in Revista E. São Paulo: Sesc São Paulo, n. 154, abril de 2003.
As máscaras do tempo
Eles estão onde o público estiver: representando, dando saltos arriscados, cantando, tocando, fazendo palhaçadas ou mágicas. O preço do espetáculo? O que puder ajudar. Por amor à arte, ou simplesmente lutando pela sobrevivência, artistas vindos de várias partes do País, e mesmo de fora dele, demonstram sua capacidade nas ruas de grandes cidades como São Paulo.
Três pequenos sacos de panos coloridos dispostos simetricamente sobre o chão são insuficientes para chamar a atenção da multidão que atravessa apressada o Viaduto do Chá, na região central de São Paulo, em pleno sábado. Não é pra menos. Há um pouco de tudo naquela calçada: um rapaz de 20 e poucos anos samba ao lado de uma caixa de som; bolsas de couro sintético expostas sobre um lençol; CDs piratas; pentes, ervas e bichinhos de pelúcia. Tudo disputa espaço. Mas os dois rapazes que se preparam para a terceira apresentação do dia não expuseram ainda todas as suas armas.
A indiferença do público começa a ser superada no momento em que o mais falante deles, Carequinha, começa a mostrar sua habilidade com um chicote de aproximadamente três metros de comprimento. Os golpes no ar são desferidos com precisão, passando a poucos centímetros dos pedestres. Seu barulho e velocidade vão abrindo espaço para a performance. Pouco a pouco, as pessoas vão se reunindo em torno dos artistas. O show, lentamente, começa a se desenhar.
Enquanto chicoteia, Carequinha discursa, provocando risos da platéia. Nos próximos 20 minutos ele vai centralizar as atenções prometendo mágicas que simplesmente não se realizarão: cobras ensinadas, camisas de futebol retiradas de sacos coloridos, coelhos. Uma promessa sobrepõe a outra. Mas seu grande número, na verdade, está acontecendo o tempo todo. Enquanto anuncia grandes feitos e distrai a atenção do público com mágicas simples, vai reunindo mais e mais gente. Até o ponto em que percebe que já é hora de tirar da sacola os produtos que bancarão o show. Nada de passar o chapéu: ele oferece uma daquelas “mágicas” pomadas que servem para tudo – dor-de-cabeça, coceira, frieira, rinite, dores musculares, mau-olhado. E parece convencer o público. Em mais ou menos cinco minutos consegue vender, por R$1,50 cada, cerca de 30 latinhas. O espetáculo está pago. É hora de ceder espaço ao parceiro, Jumento, que assumirá o chicote daqui para frente, desferindo golpes certeiros que cortam cigarros e pedaços de jornal segurados nervosamente por voluntários. Revezando seus números, a performance dos dois baianos se prolonga por 2 horas.
Homens do Samba e da bola
A alguns metros dali, na Rua Barão de Itapetininga, se reúne regularmente o grupo Os Homens do Samba, liderado pelo carioca Jorge do Cavaco. Há 30 anos tocando nas ruas, o instrumentista e cantor de 57 anos conta que decidiu se apresentar no centro da cidade porque já não conseguia mais serviço. “Todo o lugar que ia pedir emprego me diziam que eu era velho. Minha cabeça é branca desde os 13 anos”, explica. “Negro nunca teve valor, ainda mais com cabelo branco. O único jeito foi ir tocar na rua.” Para garantir o sustento, o grupo se apresenta diariamente. “Se quisermos ganhar o pão de cada dia, temos que trabalhar 30 dias por mês. O pessoal do conjunto está todo se virando. Hoje em dia ninguém acha mais serviço”.
Um dos companheiros de Jorge é uma figura que já fez muito sucesso na vida, mas não como músico. “O samba e o futebol são minha vida. Apesar de tudo o que me aconteceu, não esqueço o futebol.” Quem fala é Bio, um dos ritmistas do conjunto. Aos 50 anos, ele tem muita história para contar. Começou a carreira jogando na Ferroviária de Araraquara, sua cidade natal. Foi contratado pelo Palmeiras, onde jogou com ídolos como Leivinha e Ademir da Guia. Depois seguiu para a Europa, onde atuou por um ano na Bélgica e dois em Portugal. Voltou para o Brasil para jogar pelo Flamengo e se instalou definitivamente na Espanha, onde viveu por 24 anos. Um de seus maiores orgulhos foi ter jogado ao lado de Johann Cruyff, lendário centro-avante holandês que defendeu a camisa do Barcelona. Na equipe catalã, Bio atuou por três anos. Na mesma cidade, jogou ainda pelo Espanyol e pelo Terraza. “Se disser que não ganhei dinheiro, é mentira, mas como não tinha estrutura, não pensei no futuro. Não tive esse tipo de preocupação”, lamenta-se.
Em 1994, depois de se separar da esposa espanhola com que teve um filho, Bio voltou ao Brasil. “Só arranjei trabalho como motorista particular.” Hoje, sem trabalhar, o ex-jogador recebe ajuda de um ex-patrão e completa a renda tocando na região central da cidade. “Gosto de me apresentar na rua porque gosto de samba. Vou até aonde o samba está.”
