Aonde cabe meu corpo?

O circo está presente no imaginário popular como o lugar do risco, do encantamento, dos corpos virtuosos e da beleza. Nos últimos anos têm havido uma luta intensa para que a diversidade dentro do picadeiro seja garantida, apresentando ao público as potencialidades de cada pessoa que se propõe ou trabalha para ser um artista circense.

Neste texto, apresento a você, leitor e leitora desta coluna, Gustavo Ferreira, um homem cis, gay, PCD, que rompe com o lugar estereotipado do circo e atua como palhaço em algumas companhias da cidade de São Paulo. Qual é o limite para o corpo? O que diferencia um corpo dito “normal” de uma pessoa PCD? Quem criou esses muros que estabelecem quem entra ou fica fora do picadeiro?

Um artista que é uma pessoa com deficiência que enfrenta, além dos desafios da profissão, as dificuldades de uma cidade cuja arquitetura não foi pensada para a diversidade de corpos e corpas que existem no mundo, criando um processo diário de exclusão. A arte circense não foge dessa estrutura: o público, em geral, ainda não está habituado a ver uma pessoa PCD como protagonista da ação, sem que haja a construção da figura da vítima ou da dependência.

É nesse contexto que encontramos Gustavo Ferreira, indo na contramão do que a sociedade estabeleceu para ele como espaço. Lembro-me bem de quando o conheci, por volta de 2013 ou 2014. Eu dava aula no FPJ1, um curso de palhaço da instituição Doutores da Alegria. Na época, ele era muito tímido. Minha disciplina envolvia movimentos acrobáticos para palhaços, incluindo cascatas e claques2, para a construção de um repertório físico desse artista circense. Era visível seu esforço para se adequar, mas, com o tempo, ele foi descobrindo seu próprio caminho.

A presença de pessoas com deficiência no circo e em outras expressões artísticas não deveria ser vista como exceção, mas sim como um direito assegurado por lei. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a inviolabilidade do direito à igualdade. Além disso, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/2015) reforça essa proteção ao assegurar a plena participação social das pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais.

O artigo 42 dessa lei é claro ao afirmar que a pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, garantindo o acesso a locais e serviços, bem como o direito de participar como protagonista na produção cultural. Esse dispositivo legal evidencia a necessidade de políticas públicas que democratizem o acesso aos espaços artísticos, incluindo o circo, para que artistas PCDs possam desenvolver seu ofício sem barreiras estruturais ou sociais.

Infelizmente, a realidade ainda está distante desse ideal. A acessibilidade nos espaços culturais é limitada, e a presença de artistas com deficiência muitas vezes é vista como algo extraordinário, e não como parte do natural direito à expressão artística. É urgente que políticas públicas sejam implementadas e fiscalizadas para garantir que o circo, e todas as outras manifestações artísticas, sejam espaços verdadeiramente inclusivos.

As mudanças políticas atuais nos colocam em estado de alerta, especialmente para pessoas com deficiência (PCDs), pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ e pessoas negras. O avanço de grupos radicais que não têm uma reflexão profunda sobre equidade e ações afirmativas representa uma ameaça direta às conquistas sociais obtidas ao longo das últimas décadas. Quando o poder público adota um pensamento conservador e excludente, ele não apenas compromete direitos fundamentais, mas também impede o avanço de políticas públicas que promovem a inclusão, a diversidade e a justiça social.

Um exemplo disso é o atual presidente dos EUA, que utiliza a pauta do conservadorismo para burlar os direitos humanos e minar tudo o que foi conquistado por meio de muita luta. Em vez de fortalecer iniciativas que promovam a equidade e garantam oportunidades para grupos historicamente marginalizados, seu governo favorece políticas retrógradas que reforçam desigualdades estruturais e negam a pluralidade da sociedade. A história já nos mostrou que governos que resistem à inclusão e à reparação social atrasam o desenvolvimento de um país, pois sociedades mais justas e igualitárias são também mais prósperas e inovadoras.

Apresentar o depoimento de Gustavo é trazer resistência e representatividade para contrapor as narrativas conservadoras que buscam excluir tudo o que foge do padrão eurocentrado. Dar voz a essas experiências é fundamental para fortalecer o debate público e reafirmar que a diversidade é um pilar essencial para o progresso social. Afinal, uma sociedade que nega a sua própria pluralidade está fadada ao retrocesso.

Gustavo Ferreira é um exemplo de resistência e inovação dentro do circo. Sua trajetória mostra que a arte não tem limites quando há oportunidades e reconhecimento. No entanto, não basta celebrar essas conquistas individuais: é preciso que a sociedade e o poder público garantam que a inclusão seja a regra, e não a exceção. Afinal, o espetáculo só é completo quando todos podem fazer parte dele.

