Considerações sobre a estética circense – Deadly

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Acima Mariana Duarte e Ricardo Rodrigues. foto: Layza Vasconcelos

Parece que não tenho mais nada o que falar. Mas é que, na verdade, o Circo Mínimo retomou uma agenda maluca de apresentações e temos agora vários espetáculos em repertório. O que muito me agrada ainda que, talvez, entedie alguns leitores…

De qualquer forma, reestreou o “Deadly” (mortal, em inglês) na última semana em São Paulo, no teatro Cacilda Becker.

Deadly é o espetáculo de maior sucesso que eu já fiz. E que o Circo mínimo já fez. Deadly é especial porque alia circo, dança e teatro com raro equilíbrio.
Ele foi criado por mim e pela Deborah Pope, artista circense neozelandesa que vivia em Londres onde a conheci, e onde começamos a trabalhar juntos, e assim seguimos por mais de 10 anos, ainda que cada um morasse no seu país. Ela tem formação em movimento, um pouco de dança e muito circo – era aluna dedicada de um senhor húngaro que morava em Londres, Eugene Basil. Ele dava aulas de acrobacia na sala de estar de sua casa, com tapetes como colchões e uma lonja presa no batente da porta. E era um senhor mestre. Eu, que tenho formação em circo e teatro. E o espetáculo foi dirigido pelo Sandro Borelli, um bailarino e coreógrafo que gosta de teatro-dança.
Assim, criamos um espetáculo sem texto, que partiu dos sete pecados capitais (gula, orgulho, luxúria, ira, avareza, inveja e preguiça) para falar de uma relação a dois, de um casal. O mais interessante do espetáculo é que, exceto a primeira e a última cena, todas tinham muito circo. Só que cada truque era metáfora para alguma coisa, muito distante do próprio circo. Na primeira cena, a gula, os dois atores se lambem como se fossem sorvetes. A segunda, orgulho, é um solo de corda lisa feita pelo homem (hoje o Ricardo Rodrigues), o tempo todo se referindo a quem está acima, na direção do ponto de fixação da corda. Na terceira cena, da luxúria, um double trapézio meio nu (ambos estão topless), como se fosse a preliminar de uma transa. No final, eles caem, rolam, se agarram, e são interrompidos por um telefonema. Na quarta cena, ira, acrobacia e violência, uma briga cheia de idas e vindas. Na quinta, avareza, um número de trapézio em balanço com uma chuva de purpurina dourada. Na inveja, a cena seguinte, o homem tenta se divertir nas cordas lisas e a mulher o derruba dali uma vez depois da outra. E, por fim, a cena da preguiça, onde ele lê jornais e ela dança com uma garrafa de vinho, tentando chamar sua atenção, naturalmente sem sucesso.

Há aspectos técnicos muito interessantes para se entender o sucesso do espetáculo. O número de trapézio em balanço é feito com guias longas, de 7 ou 8 metros, para dar a sensação de leveza; apesar de impossibilitar grandes truques, permite e fortalece a sensação de vôo e liberdade. O Double trapézio, cheio de pegação, carinhos, respiração forte, teve a orientação do diretor para que não fizéssemos jamais pontas de pé ou braços estendidos, o que levaria o espectador ao reino da virtuose do circo, afastando-o da ideia de dois seres humanos iguais ao próprio espectador (a intenção do diretor). Na acrobacia, não deveria haver qualquer movimento terminado, todos deveriam encadear o seguinte, como uma briga de marido e mulher. E assim por diante.

Com isso, o espetáculo só pode ser feito por circenses, não há dúvida. Mas expõe forte conteúdo físico narrativo, ou teatral e de dança.

A regra, aí, é a mesma de quando se quer fazer espetáculos com narrativa, espetáculos desse circo teatro do qual eu falo, ou desse circo contemporâneo pós-moderno que mistura tudo. É preciso poder abrir mão de seu maior truque. Se ficarmos presos ao truque, não contaremos bem a história, não transmitiremos tão bem aquela sensação. A arte está em saber escolher o truque. E, se o repertório do artista é vasto, mais opções se oferecem. O truque é a mola propulsora do espetáculo de circo. Mas não do espetáculo de teatro. No caso do teatro (ou da dança), a mola é a sensação ou a narrativa. Por isso às vezes vemos idéias de números que parecem casar bem com a situação proposta, e com os personagens representados. Mas os truques escolhidos distanciam a apresentação do que se queria dizer. Fazem com que artistas e espectadores se esqueçam do que estavam falando.

É claro que, no Deadly, o tema ajudou: Falar de um relacionamento amoroso faz com que todo mundo se identifique. Todo mundo se identifica.

Ninguém consegue decifrar os pecados capitais. Sem problemas, não era essa a ideia. Mas, talvez por que estes fazem parte da nossa formação católica tão arraigada, é percebido instintivamente, acredito que o conteúdo é absorvido de forma mais eficaz. E aí, a gente sai do teatro com a sensação de uma performance impressionante, pois os atores terminam exaustos, passaram por feitos virtuosos, mas com a impressão de termos presenciado um pedaço da nossa própria vida, de outro jeito.

Com relação ao espaço, a estética é mais “careta” que a do próprio circo. Usamos o palco italiano, onde o espectador assiste de frente, confortavelmente sentado em cadeiras macias, protegido pelo escurinho da sala. A história do teatro diz que esta relação é uma relação autoritária e confortável, onde o espectador não precisa pensar muito. Mas aí, o que temos que buscar são imagens suficientemente contundentes (o que o Deadly consegue, acredito). E, às vezes, quebrar a distância entre o palco e a plateia – em um momento, o ator desce e vai sentar em uma das cadeiras da plateia, pois ele não quer mais participar daquilo. Ela o chama e ele volta, para fazer o que ela quer, ainda que bem irritado. Em outro momento, uma cena intermediária, os dois atores balançam trapézios com refletores pendurados neles, de maneira que a luz da cena toda se mexe, iluminando inclusive a plateia. A luz quebra essa “quarta parede”.

Me lembro que, quando ainda apresentava o espetáculo,a sensação de cansaço físico se misturava à emoção da cena. Os diretores (Sandro e Carla Candiotto, assistente de direção) pediam que não atuássemos, apenas agíssemos, apenas realizássemos a ação. Mas, para uma pessoa sensível, a emoção acaba aflorando. E o cansaço só ressaltava a emoção, que assim parecia mais verdadeira, ainda que tivéssemos apresentado o espetáculo por 10 anos! As maravilhas da cena, em uma boa construção! E só o circo para tirar o fôlego do espectador daquela maneira. Mas isso, esse circo não dá para descrever.

Convido aos que puderem que assistam. Em cena, verão Ricardo Rodrigues e Mariana Duarte. Até o mês passado, quem fez foi a Erica Stoppel, minha ex-parceira de apresentações quando a Deborah não podia (os preços das passagens!). E ela fez muito bonito, com uma força maravilhosa. Foi estranho assistir.

Honestamente, o espetáculo é emocionante. Particularmente prá mim. Acho que, desde então, tento fazer outro parecido…

Obs. “Deadly” está em cartaz no Teatro Cacilda Becker, na rua Tito, 295, Lapa, São Paulo, SP – Telefone: (11) 3864-4513, de sextas a domingos, sextas e sábados às 21h, e domingos às 20h.. Os ingressos custam R$ 10,00 e R$ 5,00 (meia). E fica em cartaz até dia 21 de Fevereiro.

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