Centelhas de um Diamante Negro (1)
Ivany Câmara Neiva (2)
Universidade Católica de Brasília
Resumo: Trata-se da história de Atanázio, ex-escravo nascido por volta de 1860, artista de circo nas primeiras décadas do século XX e benzedor no interior de Goiás desde os anos setenta. O foco do artigo está no instante decisivo que o estimulou a contar sua trajetória de toureiro, a partir da revelação de fotos antigas que guardava. A narrativa se desenvolve em três tempos: o circo; a revelação da história; a releitura desse acontecimento, pela narradora.
Palavras-chave: memória; fotografia; circo.
1. Acontecimentos
Aconteceu em 1979, durante uma entrevista com Atanázio, um ex-escravo (3). A partir das onze fotografias antigas que guardava, e da curiosidade que despertaram em quem o entrevistava, Atanázio se animou a contar histórias do seu tempo mais feliz. Suas memórias revelavam acontecimentos do começo do século passado, quando era toureiro em seu circo mambembe Flor do México. E hoje, vinte e cinco anos depois da entrevista e da revelação, volto a pensar em Atanázio e no aprendizado desses anos. Relembrar suas histórias é também compreender de outra forma o que aconteceu naquele dia, em que se reavivaram as imagens das velhas fotos; é reler, é reconfigurar as reminiscências e os acontecimentos, re-significar as marcas do tempo e da memória, colocar como interlocutor, ao lado da experiência de Atanázio, o pensamento de quem teoriza sobre a imagem, a memória, o tempo, a narrativa. Lembramos Walter Benjamin, quando fala da reminiscência como fundante “da cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração”, tecendo “a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si” (4).
Nessa viagem por mais de um século de história, nem sempre na ordem do antes e do depois, apenas duas datas podem ser precisadas: maio de 2004, o tempo da narradora; e outubro de 1979, quando a história de Atanázio foi revelada, pela fotografia. As outras referências de tempo se perdem, se encontram e se entrelaçam nas suas memórias. Comparando as reminiscências, estimamos que a companhia apresentou-se pelo interior do Brasil por mais de cinqüenta anos, das primeiras décadas do século XX até os anos setenta.
Isso nos lembra Paul Ricoeur, também em uma entrevista, quando diz que “é preciso encontrar a incerteza da história” (5), e pensamos nas discussões sobre o tempo, os acontecimentos, as datas ou a falta delas. Naquele momento interessavam as certezas do que era importante para Atanázio; importava mais a sua narrativa, o seu sentido do tempo, e menos a cronologia e a comprovação dos documentos.
Contar agora essas histórias torna presente, por exemplo, a teorização de Paul Ricouer sobre tempo e narrativa. Ele constrói seu conceito de narrativa enquanto articulação temporal da ação, identificando como “mediações simbólicas constitutivas do ato de narrar e, como tal, da própria experiência compreensiva” (6), três posições temporais: a do acontecimento descrito (a prefiguração), a do acontecimento em função do qual o primeiro é descrito (a configuração), e o tempo do narrador, que comunica a experiência a alguém (a refiguração).
Neste caso, os três tempos são: primeiro – o tempo do Circo (o acontecimento revelado e descrito); segundo – a revelação dessa história, a partir da fotografia (o acontecimento que levou à descrição do tempo do Circo); e terceiro – o tempo da narradora (quando o tempo da revelação é revisitado).
Os acontecimentos e as histórias aqui contados têm Atanázio Ferreira Santos como personagem. É ele, o Diamante Negro de quem vemos as centelhas.