Depoimento de Gustavo Ferreira:

Meu corpo não estaria no circo:

O circo sempre foi visto como um espaço de maravilhas, com habilidades extraordinárias e performances que desafiam os limites físicos. Mas, por muito tempo, esse ambiente foi também marcado por um padrão de corpos que exclui aqueles que não se enquadram nos moldes da força e da virtuosidade. O homem no picadeiro precisa ser ágil, atlético, capaz de realizar feitos desafiadores. E, como um corpo periférico e com deficiência, nunca caberia nesse ideal.

Aqui começa a questão: como um corpo como o meu pode ocupar um lugar nesses espaços? Como posso ser visto como artista em um cenário que nunca me considerou? Mesmo quando busquei encaixar meu corpo nas expectativas do circo ou do teatro tradicional, percebi que isso não seria possível. Mesmo que eu quisesse me adequar, a estrutura não estava feita para mim.

A sociedade ainda não percebeu que as artes não são pensadas para pessoas com deficiência. O olhar da sociedade não está preparado para ver corpos diferentes, especialmente em posições de protagonismo.

Sempre fui condicionado a tentar “entrar” no que é esperado. A sociedade exige que a arte siga certos padrões: a força física, a perfeição técnica, o corpo normativo. Mas o que acontece quando você não se encaixa nesses padrões? Onde é o seu lugar? A resposta para mim foi buscar uma arte que não me exigisse adequação, mas que me permitisse ser quem sou, subvertendo esses padrões. Foi assim que encontrei um espaço na palhaçaria, um lugar onde a performance se afasta da virtuose física e abraça as vulnerabilidades, a delicadeza e a humanidade.

Foi na palhaçaria feminina que encontrei um dos primeiros espaços onde me vi refletido. A arte da palhaçaria não exige que o corpo seja perfeito, mas sim que ele se torne um instrumento de subversão e resistência. Não é sobre exibir força ou dominar uma técnica, mas sobre abraçar as vulnerabilidades, as fragilidades e fazer delas uma fonte de potência. E, nesse campo, comecei a perceber algo fundamental: a arte não precisa seguir os padrões para ser poderosa. Aqui, entra a conexão com outros universos artísticos que também desafiam as normas estabelecidas: as drag queens3 e os Freak Shows4. Ambos são fontes de subversão, cada um à sua maneira. As drag queens, ao questionarem as normas de gênero e performance, criam novas estéticas que oferecem liberdade de ser e resistência. O Freak Show, por mais que tenha sido um espaço de exploração, foi também um dos primeiros a dar visibilidade a corpos marginalizados, aqueles que a sociedade tenta esconder. Esses espaços de resistência me ensinaram que o corpo não precisa se encaixar em um ideal para ser celebrado. Ele pode ser exatamente o que é – sem desculpas, sem concessões. Nas drag queens e nos Freak Shows, o corpo não é um objeto de curiosidade, mas um sujeito de poder. E é isso que aprendi com a palhaçaria: meu corpo, com todas as suas limitações e particularidades, tem um lugar no palco, não como uma exceção, mas como uma revolução.

“Estranhar-se” é um dos maiores desafios que um artista com deficiência enfrenta. Como Robert McRuer5 argumenta em Crip Theory, a diversidade corporal é uma resistência direta às normas estabelecidas. Meu corpo chega antes de mim no palco, provocando um estranhamento no público. Como Henri Bergson6 escreve em O Riso: “o cômico é, antes de mais nada, algo de mecânico aplicado sobre o vivo”. O que é “mecânico” no meu corpo é a própria expectativa que o público tem sobre ele, mas, ao entrar em cena, essa expectativa se desfaz e o corpo se liberta. O público, ao se estranhar, começa a se abrir para novas possibilidades, novas formas de ver e entender a arte. E é nesse estranhamento que encontro meu lugar. O corpo que chega antes de mim na cena não precisa ser consertado ou “normalizado”. Ele é simplesmente o meu corpo – e ele carrega histórias, dores, lutas e revoluções que fazem dele único. A tensão entre o que é “normal” e o que é “anômalo” abre um espaço para a transformação da cena. Meu corpo, que aos olhos da sociedade seria visto como um obstáculo, se transforma em um campo fértil para questionar as normas e desafiar as expectativas.

O que a palhaçaria, as drag queens e o Freak Show me ensinaram é que a arte não precisa se adequar aos padrões para ser profunda. Ela pode se subverter, quebrar as normas e, ao fazê-lo, tornar-se mais humana, mais sensível. Quando o corpo é visto como um instrumento de resistência, ele deixa de ser uma limitação para se tornar a própria revolução. Na palhaçaria feminina, o riso se torna político. Ele não é apenas uma ferramenta de comicidade, mas uma forma de abrir caminhos para novas possibilidades. Ele permite questionar a normatividade, a invisibilidade, e desafiar o que se espera de um corpo, especialmente de um corpo com deficiência. O riso se transforma em uma forma de resistência, uma forma de existir em um espaço que tradicionalmente não nos quer.

Nunca se esperou que eu estivesse no palco. Nunca se esperou que eu tivesse um lugar na arte. A sociedade nunca quis nos ver como artistas. Mas o que aprendi é que o corpo não precisa se adequar aos padrões para ter valor. Ele tem o direito de existir, de ser o que é, de se expressar sem a necessidade de “normatizar-se”. O palco, como espaço de criação e resistência, é onde questiono essa verdade absoluta que a sociedade tenta impor.

