Artes na rua. Um toque de graça na rotina da cidade

Quebra-Côco, Rodrigo do Boneco, Palhaço Colorau, Mágico Morgan e Faísca. O elenco de artistas em cartaz na Praça José de Alencar, no Centro de Fortaleza, é mais vasto e diverso, com emboladores e repentistas. E não cessa de variar.

São andarilhos como Faísca, que veio do Norte, e quer nomadizar com a lona de circo que ele próprio constrói, à mão, no quarto de pensão onde mora com a família, pertinho da praça. É ele o moço que coloca 21 facas no nariz, que a cada encontro com o público refaz o número do Chuveiro Maluco, que com seu corpo exíguo atravessa o pequeno círculo com ferros pontiagudos. Faísca e suas crianças, que no dia-a-dia aprendem não só o ofício do pai, mas são uma promessa-em-processo de que o espetáculo vai continuar.

São também artistas que se fixam, entre idas-e-vindas, como Edson Wagner, o Quebra-Côco. Ele utiliza a base de força, vigor e concentração das artes marciais para o show com côcos verdes, correntes e garrafas de vidro. Como o próprio nome afirma, Quebra-Côco amplia nossos modos de usar o fruto tão associado a frescor e ócio nas praias do Nordeste. Seu principal objeto de cena é rasgado, descascado e vôa acionado por uma variedade de truques que se renovam a cada encontro com o público.

Outro dia, saindo do Theatro José de Alencar, o teatrão de 1910 instalado na praça de mesmo nome, procuramos Quebra Côco no seu cenário habitual. A roda estava lá, mas a platéia participava de um modo outro. Todos com olhos voltados para a copa das grandes árvores – a praça é cheia, sobretudo, de centenários oitizeiros. Suspenso, de cabeça para baixo, era assim que Quebra Côco partilhava com a roda seu acervo de achados. A rua é lugar de invenção diária, prática cotidiana que faz da precariedade do nosso principal espaço público um campo de criação, um laboratório para experimentar novas possibilidades de vida. “Tenho que mudar o show sempre”, diz o artista.

Fixos, migrantes, estão incorporados à paisagem e a modificam com suas atuações. Desde o começo dos anos 2000, decidiram estabelecer horários e regras para a ocupação coletiva do espaço. Uma roda de cada vez, uma cena abrindo espaço e oferecendo público para a outra.

Na história mais recente do Centro de Fortaleza, ficaram de fora da cena da Praça José de Alencar, precaria e irregularmente ocupada por uma feira de produtos industriais, que se adensava aos sábados. Mil barracas com estruturas de ferro contribuíram para a degradação da praça e tornaram impossível, por exemplo, o espetáculo do palhaço argentino Chacovachi em outubro de 2008, quando veio a convite do Theatro José de Alencar para o encontro O Riso da Cena, em homenagem aos 80 anos do palhaço Trepinha.

Em janeiro de 2009, atendendo uma solicitação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan e Theatro José de Alencar, depois de encontros informais e audiências com órgãos da Prefeitura de Fortaleza, mediadas pelos ministérios públicos Federal e Estadual, a Praça José de Alencar foi fechada para recuperação do espaço. Canteiros com flores brotando, piso refeito, voltou a receber os artistas de rua.

Em junho último, quando o Governo do Estado do Ceará através da Secult abriu o Ano Cem do Theatro José de Alencar com o Zona de Transição – Encontro Internacional de Artes Cênicas, a praça recebeu atores-bailarinos da companhia francesa La Belle Zanka em pernas-de-pau de mais de três metros de altura. Ainda não contava com iluminação, inaugurada logo depois.

A cada vez que nos constituímos platéia na Praça José de Alencar – ou na avenida Beira-mar, outro endereço no roteiro de artes nas ruas da cidade -, reafirmamos compreensões que o teatro nos deu: fora do coletivo, a vida não vibra; o que existe é o que se passa no encontro com o outro.

