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“O Drama do Circo-Teatro em Sorocaba”: O Encontro de Memes ou o Meme do Encontro?

O presente artigo tem por finalidade traçar uma análise do projeto “O Drama do Circo-Teatro em Sorocaba”, realizado entre 2004 e 2007, em Sorocaba-SP, com a participação dos grupos Manto, de teatro e Guaraciaba, de circo, responsáveis pela encenação do clássico “E o Céu Uniu Dois Corações”, de Antenor Pimenta. Neste artigo, serão enfocadas as relações entre o velho e o novo, à luz dos estudos científicos propostos pelo etólogo Richard Dawkins, batizados por ele mesmo como: Memética. Será esboçado um panorama do circo-teatro, e seu histórico de mutações, no Brasil, relacionando-o à temática antropofágica, até chegar ao referido projeto. Buscar-se-á  impressões acerca da fluência e da influência da Memética, durante o processo de criação do espetáculo, e seus efeitos no produto final.

A Memética de Dawkins

O termo “meme” foi proposto pelo etólogo Richard Dawkins, da Universidade de Oxford, em seu livro, “O Gene Egoísta”, 1976. Neste, o autor afirma: “O darwinismo é uma teoria demasiado ampla para permanecer confinada ao contexto estreito do gene” (DAWKINS:1979, 213), e sugere um novo estudo científico – o da Memética. A palavra “Meme”, usada por Dawkins para designar essa nova entidade, vem de Mimeme, derivada da raiz grega Mímesis (imitação), reduzida a duas sílabas para que soasse parecida com “gene”.

A teoria foi desenvolvida de forma análoga aos estudos genéticos. Os genes são descartados ou conservados pela seleção natural, tendo como único sentido e função replicarem-se, ou seja, criar cópias de si mesmo. A teoria evolucionista de Charles Darwin, até hoje, é a referência mais sólida no estudo da evolução humana. Porém, esta decifrou com maestria os códigos biológicos dos seres, mas não definia claramente de que forma evoluía o mundo das idéias.

Entra em cena a Memética, buscando mapear os princípios que regem a transmissão de cultura. “Quase tudo que é incomum no homem pode ser resumido em uma palavra: “cultura“. (DAWKINS, 1979, p.211).

O meme seria uma unidade replicadora, assim como o gene. Um organismo vivo capaz de reproduzir-se e propagar, de cérebro em cérebro, tudo que é ensinado ou transmitido socialmente. Como um “vírus de idéias”, é passado de uma pessoa para outra, individualmente, ou pelos meios de comunicação de massa, e competem com outros memes para determinar nosso comportamento.

Um exemplo da longevidade que pode alcançar um meme é a religião: Deus é uma idéia viva que vem sendo reproduzida há milênios, de forma geral, sem contestação. Esse meme, ainda que não comprovado cientificamente, adquiriu, através da tradição, status de verdade universal. Mesmo que assumindo formas diferentes, em diferentes sociedades e períodos históricos, a idéia de uma força superior que rege o universo, é sempre a de Deus!  Dawkins (1979, p.37-38) trata da longevidade como uma tendência evolutiva de estabilidade (uma estratégia que os genes e os memes utilizam para permanecer no tempo), ao lado da fecundidade e da fidelidade de cópia. Por outro lado, face à condição pós-moderna em que vivemos, os memes também adquirem características de efemeridade, transitoriedade etc. Os meios de comunicação de massa e a globalização são os grandes responsáveis por essa rotatividade mêmica. A moda e seu teor descartável é um bom exemplo.

A memética é uma ciência que dá seus primeiros passos rumo a uma comprovação e um consenso científico, portanto ainda não se pode chegar a conclusões determinantes. Todavia, a teoria do meme parece encontrar respaldo na pós-modernidade. Cabe explicar que o uso do termo pós-modernidade, nesta pesquisa,   refere-se ao que Harvey (2002) denomina “condição pós-moderna”: o modo como as pessoas sentem e representam para si mesmas o mundo onde vivem. Assim sendo, quando utilizadas expressões relacionadas ao “pós-moderno”, pretende-se apenas falar sobre essa “condição”, e não definir se é uma exacerbação da Modernidade, se é um modismo, ou uma Escola; o termo, por enquanto, é indefinível. Esse homem “pós-moderno” é uma máquina capacitada a conservar fortes memes tradicionais coexistindo em harmonia com os “memes novos”, superficiais e efêmeros.

Tradição e Ruptura

“O circo não morre nem morrerá nunca, porque é tradição e estas não morrem jamais”.
Antolim Garcia (Circo Garcia)

O Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, na década de 20, já profetizava, no Movimento Modernista, o homem pós-moderno. Talvez o traço mais marcante de brasilidade seja mesmo a característica antropofágica, de deglutir outras culturas, transformando-as em um produto híbrido e brasileiro. Nosso país é um laboratório, onde a fusão memética pode ser comprovada pela miscigenação, pelo multiculturalismo e pelo sincretismo religioso. Esse fato é evidente em toda manifestação cultural brasileira, seja no cinema, na música e, também, no circo-teatro, objeto de estudo do presente artigo.

