“Esta crítica foi premiada no Concurso Estadual de Estímulo a Crítica Cultural – 2011 da Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB”.
“O Mundo é redondo e o Circo arredondado” é, sem dúvidas, a frase do Profeta Gentileza mais conhecida no mundo do Circo. Eu, pessoalmente a adoro. Trata-se de um testemunho do Circo enquanto representação do mundo. Para que se entenda melhor, o certo seria dizê-la por inteiro: “A derrota de um Circo queimado é um mundo representado, pois, o mundo é redondo e o circo arredondado”.
O que vejo de mais representativo em “Gran Circus” – espetáculo da Fulanas Cia de Circo – é justamente seu potencial de representar o que acontece no mundo. Mundo circense. Explico.
Com a criação das escolas e a consequente explosão de grupos de circo sedentários – aqueles situados, quase sempre, nas grandes cidades, cujas características de organização muito mais se assemelham com a de um grupo de dança ou teatro – surgiram este “novos circenses”, de certa forma, diferentes dos “circenses tradicionais”.
Embora existam “tensões” entre eles, o que há mais forte e predominante é uma busca, por parte do primeiro grupo, de viver – ou pelo menos experimentar – aquilo que vive/viveram os do segundo grupo, ao seu próprio modo, pelo menos. “Todo circense sedentário sonha em ser itinerante”, poderiam dizer. Talvez, até digam mais: “sonha em fazer parte daquele grupo que habita o imaginário coletivo”.
Ao meu ver “Gran Circus” representa isso muito claramente. Há crime nisso? Claro que não. Isso é belo. Afinal já não disseram que a arte é uma forma de se expressar? De expressar seus medos, sonhos e desejos?
Assisti ao “Gran Circus” diversas vezes, mas as que realmente importam – aqui – são as apresentações no Circo Dallas, na cidade de Camaçari. Por se tratar de um espetáculo que se propõe a fazer uma leitura do “Circo Tradicional”, vê-lo num Circo Itinerante é outra coisa, mais franca, mais aberta e com muito mais verdade.
Um adendo. Essa verdade que pode ser lida na infraestrutura (ou falta dela) que o Circo Itinerante vive: dos banheiros improvisados à falta de material de iluminação cênica.
“Gran Circus” apresenta alguns dos personagens mais característicos do imaginário circense: o anão, o atirador de facas, o mágico, as bailarinas. Tudo com uma leitura muito franca e singela. Aqui, me foco na análise de dois personagens: a “mulher-forte” e o “locutor” ou “mestre de cena”.
O personagem clássico do Circo é o Homem-forte. Homem, masculino. É um personagem muito representativo da virilidade, da testosterona. Porém, o grupo só tem mulheres – daí o nome Fulanas? Então elas (re)leem o personagem e o adaptam para que uma mulher o faça, e ainda lhe dão ares de sensualidade, amenizando o que haveria de negativo numa mulher-homem-forte. Em nossa sociedade, a força é uma característica mais comumente desejável no homem que na mulher. Como, então, tornar uma mulher-forte interessante sem ser repulsiva? As Fulanas conseguiram.
Outro exemplo da sinceridade do espetáculo se dá com o locutor. São apenas seis atrizes para fazer todo o espetáculo com diversos personagens e caracterizações. Porém, um espetáculo que relê o Circo Tradicional precisa ter um Mestre de Cena. Elas, as Fulanas, resolveram isso colocando um dos músicos para cumprir a função. Uma escolha ruim. Embora o músico seja carismático e se esforce para cumprir bem a missão, o mestre de cena não pode ser reduzido a um pequeno canto do picadeiro, atrás de pratos, mixers e toda a parafernália que o esconde, ou melhor, não o deixa apresentar-se para o público em toda sua pompa. Este parece ser um ponto em que o cuidado ofertado às outras cenas e personagens faltou e a franqueza se transfigurou em fraqueza.
No que diz respeito à técnica circense, elas apresentam números de palhaço, tecido, equilíbrio em arame, corda indiana, etc. Alguns números como o tecido e o arame não apresentam nenhuma novidade. O que de fato chama a atenção é quando elas se comprometeram, saindo do que seria mais confortável e se arriscando em técnicas até então pouco estudadas.
Isso é mais forte com Carol Guedes. Exímia palhaça que atua, não como um palhaço clássico, mas em cenas cômicas, incorporando comicamente o “atirador de facas” e o “mágico”. Aliás, é essa facilidade para a comicidade que a salva na hora da magia e de atirar – de verdade – as facas. Embora seja possível perceber sua insegurança na hora de fazer os truques, ela deu a seus personagens um ar “canastrão” que lhe permite falhas, deixando o espectador à vontade para rir dos seus erros e vibrar com seus acertos, como seria com um palhaço qualquer. Neste ponto acho que, embora as Fulanas tenham feito uma escolha perigosa, elas se saíram bem.
Em suma: “Gran Circus” é um espetáculo bonito, que cumpre sua proposta de fazer uma leitura do “Circo Tradicional” de forma franca e verdadeira, mas que pode e deve ser visto além disso: pode e deve ser visto como representativo de uma admiração, de um sonho e de um desejo. De um filho que olha para seu pai e deseja seguir seus passos.
Pablo SS