É uma construção coletiva a do espaço da cena na rua. Assim como Quebra Côco, o palhaço Colorau demarca com água o espaço da cena. É com água fria em chão quente que se constitui o desenho da roda, também aberta na Praça do Ferreira, no Centro de Fortaleza.

Há milênios sabemos do efêmero na experiência cênica. Sentimos esse lastro na roda de rua feita com água. Ainda que não tivéssemos o calor intenso que a faz evaporar rapidinho, o que perece, o que passa, estaria lá acenando para cada um de nós.

Há um desejo do outro, uma convocação ao outro quando o primeiro círculo molhado se faz amplo. Nós passantes, sentimo-nos convocados e, hesitantes ou não, em meio ao tempo oficial que só nos convida à aceleração, cedemos à perda de tempo que se instaura. E os artistas vão fazendo círculos dentro do círculo, e vamos ficando mais perto da cena, deixando de ser João Rosa ou Maria Flor, e passando a ser um corpo de platéia.

E nosso encontro com o artista vai deixando o mundo inventado ali, no calor da pele, ser tocado pela promessa de inesperado. Desaceleramos, transformamos em lugar um trecho da cidade que quase sempre usamos só como passagem. Uma interrupção no cotidiano. Para viver o cotidiano de um modo outro. E ficamos. Rindo de nós mesmos com as palhaçadas de Colorau, desarmando-nos do medo do outro que aprendemos a cultivar na experiência de ser público – a experiência de estar ao lado de quem não se conhece, de estar próximo a pessoas com as quais talvez jamais venhamos a cruzar outra vez. Fazendo uma espécie de exercício de meditação: para experimentar o show do Mágico Morgan, por exemplo, é preciso estar inteiramente presente. Atento ao que se passa. Passando com.

E passa também o chapéu. Ou o pandeiro. Ou o ungüento de R$ 1,00 capaz de sanar tantos males que a gente pergunta se será possível morrer depois de usá-lo. Sim, porque o artista está ali a trabalho. É do encontro imediato com o público que surge o financiamento da lona do Faísca, as pernas-de-pau com as quais Colorau vai ministrar aulas para crianças e adolescentes em Caucaia, na Grande Fortaleza, uma pilha nova para o microfone do Rodrigo do Boneco, porque ventríloquo em praça barulhenta carece de amplificação de som.

Nossas gargalhadas na roda, nossos aplausos, as moedas catadas no fundo dos bolsos e bolsas, são a sustentação de milhares de artistas anônimos que enchem de graça nosso dia-a-dia. Como é possível viver com tão pouco, podemos nos perguntar. Como é possível viver sem eles, é uma pergunta que renovamos ao sair da roda, ao deixar de ser platéia, e entrar em cena no papel diário que cabe a cada um de nós: inventar a própria vida, estar à altura dela.

Sim, a cidade carece de espaços vazios. Para que práticas culturais nômades possam se renovar, ampliando nossa experiência de cidade, de vida. Sabemos de vazios que a cidade foi ocupando de outro modo ao ouvir relatos de circenses. Até os anos 1970, de modos distintos, Fortaleza recebia lonas de circo de vários portes nos quatro cantos da cidade: no bairro do Mucuripe; na atual Praça da Secretaria de Segurança Pública, no Centro; no bairro do Joaquim Távora; no terreno da avenida Bezerra de Meneses hoje ocupado por um grande supermercado; no vazio do final da avenida Duque de Caxias, próximo ao trilho do trem. No século 19, os chamados circos de cavalinhos ficavam na atual área central, que era, então, a própria Fortaleza de menos de 50 mil moradores.

Hoje, na Grande Fortaleza de mais de 2,5 milhões de moradores, os circos de pequeno e médio porte, com capacidade para até 700 pessoas, estão circunscritos aos espaços da chamada periferia, como registra o fotógrafo Jacques Antunes no recém-lançado livro “Circo – eterno tráfego de vida e sonho”.

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