O circo-teatro é uma manifestação cultural genuinamente brasileira. As fontes mais seguras atribuem a paternidade do circo-teatro a Benjamim de Oliveira, o primeiro palhaço negro do Brasil, que, em 1918, propôs a estruturação do gênero. Essa migração do teatro para o circo (e vice-versa) já vinha se esboçando de forma mêmica. Benjamim de Oliveira captou a necessidade de organizar essas idéias dispersas, e juntá-las em um projeto único, coeso e ordenado, como um sistema. A essa “operação”, Benjamim denominou: circo-teatro. E o vírus se propagou.

A trajetória do gênero através dos tempos é feita de sucessivas rupturas, que se fundem com princípios tradicionais. Os números exclusivamente circenses permaneceram inalterados; mudam alguns detalhes estéticos, mas a matriz é um “meme forte” (como o de Deus). Com novas roupagens, acrobatas, malabaristas, palhaços, continuam exercendo as mesmas funções desde o surgimento do circo como o conhecemos, até hoje. Mas agora, pós Benjamim de Oliveira, o espetáculo se divide em dois blocos: no primeiro são demonstradas habilidades circenses variadas; no segundo, é apresentada uma peça teatral.

De início, os artistas do picadeiro se faziam atores improvisados. Com o decorrer do tempo, tornou-se necessário um aprimoramento, um cuidado maior com o cenário, figurino, interpretação. Os textos nasciam da leitura de clássicos, como Shakespeare, ou romances franceses, adaptados para os Melodramas, de forma bem simples, sem uma preocupação maior com a fidelidade à essência do tema, às técnicas teatrais ou à receptividade do público. Na verdade, essa adaptação “simplória”, era intencional. Visava atender a um público com praticamente nenhum conhecimento teatral. Do mesmo modo, os encenadores não tinham nem experiência em teatro, nem tampouco conheciam os clássicos. O que, teoricamente, soaria muito improvável, ao contrário, caiu como uma luva, no gosto popular. Foi um meme plantado em terreno fértil. A popularização dos clássicos consolidou e disseminou o meme do circo-teatro, no país, a partir do início do século XX.

Com o passar do tempo, paralelamente às mudanças ocorridas na sociedade brasileira, o circo-teatro também vai se remodelando tematicamente. Em lugar dos clássicos, na década de 30, surge uma segunda geração do circo-teatro. Os adaptadores de obras de outros autores, agora passam a escrever textos próprios, criando uma dramaturgia original, com um estilo de linguagem próprio: O melodrama circense. Essa é a fase mais importante do circo-teatro, que agora adquire maturidade, possui identidade própria.

Mas, em uma época na qual a sociedade começa a diversificar seus interesses, o gênero circo-teatro também se vê na necessidade de diversificar. Isso gera novas rupturas e obriga as trupes a incorporar novos memes trazidos pela modernidade. O circo-teatro assume o seu caráter antropofágico.

Nesse momento, o circo-teatro encontrava-se em uma fase muito rica. Havia temas múltiplos, utilizados como base para a encenação: sagas bíblicas, épicos, peças originais (específicas), adaptações dos clássicos teatrais, dentre outros, coexistindo e recebendo o mesmo grau de aceitação por parte do público.

O advento do cinema foi outro fator determinante para essa nova fase. As companhias circenses montavam, a seu modo, os grandes lançamentos do cinema mundial, e levavam às pessoas que não tinham acesso às telas, seja por motivo econômico ou social. Cabe lembrar que, nessa época, o cinema era privilégio da burguesia. O mais importante é que o circo-teatro levava esses espetáculos a cidades longínquas, onde não existiam salas de cinema. Muitas cidades do Brasil ainda não as têm.

De forma paradoxal, o circo-teatro foi beneficiado pelo cinema, como também perdeu público para este, no momento em que familiarizou o povo mais simples com a diferente linguagem, desmitificando-a.

Nova ruptura. O gênero precisa, novamente, se adaptar. São transladadas para o circo-teatro, músicas populares da época, dramatizadas no picadeiro. Um bom exemplo é “O Ébrio”, de Vicente Celestino, que fez muito sucesso no rádio, no circo, e até no cinema. É importante se deter nesse episódio, que reafirma um traço pós-moderno, que já é nato no Brasil. Trata-se de um único texto “falado” em três linguagens diferentes. Um meme original, que se replica em novos memes, não menos originais.

Assim como o circo-teatro vinha procurando aglutinar e disseminar seus memes, outros segmentos artísticos também perceberam a urgência em fazê-lo. As novidades e o avanço tecnológico foram prevalecendo. O circo-teatro, enfraquecido, busca novas alternativas.

Em uma terceira geração do circo-teatro, a partir do final da década de 50, várias crises financeiras – que tiveram seu auge nas décadas de 60 e 70 – fizeram com que o circo-teatro fosse perdendo bons atores para a televisão, ou pelas mudanças no perfil e gosto do público. Muitas companhias decidiram suspender a parte teatral, voltando a investir no circo tradicional. Alguns atores desses circos acabaram comprando o material cênico e os figurinos de suas antigas companhias, fundando circos destinados quase exclusivamente às encenações teatrais. São os famosos cirquinhos, existentes até hoje, onde, pela falta de dinheiro para contratar profissionais do circo, e a falta de habilidade para executarem os números acrobáticos, apresentam uma primeira parte reduzida a uns três ou quatro números circenses muito simples, e uma segunda parte com uma peça, baseada nos dramas tradicionais ou chanchadas.

