Como contribuições ao debate sobre políticas de fomento à produção artística
O debate, sempre acalorado e pertinente, embora também enfadonho e desgastante, sobre a repartição de recursos de apoio ou incentivo com base na divisão regional do país, que é afinal, o debate sobre a desigualdade estrutural no pacto federativo, tem uma importância histórica colocada justamente pelo fato da própria estrutura do Estado brasileiro ter-se erguido em cima de uma lógica imperial/colonial que, por mais que pareça ter mudado, sob o influxo das leituras midiáticas da modernidade, de fato a distribuição do poder, a concentração dos centros econômicos, políticos, financeiros e das grandes cadeias econômicas da cultura, continuam – 500 anos depois – reproduzindo a mesma desigualdade, e se concentrando no eixo Rio São Paulo, com eventuais deslocamentos para São Paulo/Minas, enfim, no sudeste, cede do antigo império, das oligarquias e das elites tupiniquins, entre as quais encontramos, ontem e hoje, aquelas que sempre foram consideradas como a verdadeira expressão artística e cultural do Brasil ou da então chamada Alta cultura.
Nesse quadro, de tão naturalizado, é fácil entender que alguns fiquem chocados ao se deparar com propostas que busquem uma certa “redistribuição”. Deparados também perante o legítimo temor de ter suas produções artísticas descobertas da mão protetora do Estado. A questão não é fácil, e de fato, não vejo que possa ser resolvida a partir de critérios numéricos, de dados do que há. Até porque o que há é justamente o produto dessa desigualdade estrutural que quer se mudar. Pelo menos nós queremos mudar e acredito que o MinC e a Funarte também. Os que não quiserem, tudo bem, a gente se enfrenta no campo, mas o debate de fundo para mim é isso. Quer dizer, dai partimos, da possibilidade de deixar o quadro da cultura diferente do que está, do contrário não faz sentido e seria melhor voltarmos à velha política de balcão.
Uma vez colocados do mesmo lado, daqueles que querem mudar essa desigualdade estrutural consolidada em um regionalismo “sudeste-cêntrico”, podemos começar a buscar os melhores modos de fazer. Agora isso não será possível sem rompermos com algumas lógicas, e sem abrir mão de alguns benefícios, em especial os que estivermos fazendo arte no sudeste. Como é o nosso caso.
O primeiro passo, ou exercício, se preferirem, me parece ser, superar de uma boa vez a velha lógica da “divisão do bolo”. Essa idéia de que alguém nos está devendo algo ou que “conseguimos” agora um tesouro que há que repartir, não contribui em nada e, pelo contrário, estimula algumas das agressivas e indignadas reações dos que, como sempre, acham que merecem mais. No mínimo, dificulta, digamos, tecnicamente, definir o que é mais e o que menos, nos empurrando para critérios abstratos e quantitativos, falsamente científicos. Para ser mais claro, os dados do IBGE são como a Bíblia, você pode justificar quase qualquer coisa em nome dela se não contextualizar corretamente. Os dados devem ser organizados e reordenados de acordo com um critério político claro, um objetivo comum, no caso, fomentar a produção artístico-cultural em todo o território nacional, como um projeto de nação, não de algumas pessoas que supostamente fazem mais porque são melhores, como podemos entrever, não sem espanto, nas entrelinhas de alguns argumentos. Até aqui nada de novo, trata-se do do-in cultural de que falou o Ministro Gil no início do seu mandato e que deu origem aos pontos de cultura e ao Cultura Viva.
Dai que, no mínimo, para evitar uma esquizofrenia na política nacional de cultura, a divisão de verbas, pontuais ou estruturais, de editais ou de programas de fomento e fundos, devam necessariamente responder à mesma lógica: identificar onde precisamos de maior investimento para potencializar a produção e circulação de bens culturais, sejam espetáculos, pesquisar, estudos, equipamentos, manutenção de grupos, em qualquer uma das áreas das artes cênicas.
De fato a produção cultural nos grandes centros como Rio e São Paulo, que concentra a maioria dos recursos, nem por isso atende a imensa maioria da população que ali mora, haja vista que bairros e municípios mais populosos e periféricos estão ainda hoje, quase totalmente desprovidos de equipamentos culturais básicos, como bibliotecas, cinemas, salas de teatro e mesmo espaços adequados para a instalação de lonas, tendo os circos itinerantes que se desdobrar em mil funções extremamente penosas para poder montar um espetáculo.
