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Carequinha 90 anos de espetáculo

Folha de São Paulo

06.04.2006

Sérgio Rangel

Da Sucursal do Rio

Morre, aos 90 anos, o palhaço Carequinha

George Savalla Gomes, o palhaço Carequinha, foi um dos artistas circenses mais famosos do país, atuando na TV e no rádio

George Savalla Gomes, o Carequinha, 90, um dos palhaços de circo mais famosos do país, morreu na manhã de ontem em sua casa em São Gonçalo (25 km do Rio). Ele passou mal durante a madrugada, com fortes dores no peito e falta de ar. Foi medicado, mas não resistiu.

Desde o ano passado, o palhaço estava com a saúde debilitada em razão de problemas cardíacos. Em outubro, ficou internado quase um mês com pneumonia. Segundo o médico Fernando Medeiros, que cuidava de Carequinha, ele teve morte súbita.

Carequinha foi o primeiro ator circense a fazer sucesso na televisão brasileira. Gravou 27 discos, 186 compactos e participou de filmes da era da chanchada.

Ele nasceu no circo numa noite de 18 de julho de 1915, em Rio Bonito (a 54 km do Rio). Carequinha era filho dos trapezistas Elisa Savalla e Lázaro Gomes. Elisa sentiu as primeiras contrações durante uma apresentação no Circo Peruano, de seu avô. Aos cinco anos, na cidade de Carangola, Minas Gerais, Carequinha estreou no picadeiro, quando o padrasto Ozório, após alguns ensaios, colocou uma careca no pequeno menino e deu o nome ao seu personagem.

Em 1938, aos 23 anos, Carequinha apareceu como cantor na Rádio Mayrink Veiga, no Rio. Depois, atuou na Rádio Nacional. Nessa época, trabalhou com artistas como Francisco Alves, Emilinha Borba e Ângela Maria.

“Inventei uma nova escola de palhaços. Até então as pessoas riam da desgraça do palhaço que apanhava como ele só. Não gostava disso e virei o herói da história. Os outros se davam mal. Mas o Carequinha não”, dizia o palhaço, que estudou até o terceiro ano da faculdade de Direito.

Em 1951, ele passou a trabalhar na então recém-inaugurada TV Tupi. tornado-se pioneiro artista de circo na televisão brasileira.

Em 1957, Carequinha começou a obter sucesso em sua carreira musical. Seus principais êxitos foram a valsa “Saudade de Papai Noel”, de Altamiro Carrilho, a marcha “Parabéns! Parabéns!”, do mesmo Carrilho e de Irani de Oliveira, que se tornou um verdadeiro hino dos aniversários infantis, e o fox “O Bom Menino”, clássico do cancioneiro infantil.

Carequinha era conhecido como o palhaço dos presidentes. Apresentou-se para Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, passando pelos generais do governo militar. Ele recebeu condecoração do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Em 1964, ganhou a medalha Palhaço Moderno do Mundo, na Itália, disputando com palhaços de 20 países. Fez shows em Portugal, nos EUA, na Argentina e no Reino Unido. Nos anos 80, apresentou por quase três anos um programa infantil na extinta Manchete. No ano passado, fez uma das últimas aparições na TV ao participar da minissérie “Hoje é Dia de Maria”, da TV Globo.

Carequinha morava em São Gonçalo desde 1937. “Gosto daqui. E, além do mais, moro perto do cemitério. Quando eu morrer não vou dar trabalho a ninguém. Vou a pé para lá”, brincava. O corpo de Carequinha seria enterrado com roupa de palhaço ontem à tarde no cemitério de São Miguel.

Análise

Carequinha foi mais que engraçado

Hugo Possolo

Especial para a Folha

A alegria de assistir a um palhaço na infância, ao se transformar em lembrança, ganha ares nostálgicos. É o chavão do palhaço desolado tirando a maquiagem. De fato, não é nada fácil dar a cara a tapas, expor-se só para que os outros se divirtam. A dignidade dos palhaços é meio avessa, de quem se sente bem sendo absolutamente ridículo.

Dessa dignidade esquisita é que viveu George Savalla Gomes, o palhaço Carequinha. Certamente, ele preferiria que o jornal fosse ocupado pela estréia de um novo espetáculo que pela notícia de seu falecimento. E isso não é uma piada. Carequinha mostrou que tão importante quanto ser engraçado é lutar pela arte circense.

Infelizmente, o circo é tratado com mero entretenimento superficial, coisa do povão e, para os mais medíocres, algo populista. Carequinha, junto a Arrelia, Torresmo e Piolin, simbolizam como essa arte tem valor simbólico inegável.

Basta perguntar para alguém mais velho e lá na memória estará guardado o nome de Carequinha. Foi um dos primeiros a levar a diversão circense para a TV, uma espécie de Trapalhões de sua época, quando atuava com Fred, Zumbi e Meio Quilo. Também lançou diversos discos (na época LPs). Um certo tom moralista, que resvalava na idéia de educar as crianças do Brasil, fez o sucesso de canções que ensinavam que “o bom menino não faz pipi na cama”. Afirmava na TV que era um defensor da arte circense.