Na década de 70, para incrementar os espetáculos, os circos passam a contratar shows de cantores populares, como é o caso de Roberto Carlos, Chitãozinho e Chororó, e esses shows acabam se tornando as principais atrações dos cirquinhos. O circo-teatro acaba sendo relegado a uma condição socialmente “menor”. Fixa residência no interior, e lá permanece até seu quase desaparecimento.

A trajetória do circo-teatro brasileiro ilustra muito bem o quanto os memes podem ser maleáveis, recicláveis, descartáveis, ou seja, mutantes. Até mesmo os memes resilientes dos mitos, usam da metamorfose como forma de sobrevivência. O meme do circo-teatro, não pretendendo a patente de Deus, de metamorfose em metamorfose, mantém-se, ainda, como organismo vivo, mais como memória, que como corpo ativo; e busca uma brecha, em meio à era dos excessos.

Memes Circenses

Maio de 2004. Um grupo formado por jovens atores (Grupo Manto) encontra-se com uma “veterana” família circense (Família Guaraciaba), para – em uma parceria inédita – através do projeto “O Drama do Circo-Teatro em Sorocaba”, reviver os tempos áureos do circo-teatro.

Lançaremos um olhar mais critico, direcionado ao período que precede a estréia do espetáculo, quando do encontro propriamente dito. O encontro de gerações, de experiências distintas e, principalmente, de idéias diversas.

A primeira dificuldade detectada no trabalho foi o confronto de memes: Guaraciaba X Manto. O estopim foi o texto. Enquanto o Grupo Manto pretendia fazer uma transcriação da obra original, a Família Guaraciaba não abria mão de montar “E o Céu Uniu Dois Corações”, na íntegra, sem pôr nem tirar uma única vírgula redigida por Antenor Pimenta, seu autor. Enquanto os atores visavam uma apresentação bucólica, em memória ao circo-teatro, os circenses entendiam o projeto como uma retomada das atividades profissionais, tal qual exerciam anteriormente.

A Família Guaraciaba mantinha o meme do circo-teatro, gravado em suas personalidades. Através da citação de Hudi Rocha: ”Já está tudo no sangue!”, o circense veterano, apresenta-nos uma configuração memética muito forte. Realmente um meme alimentado por muitas décadas age mesmo, de forma análoga, como combustível na corrente sangüínea. Esse meme (fecundado culturalmente, de geração em geração), era tão arraigado em seus corpos, que formava uma barreira contra o novo.

Por outro lado, nós, atores “pós-modernos”, acostumados a transitar de meme em meme, sentíamos dificuldade em assimilar suas técnicas dramatúrgicas, sua recusa aos ensaios. Víamo-nos despreparados para deglutir um “meme forte”.

Estava estabelecida uma situação de conflito. A partir dela, precisava-se chegar a uma solução. Então ocorreu um processo de aceitação. Concordando, ou não, com o meme do próximo, fazia-se necessário ceder, em prol de um bem comum.

Uma vez estabelecida a harmonia entre os grupos, o espetáculo aconteceu. A bem da verdade, com um aspecto dúbio, não ocorrendo a – ingenuamente pretendida- fusão dos memes da tradição e da ruptura.

A Família Guaraciaba (1946)[1] representou, no palco, segundo sua tradição. O Grupo Manto, por sua vez, permaneceu fiel aos seus referenciais. Em uma análise posterior, porém, pode-se avaliar que ambas as partes foram infectadas, de algum modo, com memes alheios; estes replicados e retransmitidos, dando continuidade ao seu ciclo. Em alguns corpos, a “infecção” foi indelével, mas noutros a unidade mêmica, literalmente, “colou”, como diria Dawkins. Alguns dos componentes do projeto acolheram memes que, definitivamente, irão fazer parte do seu repertório de memes. Salvo as devidas proporções, nestes, o vírus também passa a “habitar a corrente sangüínea”. Este artigo é prova disto!

O projeto culminou em um grande sucesso de público e crítica. O que parecia ser o maior problema – a não homogeneidade dos memes – veio a se tornar o ponto alto do produto final, que se constituiu num belo mosaico de técnicas distintas, comprovando a nossa – já referida – natureza antropofágica, onde um meme X, respeitando o espaço de um meme Y, é capaz de produzir um significativo quadro pós-moderno. O novo não precisa, necessariamente, derrubar o velho; se houver consenso mútuo quanto a espaço e aceitação, criar-se-á um novo meme: X+Y=Z.


O Circo-Teatro Guaraciaba, foi inaugurado em 26 de junho de 1946, no bairro Jaçanã, em São Paulo.Seus fundadores foram Antonio Malhone ( famoso palhaço Pirulito) e Adalberto Fernandes.  A Família Guaraciaba permaneceu em atividade até a de 80.


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