Para os proprietários dos circos e para o funcionamento dos circos, a questão do espaço é pública e notória. Os Governos Federal, Estadual e Municipal – o Estado – têm a obrigação moral e histórica de implantar políticas claras e contundentes de reserva de espaços nos municípios para os circos itinerantes. De outra forma, estes vão parar. Ou, ao menos, serão exclusividade de alguns poucos grandes empresários. O circo deve ser entendido como patrimônio cultural brasileiro e deve ser protegido, com ações como essa.
Mas, hoje em dia, há ainda outra categoria de circense, a dos circenses que fazem espetáculos de circo para temporadas fixas e para viagens curtas, garantidas – às vezes para Festivais de artes cênicas e às vezes para viagens por convites de produtores que os contratam ou firmam parcerias para curtas temporadas. Estes artistas acham que a viagem curta é mais eficiente que uma longa e arriscada viagem itinerante, por esse Brasil grande e pobre, dominado pelos especuladores imobiliários. Essa categoria à qual me refiro é a dos circenses que decidiram se fixar nas grandes cidades e que dela tiram seu sustento. Esses artistas são cada vez mais numerosos, formando grupos, companhias, trupes e escolas nas cidades e, cada vez mais, fazem um trabalho importantíssimo de renovação e divulgação da linguagem circense na maioria dos municípios brasileiros. Até porque, em muitos casos, se aproximam de artistas de outras áreas (dança, teatro, artes visuais, música, cinema,televisão). E, por serem mais facilmente encontráveis (têm endereço fixo), são mais expostos pela mídia. Esses artistas sempre existiram. Mas agora, como resultado do fluxo de artistas formados por escolas, eles aumentaram, em número e importância.
No caso desses artistas de cidade, com endereço fixo, há uma dupla função muito comumente desempenhada: a de artista-produtor. O que é isso? É a pessoa que, além de artista – que precisa treinar, fazer cursos, se manter em forma, se manter criativa e sensível –, produz o seu trabalho, ou seja, tem um computador, usa o telefone para trabalhar, às vezes tem uma pequena empresa – CNPJ –, vende seus números e espetáculos, assina os contratos, levanta fundos por meio de editais e patrocínios, escreve projetos, visita clientes, investe no futuro e, principalmente, investe em material e equipamento.
Assim, vemos hoje uma significativa parcela da categoria circense diante de um grande problema, semelhante aos problemas de quase toda a sociedade: a do espaço. Ora, se o circense tem que treinar, tem que ter onde montar seu aparelho, tem que ter onde guardar seus figurinos e, às vezes, cenários, então ele precisa de um espaço. E não pode ser um espaço pequeno, nem muito distante de sua moradia. Tem que ser um espaço que o permita criar, e que o permita atrair parceiros (pessoas para treinar com ele) além de, naturalmente, que o permita guardar o material que não está na estrada.
Se peças de teatro com cenários, figurinos e objetos de cena têm temporadas extensas, vão de um teatro a outro e, apenas por curtos períodos de tempo, devem ter seus materiais guardados em galpões alugados, no caso do circense essa solução não existe. Para o trapezista voador seu aparelho de vôos deve durar no mínimo 15 anos (e não apenas os dois ou três anos de duração da temporada da peça de teatro). E deve ser montado com grande frequência. Só isso já muda a característica do espaço que o circense necessita. E justo o segmento circense, que é uma das atividades das artes cênicas com menos dinheiro, menos rentáveis (hoje em dia) e com menos apoio público no Brasil.
A atividade circense urbana precisa de espaços. Para guarda de material com segurança, para treinamento – e, portanto, com altura, estrutura para aéreos e equipamentos de segurança – e para criação de seus espetáculos e números. Sem esses espaços, a atividade depende de trabalho contratado de grande porte para poder se manter ativa, o que é extremamente perigoso e excludente – quem não tem trabalho não tem onde treinar e, consequentemente, não consegue trabalho.
Foi com essa ótica que um grupo de artistas em São Paulo fundou a Central do Circo, em 1999. Eu era um deles. E a Central se tornou, em muito pouco tempo, referência de excelência, criatividade e cooperação na área do circo, gerando inúmeros projetos que, sem a Central, não teriam acontecido. Entre eles, o Circo Zanni, o CEFAC, a Circonferência (Festival de Circo em parceria com o SESC), 22 espetáculos importantes com linguagem circense, o Circo Zé Brasil, entre outros. E, no Rio de Janeiro, na forma de iniciativas mais localizadas, porém também mais duradouras, vemos a Fundição Progresso como foco da atividade circense, onde vários grupos se mantêm, administram seus espaços ao lado dos outros, gerando criatividade e parceria em larga escala.
É preciso, hoje, que as esferas governamentais – federal, estadual e municipal – compreendam essas demandas. Da mesma forma que os artistas produtores estão compreendendo e, consequentemente, investindo o pouco dinheiro que têm em espaços que os permitam seguir treinando, produzindo e criando. E da mesma forma que a Europa compreende. É impressionante: em 1990, quando viajei por várias cidades européias, havia já esse entendimento e, em muitas delas, existia um espaço público, gerenciado pelos artistas, mas mantido pelo governo, para que os circenses pudessem treinar, criar e guardar seus equipamentos maiores. O Estado, lá, entende que é seu dever garantir o mínimo de condições de trabalho para esses profissionais, quando não há mercado que sustente suas necessidades. Ou seja, um Estado maduro. Que trabalha para a sociedade.
Rodrigo Matheus, 15 de Março de 2011