Edson Cordeiro
Na mesma rua em que o conjunto se apresenta, há 17 anos o cantor Edson Cordeiro dava os primeiros passos na carreira. Ele já havia experimentado os palcos, atuando em peças infantis e em uma ópera rock, mas estava sem trabalho. Edson conta que nenhuma banda o aceitava. “Minha voz e meu jeito de cantar assustavam. Na verdade, eu não me adaptava a nenhum padrão existente.” Para que pudesse continuar cantando e garantir um dinheiro para comprar seus discos, Edson teve a idéia de se apresentar sozinho na Barão de Itapetininga. “Eu até que ganhava bastante dinheiro”, lembra-se.
No repertório, um pouco de tudo: Prince, Nina Hagen, Janis Joplin e também árias de ópera. Grande parte das músicas gravadas em seu primeiro disco, lançado pela Sony em 1992, foi cultivada durante o tempo em que cantou na rua. “Sinto saudade daquele tempo. A experiência foi muito importante para a minha carreira. Se consegui domar um público de rua, consigo domar qualquer público”, diz. “É muito legal saber que em qualquer lugar que eu esteja, poderei sobreviver fazendo o que gosto.”
Pré-Parlapatão
Outro nome conhecido que já experimentou as ruas é o palhaço Hugo Possolo, dos Parlapatões, Patifes e Paspalhões. No começo da década de 1990, Hugo apresentava espetáculos infantis para escolas. “Eu ganhava bem, mas comecei a perceber que o que fazia era seguir um modelo sem muita autenticidade. Aí, de supetão, decidi mudar de rumo e fui para a rua”, conta. “Eu tinha um dinheiro guardado, mas o problema é que veio o Plano Collor e ficou tudo preso. Não teve jeito, tive realmente que viver do chapéu.”
Para ele, há no País uma idéia equivocada de que o artista de rua é uma espécie de camelô da arte, um subempregado. “Mas, na verdade, já vi muitos deles superarem de longe artistas de palco com muito nome estampado no cartaz.” Durante um ano, Hugo se apresentou na Praça da República e no Parque do Ibirapuera. Nessas ocasiões, convidava colegas para se apresentarem. Com dois deles, Alexandre Roit e Arthur Leopoldo, viria mais tarde a formar com ele os Parlapatões. “Nós íamos com alguns números circenses prontos, mas estabelecíamos um outro tipo de comunicação que eu não conhecia nem do teatro nem do circo. E é justamente essa mesma comunicação direta a marca mais forte do trabalho do grupo hoje.”
Por amor à música
Outro que abandonou uma certa estabilidade para buscar um caminho artístico alternativo é o flautista Emerson Pinzindin, que se apresenta diariamente no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. “Toco na rua desde 1989. Antes disso, dava aulas de música em escolas. Trabalhava todos os dias das 7 da manhã às 6 da tarde. Ganhava bem, mas já não podia suportar aquilo. Eu não tinha tempo de praticar. Aí decidi abandonar tudo e ir para a rua.” Emerson calcula que, com a decisão, passou a ganhar cerca de 15% do que recebia dando aulas. “Se eu fosse preso a dinheiro, teria sido um baque terrível. Fiz isso por amor à música.”
Aonde o povo está
O artista chileno Ángelo Medina é outro que foi para as ruas por uma opção artística. Formado em artes cênicas pela Universidade Católica do Chile, teve muitas experiências nos palcos antes de vir definitivamente para o Brasil. Porém, foi só aqui que se deparou com a possibilidade de trabalhar na rua. “Em princípio eu me negava, achava que ator que se respeitasse não ia para a rua – aqueles preconceitos tolos. Até que eu descobri que a rua oferece uma experiência que nenhum outro lugar oferece, explica. Ângelo se apresenta em diversos pontos da cidade como estátua, todo caracterizado de branco. “O objetivo principal do meu trabalho é interferir no cotidiano das pessoas, e o melhor lugar para fazer isso é as ruas. Crio momentos de suspensão para que as pessoas se detenham, ao menos por um instante, e possam viver uma breve fantasia que no fundo está nelas mesmas.”
Teatro de rua
Desde junho de 2002, o Sesc Carmo realiza o projeto Centro em Cena, trazendo grupos teatrais para apresentações gratuitas em diferentes pontos da região central de São Paulo, como a Praça da Sé, o Largo do Café, o Anhangabaú e a Praça da Esplanada – Poupatempo. O projeto foi inaugurado com o grupo de teatro de rua australiano Strange Fruits, com o espetáculo The Field. De lá para cá, mostraram seus trabalhos os grupos Caixa de Imagens, Cia. Tablado de Arruar, Menestrel Fazê-Dô e a Cia. Circo Navegador. Em março foi a vez da Cia. La Mínima, com o espetáculo Luna Parque. Em abril, apresenta-se o Grupo Sola, com um espetáculo de sapateado de rua. Confira a programação.