O espetáculo extraordinário de Lurline

Lurline nasceu em Boston, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos da América. Desde muito pequena mostrou grande à vontade na água, tornando-se uma nadadora distinta. Treinava-se na praia, realizando exercícios que eram, por vezes, demasiado arrojados e que preocupavam os seus pais e familiares. Contudo, as pessoas começaram a apreciar as suas qualidades e a jovem Lurline decidiu apresentar os seus exercícios, dentro de um aquário, em Nova Iorque. Foi um sucesso enorme, recebendo a artista uma ovação estrondosa.

Lurline estava pronta para iniciar a sua carreira artística. Trabalhou em Filadélfia e São Francisco, onde obteve grande sucesso. Depois, aventurou-se pela Europa, tendo o seu trabalho sido apresentado em Paris, Lyon, Marselha, Berlim, Viena, Madrid e Barcelona, onde foi também muito apreciado.

Em Portugal, o sucesso de Lurline chegava pelos periódicos estrangeiros, entusiasmando o público lisboeta que gostava de novidades artísticas. Foi o empresário espanhol Molina que fez tudo para a conseguir contratar, para realizar uma temporada de espetáculos nos Recreios Whyttoine. Este empresário era considerado muito ativo, pois contratava tudo o que lhe pudesse garantir um bom lucro1.

A vinda de Lurline a Lisboa começou a ser noticiada no início de outubro, na imprensa lisboeta e também com a colocação de cartazes em vários locais da cidade. O periódico “Jornal da Noite” salientava a qualidade do trabalho realizado pela artista e, sobretudo, a novidade da sua apresentação2. Contudo, Lurline demorou ainda alguns dias a chegar à capital, onde ficaria instalada no Hotel Central.

Já em Lisboa, Lurline começou a aparecer nos Recreios Whyttoine, mas nos camarotes, assistindo aos espetáculos. O público continuava ansioso por ver o novo espetáculo, mas já se retirava dos Recreios Whyttoine satisfeito por ver que a artista já estava na capital.

Após alguns dias, começaram a ser colocados na cidade os cartazes de propaganda à estreia de Lurline, denominada também Rainha das Águas ou Mulher-Peixe. Iniciou-se a corrida aos bilhetes. Rapidamente os lugares dos Recreios Whyttoine ficaram preenchidos3.

No dia 13 de outubro, véspera da sua estreia, o periódico “Jornal da Noite” salientava que o público lisboeta estava ansioso por ver novidades e que Lurline apresentava trabalhos nunca vistos em Lisboa. Assim dizia o periódico:

«Temos visto gymnastas, acrobatas, actores, prestidigitadores, nigromantes, espiritas, tudo em fim, só nos faltava uma artista aquatica»4.

O aquário onde Lurline atuava era quadrilátero de dois metros e meio de comprimento, um metro de largura e um metro e meio de altura. O lado posterior, os dois extremos e o fundo eram de ferro. O lado que dava frente ao espetador era formado por dois ou três cristais, ligados por meio de delgadas molduras de ferro. A parte superior era descoberta.

O uniforme de Lurline estava ajustado perfeitamente ao seu corpo, feito de um tecido metálico que imitava as escamas de peixe.

Para dar mais realce à sua atuação, o teatro era iluminado a luz elétrica. A luz, refletida nos cristais do aquário, produzia mais transparência na água e permitia ao espetador observar os pormenores dos movimentos da artista5.