Eu não estaria no circo tradicional, mas encontrei meu lugar na palhaçaria feminina, nas drag queens, nos Freak Shows. Esses espaços não exigem que o corpo se encaixe, mas que ele seja o que ele é. A arte não precisa ser uma busca pela perfeição, mas uma busca pela liberdade. O corpo com deficiência não é uma exceção na arte, mas uma revolução silenciosa que desafia as normas, que propõe uma nova visão sobre o que significa ser, criar, existir. Meu corpo, com todas as suas fragilidades, é a potência da cena. Ele é a resistência, a transformação, a possibilidade de um novo olhar sobre a arte e sobre a vida, pra mim, e depois a quem interessar a viver com esse novo olhar para o mundo.”

Ler o texto do artista e ativista Gustavo Ferreira sobre as barreiras que enfrentou por ser uma pessoa com deficiência no mundo do circo revela, em suas palavras, que é possível existir e encontrar caminhos para exercer seu protagonismo, que é um direito. Acessibilidade não é um favor que pessoas que se classificam como “normais” concedem a corpos dissidentes, mas sim o cumprimento da lei de direitos iguais para todos.

Quando assistimos a um espetáculo que é diverso em sua totalidade — com pessoas de diferentes cores, etnias e corpos — estamos construindo uma sociedade melhor e mais inclusiva. Olhar para pessoas como Gustavo Ferreira é olhar para o futuro. É reconhecer que a presença de corpos diversos nos espaços de arte e cultura amplia o imaginário coletivo e transforma realidades.

No entanto, para que essa inclusão não seja apenas pontual ou simbólica, é fundamental a existência de políticas públicas que garantam o acesso, a permanência e o protagonismo de pessoas com deficiência e de outros grupos historicamente marginalizados em todos os setores da sociedade, especialmente nas artes. Incentivos, financiamento, formação acessível, representatividade e leis que sejam efetivamente aplicadas são pilares indispensáveis para que a diversidade se torne prática cotidiana e não exceção.

A força de uma pessoa como Gustavo move estruturas, rompe silêncios e inspira muitas outras a acreditarem em si, a ocuparem espaços e a reivindicarem seus direitos. Seu exemplo mostra que quando alguém se levanta, outros se reconhecem, se fortalecem e caminham junto. A transformação começa no gesto de um, mas só se sustenta com o compromisso de todos.

Apresento aqui a Minibio do Gustavo Ferreira

Gustavo Ferreira, 30 anos, é um paulistano periférico que reside no Jaraguá, zona noroeste de São Paulo. Coordenador de Cultura no CEU Taipas, onde já foi educador de teatro, é um artista assimétrico e multifacetado, atuando como ator, palhaço, cantor, artista visual, educador e produtor cultural, além de ter um artigo publicado na área de artes visuais. Artista com deficiência, Gustavo utiliza sua arte como um superpoder para romper barreiras e abrir novas possibilidades, defendendo a inclusão e a diversidade enquanto explora as potências e os limites do corpo como espaço de criação e resistência.

1 PFPJ (Programa de Formação em Palhaçarias para Jovens). Voltado para jovens em situação de vulnerabilidade social, curso promovido pela instituição Doutores da Alegria.

2 As cascatas são quedas no chão ou nos aparelhos circenses e as claques são tapas falsos feitos pelos palhaços e palhaças.

3 Uma drag queen (em português: rainha de arrastar ou transformista) é uma pessoa geralmente do sexo masculino que usa roupas e maquiagem para imitar e frequentemente exagerar os significantes do gênero feminino e demais papeis de gêneros para fins de entretenimento e de produção artística. Nos tempos atuais, drag queens costumam ser associadas com pessoas transgénero e transexuais, mas elas podem pertencer a qualquer gênero e identidade sexual.

4 Um show de aberrações (em inglês, freak show), também chamado de show de horrores ou circo dos horrores, consiste na exibição de humanos ou outros animais dotados de algum tipo de anomalia relacionada a mutações genéticas, doença e/ou defeito físico. Tais exibições ocorriam frequentemente em circos e carnavais, especialmente entre os anos de 1840 até 1970. Dentre as atrações mais recorrentes, havia mulheres barbadas, gêmeos xifópagos, casos de gigantismo e nanismo, casos de teratologia etc.

5 Robert McRuer (nascido em 1966) é um teórico americano que contribuiu para campos em estudos transnacionais queer e de deficiência. McRuer é conhecido por ser um dos acadêmicos fundadores envolvidos na formação do campo de estudos de deficiência queer, particularmente para uma perspectiva teórica conhecida como teoria crip . Ele é atualmente professor de inglês na The George Washington University em Washington, DC.

6 Henri Bergson (Paris, 18 de outubro de 1859 — Paris, 4 de janeiro de 1941) foi um filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927.

 

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