No picadeiro, menines, meninos e meninas vestem rosa

Existem pequenas ações que realizamos e apenas depois entendemos a relevância, a inspiração e as possibilidades de futuro que criamos com elas em nosso fazer artístico. Tenho me aprofundado cada vez mais nas pautas de ações afirmativas e da comunidade LGBTQIAPN+ como um espaço de luta e resistência. Essa resistência nos mantém vivxs dentro da sociedade brasileira que constantemente tenta retroceder nas conquistas de corpos que não se encaixam em padrões normativos.

Eu, como bicha, gay, palhaçe não-binárie, cresci sem referências que me representassem ou lugares onde pudesse me expressar e compartilhar minhas inquietações. Quando você é uma criança que não se encaixa nos espaços estruturados para a população heteronormativa, o que sobra é a solidão. Essa solidão permeia toda a infância e adolescência e, às vezes, só na vida adulta encontramos amigxs que serão a base de afeto para toda a vida.

E onde o circo entra nisso tudo? O que essa introdução tem a ver com o circo? O que o circo tem a ver com a solidão de meninos, meninas e menines na infância? Tem tudo a ver. Quando você pergunta a uma criança o que ela quer ser quando crescer, todas as respostas estão conectadas às suas referências, ao que lhe foi apresentado durante seu tempo de existência neste planeta. Todo o imaginário apresentado para as crianças, heróis e heroínas na mídia, é produzido dentro de um mundo hétero e dividido entre homens e mulheres, excluindo toda a diversidade de gênero e sexualidade.

Há mais de 15 anos, faço um número de palhaço de bailarina. Estudei balé clássico por um bom tempo na minha vida. Quando comecei a trabalhar e estudar palhaçaria, o balé e a dança se distanciaram um pouco da minha vida. Em 2005, durante uma oficina com o mestre da palhaçaria Leris Colombaione ele questionou por que eu não usava minha flexibilidade e meu corpo quando estava de palhaço. Mas, quando você faz parte da comunidade LGBTQIAPN+, e, por isso, é coibido a vida toda de se expressar, de se destacar, isso não é dado a você. Depois disso, criei uma cena na qual entrava saltando, girando, fazendo as acrobacias que ele ensinava em seu curso. Percebi que as pessoas ficaram espantadas. Foi assim que surgiu o número da bailarina, que já apresentei em vários estados do país e em festivais. Com o tempo, parei de fazê-lo, por ser um corpo em conflito, por ser um/uma. Hoje, faço esse número no Cabaré Cyrklos, da Cia tempo. Minha indumentária é um collant rosa, meia-calça rosa, sapatilha de ponta rosa, tiara rosa e um tutu rosa. É nesse mundo rosa que realizo a coreografia, ao som de uma música. Essa roupa é comum para turmas de crianças ou adultas do sexo feminino, como se o rosa determinasse o gênero, mas todas as cores e todos os gêneros pertencem a todas as pessoas. Construir outras representatividades para o público nos faz encontrar o lugar da diversidade, da equidade. Uma sociedade não tem uma historia única, existe uma diversidade de corpos e corpas; quando limita uma cor há um determinado grupo, estamos limitando a sociedade e todas as possibilidades de existência.

Ronaldo Aguiar

Setembro de 2024

O que me inspirou a escrever estas palavras foi justamente a apresentação desse número durante um circuito de artes em uma cidade do interior de São Paulo. Além do número da bailarina, apresento todo o cabaré com várias entradas e saídas. Uso um paletó todo florido. Essas entradas servem como aquecimento para o meu número da bailarina, que é o penúltimo do Cabaré. Observo o público, percebendo quem está se divertindo mais, quem está mais fechado. Isso é muito comum no universo da palhaçaria. Percebi uma criança encantada, olhando para minhas roupas coloridas, rindo. Era um menino, e seu encantamento era perceptível. Quando entro com o número da bailarina, a plateia sempre ri, mas no meio havia uma menina que olhou para mim e disse: “Você está feio!”. Acredito que, para ela, ver um corpo masculino vestido de rosa e saia deve causar estranhamento, porque tudo que não é heteronormativo é excluído da sociedade. A menina repetiu a frase: “Você está feio!”. Lembram do menino que ficou encantado com minha presença? Ele gritou: “Não, você está lindo!”. Ele repetiu várias vezes que eu estava lindo, como se estivesse vendo algo ali que o representava naquele momento. A plateia se dividiu nesse embate entre as palavras feio e bonito. Finalizei a discussão com meu número, no qual realizo movimentos coreografados e dançados de forma cômica, e em que, no final, caio no chão fazendo o espacate. Nesse momento vieram os aplausos e o grito do menino novamente: “Você está lindo!”.

Nesse dia, o número teve outro significado. O grito daquela criança era um grito de representatividade. Ela encontrou um par naquele dia. Desejo que ela tenha força para superar todos os obstáculos que surgirem no futuro. Sobre a criança que gritou “feio”, ela não é homofóbica. Nenhuma criança nasce racista, homofóbica, elitista. Mas se os adultos têm esses comportamentos na sua frente, isso será refletido em suas vivências, pois um dos primeiros passos da aprendizagem é copiar os adultos que estão ao seu redor. Se o adulto é racista, homofóbico, transfóbico, elitista e xenofóbico, as crianças irão copiar esses comportamentos.

O número da bailarina ganhou novo fôlego e força após essa apresentação para encontrar o público de adultos e crianças. Que a diversidade esteja presente em todos os palcos, ruas e picadeiros.

Até o próximo texto!

Obrigade! 

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