No dia 14 de novembro, perante uma grande assistência, o espetáculo nos Recreios Whyttoine iniciou-se com a ópera. Para o público, a ópera não era o foco principal. Todos queriam ver a afamada Lurline. No primeiro intervalo, não surgiu a artista em palco, tendo circulado na sala que o aquário estava roto. No segundo intervalo, o público estava cada vez mais ansioso. Novos rumores surgiram dizendo que o aquário tinha sido consertado, mas que a água estava a aquecer. Finalmente terminou a ópera. Começou a tocar a orquestra e a aparecer a luz elétrica. No palco, estava o aquário colocado ao centro, ladeado por dois indivíduos vestidos de marujo. Depois surgiu Lurline, uma figura elegante, com os cabelos soltos e os braços e o colo nus. Subiu para o aquário e atirou-se para a água. Começou a movimentar-se e a água saltou para fora do aquário. Debaixo de água, nadou de um para o outro lado e depois saiu para respirar. Pediu uma faca e uma maçã, mergulhou e sentou-se no fundo do aquário. Descascou a maçã durante um minuto e voltou à superfície para respirar. Voltou a sentar-se no fundo do aquário e bebeu leite de uma garrafa. O público estava admirado com a atuação de Lurline, tendo aplaudido freneticamente.

Lurline continuou a sua atuação, tendo submergido, ajoelhando-se para rezar. Depois, deitou-se e fingiu que dormia, acordou e voltou a ajoelhar-se. Terminou voltando à superfície. Neste processo a artista esteve dois minutos e trinta e cinco segundos sem respirar.

Voltou a submergir e escreveu numa pedra as palavras Viva Lisboa e Lurline. Seguidamente, passou por baixo de um pequeno arco. Terminou os seus trabalhos colocando uma cadeira no fundo do aquário e nadou por entre as suas costas, pés e travessas. Este trabalho final valeu-lhe uma calorosa ovação do público.

Lurline foi chamada ao palco por cinco vezes, perante um público entusiasmado por ter visto um trabalho nunca apresentado em Lisboa6.

A estreia de Lurline foi um sucesso. Embora prevenido da dificuldade dos exercícios apresentados, o público não conseguiu conter a sua admiração perante aquele surpreendente espetáculo. Os mais acostumados à natação, e eram muitos os que estiveram presentes, ficaram admiradíssimos pelo tempo que a artista se conservou debaixo de água.

Depois do espetáculo, o cônsul americano e alguns cavalheiros ingleses ofereceram a Lurline uma ceia no Matta7, a qual terminou depois das quatro horas da manhã.

Antes do espetáculo do dia seguinte, foi necessário filtrar a água do aquário, para não aparecer turva como na véspera. Desta forma, os espetadores conseguiam ver melhor os exercícios realizados por Lurline.

Durante a tarde, no jardim dos Recreios Whyttoine, o público poderia ver o fato da artista a enxugar e perceber que não tinha forro de borracha. Podia ainda ver o aquário onde Lurline realizava os seus exercícios8.

Após a primeira semana de atuações, Lurline continuava a chamar muito público aos Recreios Whyttoine. Os camarotes esgotavam-se sempre na véspera, bem como as cadeiras até à quinta fila9.

No início de dezembro, o rei D. Luís, a rainha D. Maria Pia, D. Fernando, infante D. Augusto e a condessa de Edla estiveram presentes no espetáculo, aplaudindo os artistas da companhia cómica e, sobretudo, Lurline. Também as principais famílias da distinta sociedade lisboeta estiveram presentes10.

Lurline continuava a agradar bastante ao público que frequentava os Recreios Whyttoine. No dia 6, estava programado o espetáculo em seu benefício11. Por isso, Lurline deslocou-se ao Paço para convidar a família real a assistir ao espetáculo, que teria exercícios novos12.

O periódico “O Occidente” revelou, em 1882, a história que Lurline contou à imprensa francesa sobre a sua estadia em Portugal e, sobretudo, o primeiro contacto que teve com a família real. O periódico considerava que a história excedia «muito as celebres viagens maravilhosas de Julio Verne».