Entretanto, tentar encarar essa realidade complexa – para cuja identificação, de fato, não possuímos mecanismos claros e eficientes que a possam definir com clareza, de modo a servirem de orientação de políticas -, com base uma política multifocada a partir da fragmentação do território em micro-regiões, de uma diversidade tal que nem as subprefeituras conseguem vislumbrar, que dirá gerir, significaria, não apenas tornar a maquinária do incentivo à cultura uma aparelhagem imensa e inoperante, mas, e principalmente, desconhecer os determinantes históricos estruturais que, embora não apenas, são também parte de uma anomalia a ser corrigida para potencializar a produção artístico-cultural e seu escoamento para os diversos usuários e consumidores Brasil afora, e pelo mundo também.
Parece-me que essa tentativa, se tida como diretriz, não teria como se manter ou se construir atrelada a percentuais fixos de “distribuição do bolo” colocados à priori, sob risco de perder sua capacidade de responder a uma demanda que é dinâmica e complexa. Mesmo que, de um modo ou outro, esses percentuais, a posteriori, venham demonstrar, com clareza, os focos regionais de uma política de incentivo destinada a estimular a produção artística e não apenas, a reproduzi-la. Entretanto, esse demonstrativo, não virá de uma leitura abstrata baseada em uma espécie de paternalismo regional, que não faz outra coisa senão reproduzir a subalternização dessas regiões, mas será definido pela própria demanda articulada aos critérios de fomento, se estruturado um mecanismo flexível de avaliação de projetos que supere as conhecidas limitações com que se deparam as comissões de avaliação de propostas em editais públicos, que em alguns casos chegam ao extremo de depender apenas do “parecer do parecerista”.
Assim, um modo minimamente coerente com a política que vem sendo implementada pelo próprio governo, e que vem sendo referendada nas suas diretrizes nas conferências nacionais de cultura, seria definir critérios de incentivo que 1 – priorizem, aberta e claramente, determinado tipo de atividade cultural quanto a um perfil definido não pelos aspectos estéticos, mas pelo local, público focal e modo da sua produção, articulando o contexto sócio-econômico dessa produção; 2 – avaliem, com base nisso, comparativamente os investimentos de modo a efetivar essa prioridade sem, entretanto, mutilar a legítima demanda dos produtores de cultura nos grandes centros, dando a estes o destaque segundo critérios específicos de ampliação das platéias e também fortalecimento das cadeias produtivas existentes e, por último 3 – possam apoiar mecanismos de ampliação das parcerias de patrocínio por parte do setor privado, incentivando o patrocínio a setores ainda intocados pelo mercado (isso inclui formas específicas “periféricas” do fazer da cultura popular, como também, regiões menos centrais onde o retorno para eles será diferenciado, porém, real).
É importante frisar a idéia de definir critérios e mecanismos claros, baseados na idéia de “prioridade”, não de exclusão, e que permitam evitar ao máximo, tanto a reprodução da atual lógica, como controlar as arbitrariedades para a decisão. Essa espécie de “triagem” proposta nos dois primeiros pontos, não descartaria as propostas não priorizadas, mas constituiria um banco de projetos pré-aprovados que poderiam ser incluídos automaticamente em outros mecanismos de incentivo fiscal para a captação de recursos privados ou de parcerias locais, com municípios e estados.
Não é a minha intenção apresentar uma proposta fechada e definida, muito menos detalhada e definitiva, sobre o mecanismo de avaliação dos projetos e propostas de apoio às artes cênicas, mas apenas tentar contribuir com alguns elementos para refletirmos sobre a superação de um impasse que nos antecede em muito, qual seja a questão da distribuição de recursos nas diversas régios de Brasil, atrelado as suas estruturas históricas. De qualquer modo, mesmo que não seja esta a melhor forma de operar, nem a proposta mais adequada (não tenho essa pretensão), acredito que seja, no mínimo, necessário ampliarmos nosso debate no sentido de buscar os modos de fortalecer a produção artística, em especial do Circo, do Teatro e da Dança -que o que nos afeta diretamente-, ali onde esta estiver e nas condições em que ela surgir, considerando a nossa história, não apenas no que ela nos fala da nossa diversidade, mas também das nossas desigualdades.