Carequinha usou fama e prestígio e foi fundamental para que se efetivasse a Escola Nacional de Circo, em 1982, ainda hoje a única federal e gratuita.

Uma das cenas mais comoventes que já vi no cinema é a encenação do enterro de um palhaço, feita por Fellini em “Os Palhaços”. Lembro dela e sempre desconfio um pouco de quem escreve sobre quem acaba de morrer. Como não confio muito em mim, escondi-me atrás da maquiagem de palhaço para revelar a imensa tristeza pela perda de um ídolo. Mas, nada de choro, a não ser que esguiche na platéia.

Carequinha, cá entre nós, no alto do céu feito de lona, sua estrela sempre figurou. Agora habitará numa constelação em forma de circo. Pode partir com a tranqüilidade de que a comicidade, aparentemente tão efêmera, irá perdurar. Anjos do picadeiro, palhaços do futuro, besteirólogos, jogadores de quintal, mínimos, intrépidos e anônimos pedem passagem para brincar no picadeiro.

Folha de São Paulo

8 de abril de 2006

Carlos Heitor Cony

Carequinha, o bom

RIO DE JANEIRO – No último domingo, minha filha que mora em Roma fez anos. Usando os recursos da internet, minha outra filha e eu a despertamos ao som de Carequinha cantando a musiquinha da infância das duas: “Parabéns! Parabéns!”. Foi uma choradeira só. Veio tudo de volta, toda a infância delas, o tempo mais gostoso de minha mocidade, tempo em que um palhaço ainda nos comovia -ao contrário de certos palhaços de hoje, que nos fazem chorar.

A voz dele, propositadamente rachada, que não o impediu de emplacar um sucesso na marchinha de Miguel Gustavo, “Ela é Fã da Emilinha”, campeã de um Carnaval dos anos mais antigos do passado.

Carequinha foi logomarca e trilha musical do início esforçado de nossa televisão. Pulara do circo, habitat natural de um palhaço, para o grande circo eletrônico ainda em preto-e-branco, uma televisão ingênua como ele e na qual fazia a ligação do passado com o presente, trazendo sua máscara, seus tombos, sua boca enorme e vermelha escondendo a nostalgia disfarçada dos palhaços -“e enquanto o lábio trêmulo gargalha, dentro do peito o coração soluça”, segundo o soneto famoso.

Certa vez, despojado de suas vestes litúrgicas de picadeiro, ele cantou ao violão uma música de sua autoria. Era a herança dos palhaços que ele cantava, o apelo da multidão que pede riso e alegria, e a alma ferida lá dentro, olhando a platéia que o exige e aplaude, sem ver que seus olhos estão molhados. Nada mais triste do que o olhar de um palhaço mal protegido pelo alvaiade cor de luar.

Crianças daquela época, crianças de três gerações, acompanhavam aquelas cambalhotas segurando o chapéu, terminando-as com o chapéu na cabeça. O palhaço-herói, o palhaço-ícone de um mundo que poderia ser, roque roque do ratinho, o bom menino não faz xixi na cama -um mundo que se vai com ele. Ano que vem, minhas filhas e eu novamente tocaremos o seu parabéns com mais emoção e saudade.

Repercussão

Renato Aragão, comediante

Carequinha foi um mito. Saiu do picadeiro e foi para o cinema, a música. Alegrou gerações e ficará eterno

Carlos Manga, dirigiu Carequinha na TV e no filme “O Palhaço, O Que É?” (1960)

Como é um palhaço? Carinhoso, meigo, simples, romântico, engraçado, leve. Carequinha era isso. Passou a vida fazendo as crianças sorrirem, e cumpriu muito bem sua missão

Roger Avanzi, o palhaço Picolino II, do Circo Nerino

O circo está de luto. Do Carequinha a gente só tem que falar bem das grandes coisas que ele fez na profissão, além de ter sido um pai de família exemplar. Em casa, tenho uma foto em que aparecemos eu, o Arrelia, o Torresmo, o Chicharrão, o Piolin e o Carequinha. Batizei a foto de “Éramos Seis”.

Verônica Tamaoki, autora do livro “Circo Nerino”

É o fim de uma época. Carequinha era um dos últimos palhaços tradicionais de circo, acrobático. Para mim era particularmente importante porque foi o palhaço da minha infância. Pessoalmente era um homem típico de sua geração, sempre muito bem vestido e educado, um “gentleman”

Erminia Silva, pesquisadora de história do circo

Carequinha era a representação do que significa o artista circense e a própria linguagem do circo na história cultural do Brasil. Vindo de uma família circense tradicional, ele teve uma formação completa sob a lona. E se inseriu nas várias expressões de sua arte: gravou disco, fez rádio e televisão etc. Sua trajetória de vida é a expressão de sua importância

Cláudio Thebas, o palhaço Olímpio, autor de livros infantis

Tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente em 2002. Ele era uma pessoa cheia de energia, com muito orgulho de sua carreira. Na despedida, perguntei a ele como sair de São Gonçalo, onde ele vivia. Ele disse que logo na esquina ficava o cemitério, tão perto que iria para lá andando quando morresse. Até a morte ele encarava como palhaço.

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