Lurline disse que quando chegou a Portugal, o rei pretendeu conhecê-la, tendo-lhe enviado um convite para se deslocar ao Paço. Deslocou-se sozinha, tendo entregado o convite ao porteiro. Este levou-a para uma grande sala vermelha onde estava sentado um «homenzinho» loiro a escrever numa mesa. Quando se apercebeu que tinha entrado uma mulher na sala, o «homenzinho» perguntou-lhe se a podia ajudar. Lurline disse que vinha ver o rei. Este disse-lhe que era a pessoa que procurava. Depois disso, ambos ficaram a conversar mais de uma hora. Lurline referiu que o rei falava fluentemente o inglês e que a convidou para almoçar.

Ao almoço juntaram-se mais alguns elementos da família real. Como não a tinham visto ainda atuar, Lurline mandou buscar o seu aquário, onde realizou alguns dos seus exercícios. Todos estavam maravilhados com os seus trabalhos. Quando saiu do aquário, o rei abraçou-a toda encharcada e deu-lhe um anel de brilhantes13.

Os três últimos espetáculos de Lurline nos Recreios Whyttoine foram imensamente concorridos. O seu contrato terminou no dia 10 de dezembro, tendo a direção procurado prolongá-lo. Contudo, Lurline teve de recusar, porque já tinha compromissos para realizar alguns espetáculos no Porto e em Coimbra. A direção conseguiu apenas que Lurline realizasse, até ao dia 16, alguns espetáculos no Circo de Price14.

No dia 12 de dezembro, Lurline realizou o seu primeiro espetáculo no afamado espaço. A concorrência foi enorme, esgotando a lotação do recinto. A colocação do aquário foi muito bem pensada, pois os trabalhos eram vistos perfeitamente por todo o público. No final da atuação, o entusiasmo do público foi grande. No dia seguinte, estava previsto para o mesmo local a realização do último espetáculo de Lurline. Por isso, a procura de bilhetes para cadeiras e camarotes começou com grande antecedência15.

No dia 15 de dezembro, Lurline enviou ao periódico “Jornal da Noite” uma carta de agradecimento e também de despedida. Assim dizia:

«Grata ás innumeras provas de benevolencia que V. me dispensou durante a minha permanencia n’esta formoza cidade, ouso esperar que V. me conceda a fineza de ser interprete da minha inalteravel gratidão para com o illustrado publico lisbonense, e com a direcção dos Recreios Whyttoine de quem me despeço saudosa, mas confiada em que em breve possa novamente reiterar a minha gratidão»16.

Lurline deixou Lisboa no dia 17 de dezembro e partiu para o Porto, para trabalhar no Teatro Príncipe Real. A sua estreia trouxe muito público, uma vez que as notícias dos jornais da capital e do estrangeiro deixavam claro que não iria ser iludido. Os jornalistas do Porto consideravam Lurline como um prodígio17.

Lurline trabalhou também no Teatro Baquet, recebendo muitos aplausos. Contudo, o correspondente do “Diario Illustrado” naquela cidade considerava que as suas atuações não tinham nada de extraordinário. Assim escrevia o jornalista:

«Eu conheço, porém aqui um homem que trabalha a bordo dos vapores inglezes, que quando algum objecto cae ao rio, desce ao fundo amarrado, chegando a demorar-se debaixo d’agua 5 minutos, dobro do tempo em que Miss Lurline se conserva no aquario»18.

Do Porto, Lurline partiu no dia 12 de fevereiro para Coimbra, integrando a companhia do Teatro Baquet, que ia realizar alguns espetáculos no Teatro D. Luís I 19.

A vinda de Lurline à cidade dos estudantes era há muito tempo esperada, pois o periódico “O Tribuno Popular”, no final de janeiro, anunciava a atuação da artista, nos dias 5 e 6 de fevereiro.

O periódico descrevia a aparência de Lurline da seguinte forma:

«Imagine-se uma mulher explendida de juventude e de formosura, coberta de perolas e pedrarias, loura e branca como uma fada do norte e como ella atraente e seductora»20.

