Artigo publicado originalmente em: Abreu, Martha e Soihet, Rachel – Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
Martha Abreu é professora do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em História da UFF. Autora do livro: O império do divino, festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900 (Nova Fronteira, 1999).
Cultura popular é um dos conceitos mais controvertidos que conheço. Existe, sem dúvida, desde o final do século XVIII; foi utilizado com objetivos e em contextos muito variados, quase sempre envolvidos com juízos de valor, idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas. Para muitos, está (ou sempre esteve) em crise, tanto em termos de seus limites para expressar uma dada realidade cultural, como em termos práticos, pelo chamado avanço da globalização, responsabilizada, em geral, pela internacionalização e homogeneização das culturas.
Por outro lado, se cultura popular é algo que vem do povo, ninguém sabe defini-lo muito bem. No sentido mais comum, pode ser usado, quantitativamente, em termos positivos – “Pavarotti foi um sucesso popular” – e negativos – “o funk é popular demais”. Para uns, a cultura popular equivale ao folclore, entendido como o conjunto das tradições culturais de um país ou região; para outros, inversamente, o popular desapareceu na irresistível pressão da cultura de massa (sempre associada à expansão do rádio, televisão e cinema) e não é mais possível saber o que é originalmente ou essencialmente do povo e dos setores populares. Para muitos, com certeza, o conceito ainda consegue expressar um certo sentido de diferença, alteridade e estranhamento cultural em relação a outras práticas culturais (ditas eruditas, oficiais ou mais refinadas) em uma mesma sociedade, embora estas diferenças possam ser vistas como um sistema simbólico coerente e autônomo, ou, inversamente, como dependente e carente em relação à cultura dos grupos ditos dominantes.
Para alguns historiadores atuais, como Roger Chartier, sempre foi impossível saber (ou mesmo não interessa descobrir) o que é genuinamente do povo pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de se precisar a origem social das manifestações culturais, em função da histórica relação e intercâmbio cultural entre os mundos sociais, em qualquer período da História. De qualquer forma, Chartier está coberto de razão em alertar, com uma boa dose de denúncia, ser o conceito de cultura popular uma categoria erudita, que pretende “delimitar, caracterizar e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores como pertencendo à cultura popular”. Sempre há o risco, continua o historiador francês, de se ficar incessantemente procurando uma suposta idade de ouro da cultura popular, período onde ela teria existido “matricial e independente”, frente a épocas posteriores, onde a dita cultura popular teria começado a ser perseguida por autoridades eruditas ou desmantelada pelos irresistíveis impulsos da modernidade .