacional do mesmo e se observa a sua importância no cenário contemporâneo pelas fáceis relações que podem ser encontradas com o horizonte teórico dos estudos da performance. Apesar de todos os espetáculos de circo e de todos os números circenses poderem ser caracterizados como performance, observa-se que, o Circo Social mostra, primeiramente, tanto na dramaturgia que na narrativa do espetáculo, o artista  performer que atua em primeira pessoa, sendo que  geralmente,  trazem para a cena experiências  de vida dos próprios artistas como resultado do trabalho pedagógico desenvolvido. O que é mais realçado, portanto, é que o espetáculo pode ser um produto cultural, mas é em primeiro lugar uma etapa do processo pedagógico. Mostra-se em cena o “corpo-aluno” do artista e, deste modo, tende-se a amenizar discriminações de gênero, classe social e etnia, a partir dos pressupostos éticos, políticos e educacionais sobre os quais o próprio Circo Social se constitui.

Apesar de o Circo Social ter maior visibilidade, uma organização mais consistente e uma difusão mais abrangente em relação às outras áreas artísticas que fazem, semelhantemente, um uso educacional da arte, pode-se considerar que as dinâmicas desenvolvidas pelo Circo Social se  identificam com metodologias utilizadas também por outras instituições que utilizam outras linguagens artísticas com essa finalidade. Pode-se dizer, portanto, que o Circo Social, não apenas traz inovações para a cena circense, mas contribui e faz parte de um fenômeno ainda maior que inclui também as outras áreas artísticas que, na contemporaneidade, coloca em discussão, de forma inovadora, o papel do fazer artístico e do espetáculo como recurso pedagógico, para alcançar transformações da realidade objetiva.


Referências

BARBOSA, Ana Mae.  Arte-Educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005.
BOAL, Augusto.  Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
BOLOGNESI, Mario Fernando. Circo e Teatro: aproximações e conflitos. Revista Sala Preta, São Paulo, ECA/USP, v.6, p. 9-19, 2006.
COSTA, Eliene Benício Amâncio. Saltimbancos urbanos: a influência do circo na renovação do teatro brasileiro nas décadas de 80 e 90. 1999. 718 f. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.
FREIRE, Paulo.  Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.


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