Salientava também que, na água, Lurline agitava-se, comia, brincava, dormia e seduzia como uma sereia. O desempenho extraordinário que tinha levava a que se pensasse que era uma «descendente perdida na terra» das sereias. Assim dizia:

«o que é certo, é que quando a vemos jovem e formosa em seus exercicios aquaticos na vasta piscina de crystal que pesa cento e tantas arrobas e leva tres pipas d’agua, esquecemos o que ella poderá ser, e sentimo-nos impellidos para ella como na edade media os cavalleiros germanos para as formosas ondinas que á tona d’agua os attrahiam para os lendarios palacios que eram sua morada»21.

Lurline chegou a Coimbra no dia 12 de fevereiro, ficando os seus espetáculos para os dias 13 e 1422. A sua chegada foi noticiada de forma pomposa no periódico “Correspondencia de Coimbra”. Assim dizia:

«Desejada como fructo proibido, chega finalmente, Lurline, a formosa, a nadadora audaz, a rival de Boyton, o espanto do sr. Mesnier, a Rainha das Aguas»23.

Na sua estreia, perante uma grande assistência, Lurline realizou os seus exercícios surpreendentes. O periódico “O Tribuno Popular” descrevia a sua atuação assim:

«É realmente para espantar os formidaveis pulmões, que deve possuir. A agua parece ser o elemento único d’aquelle organismo singular. Miss Lurline fez-se esperar com ansiedade e foi recebida enthusiasticamente. Ella tem os encantos da Fornarina; todos desejavam ser o Raphael. Apenas saltou para dentro da enorme tina cheia d’agua, começou então a brincar com toda a graça. Comeu, dormiu e fez sortes admiraveis de palhaço e até escreveu»24.

Terminado o período de atuação em Coimbra, Lurline regressou a Lisboa, chegando a atuar no dia 2 de março, nos Recreios Whyttoine. Depois a artista partiu para a Europa, onde esperavam novos contratos. Lurline não voltou a trabalhar em Portugal.

 

1 A Arte Dramatica, n.º 19, 1 de dezembro de 1877.
2 Jornal da Noite, n.º 2045, 6 e 7 de outubro de 1877.
3 Jornal da Noite, n.º 2078, 15 e 16 de novembro de 1877.
4 Jornal da Noite, n.º 2076, 13 e 14 de novembro de 1877.
5 Ibdem.

6 Jornal da Noite, n.º 2078, 15 e 16 de novembro de 1877.
7 João da Matta, afamado cozinheiro, foi proprietário de restaurantes e hotéis. Os seus restaurantes eram frequentados pela melhor sociedade lisboeta.
8 Diario Illustrado, n.º 1703, 16 de novembro de 1877.

9 Diario Illustrado, n.º 1709, 22 de novembro de 1877.
10 Diario Illustrado, n.º 1717, 1 de dezembro de 1877.
11 Jornal da Noite, n.º 2093, 4 e 5 de dezembro de 1877.
12 Jornal da Noite, n.º 2095, 5 e 6 de dezembro de 1877.
13 O Occidente, n.º 128, 11 de julho de 1882.
14 Diario Illustrado, n.º 1725, 11 de dezembro de 1877.

15 Jornal da Noite, n.º 2101, 13 e 14 de dezembro de 1877.

16 Jornal da Noite, n.º 2104, 17 e 18 de dezembro de 1877.
17 Jornal da Noite, n.º 2136, 26 e 27 de janeiro de 1878.
18 Diario Illustrado, n.º 1768, 29 de janeiro de 1878.
19 Jornal da Noite, n.º 2152, 15 e 16 de fevereiro de 1878.
20 O Tribuno Popular, n.º 2295, 30 de janeiro de 1878.

21 O Tribuno Popular, n.º 2295, 30 de janeiro de 1878.
22 Correspondencia de Coimbra, n.º 12, 9 de fevereiro de 1878.
23 Correspondencia de Coimbra, n.º 13, 12 de fevereiro de 1878.
24 O Tribuno Popular, n.º 2300, 16 de fevereiro de 1878. Diz-se que Fornarina era a amante do pintor Rafael.

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