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Circo no Brasil

Primeiro veículo de diversão de massa do mundo moderno – e neste sentido antecipando em mais de um século o fenômeno da música popular internacional da era tecnológica -, o circo ambulante constitui desde o seu surgimento na Inglaterra e na França, na segunda metade do século XVIII, a mais surpreendente summa de todas as artes dirigidas ao gosto popular desde a Antiguidade. E, assim (…) heterogêneo pelo conteúdo (…) o circo iria se tornar universal não apenas pela forma sempre igual do picadeiro sob cobertura desmontável, mas pelo caráter internacionalizante da sua vocação andarilha[*] (Tinhorão, 2006, p. 85).

Em plena atividade o circo percorre todo o território nacional e é freqüentado por todas as faixas de idade e diversas classes sociais. É histórica sua capacidade de se renovar, apropriando-se e introduzindo em seus espetáculos atrações como, por exemplo, máquina de projetar filmes e jogos de espelhos, mantendo diálogo permanente com outros meios de comunicação, como o rádio, a televisão e o cinema, conforme os períodos da História. Por seu nomadismo e por trazer consigo artistas de várias linguagens, uma de suas fortes características é a capacidade de difusão e trânsito artístico-cultural numa via de reciprocidades entre capital e interior, não raro, apresentadas em localidades com escassas alternativas de lazer e possibilidades de diversão. Capacidade essa cultivada pelos artistas itinerantes que, em sua diversidade, incorporaram as artes circenses em suas apresentações.

O circo itinerante é exemplo de autosustentabilidade, pois, vem sobrevivendo sem participação nas Leis de Incentivo à Cultura; a maioria conseguiu e consegue sobreviver apenas dos recursos obtidos da bilheteria e da venda de comestíveis (pipoca, algodão doce, maçã do amor, salgados), fotografia, material artesanal e de pequenos patrocinadores locais.

No geral, os circos itinerantes mantêm o modelo de administração de empresa familiar, ainda que tenham agregados de fora do círculo da família. Esse modo de organização do trabalho e produção artística circense enfrenta os mesmos desafios das demais empresas brasileiras: manter-se em atividade obedecendo às leis trabalhistas e arcando com altos impostos.

Dentre as diversas formas de preconceito com os circos e as pessoas que nele trabalham pode-se destacar a dificuldade na obtenção de vagas em escolas públicas e, por falta de comprovação de renda e endereço fixos, na obtenção de crédito nas compras à prazo. Outros importantes fatores contribuem para a dificuldade da vida itinerante:

· Ausência de programas que contemplem as necessidades de rápido agendamento de consultas médicas;

· alto custo de aluguel e escassez de terrenos com topografia e localização adequadas, de fácil acesso à população;

· ausência de integração ou sinergia entre as exigências dos gestores municipais, burocracia excessiva e indeferimento de alvará de funcionamento do circo em várias cidades brasileiras;

· inexistência de legislação comum entre as gestões municipais que oriente os procedimentos e exigências para instalação e funcionamento dos circos e o uso de praças públicas pelas trupes e artistas independentes.

Em conseqüência, sobretudo o circo que trabalha a preços populares e sem outras fontes de renda tem sofrido reveses que resultam na depreciação de seu patrimônio, na perda da qualidade dos espetáculos, mas principalmente, na perda da qualidade de vida de seus artistas e técnicos, desestimulando sua continuidade neste modelo de organização e produção do espetáculo circense. Sensível a esta situação, a Associação de Famílias e Artistas Circenses – Asfaci mobilizou apoiadores do circo e em 27 de março de 2006, data em que se comemora o dia do circo, lançou oficialmente a Carta Aberta aos Prefeitos e Prefeitas Municipais do Brasil, solicitando recepção digna aos artistas circenses e circos que pleitearem instalação nas municipalidades que administram. Muitos, ainda hoje, anexam a referida Carta aos seus requerimentos de alvará de funcionamento. No entanto, há necessidade de abrangência na divulgação dos direitos e deveres da categoria; por este motivo, a Asfaci apresentou à Coordenação Nacional de Circo, da Funarte, proposta de elaboração e publicação do Guia do Cidadão Circense, posteriormente, aprovada pelo Colegiado Setorial de Circo.

Desde o primeiro mandato do governo Lula, o Ministério da Cultura tem ouvido a categoria e está devidamente alertado dessa situação. É imprescindível e urgente priorizar ações de trabalho que informem cidadãs e cidadãos circenses de seus direitos e deveres. O Ministério da Cultura em sintonia com outros Ministérios, Secretarias e Fundações deverá adequar suas ações às peculiaridades e diversidades nas formas de organização social e de trabalho das culturas populares como um todo, ressalto aqui as particularidades da vida itinerante.

Ressalto, ainda, que é somente conhecendo o universo do circo e suas necessidades que poderemos traçar política efetiva, democrática e inclusiva para o setor. Assim, dentre as ações mais aguardadas estão o mapeamento, cadastramento e constante atualização das atividades circenses e das pessoas que as produzem no país.

Além dos patrocínios já existentes por meio de editais de prêmios, há solicitação de que se efetivem as propostas apresentadas ao Programa de Fomento ao Circo, intensificando recursos destinados ao desenvolvimento de ações sugeridas pela categoria e levadas ao debate no Colegiado Setorial da área desde 2005, então Câmara Setorial de Circo.

O circo e as pessoas que o acompanham têm importante papel na construção histórica das culturas populares brasileiras; a amplitude do entendimento do que isso significa nos é permitido por intermédio de estudos mais aprofundados. A pesquisa e o registro sobre a memória circense são relevantes por se tratar de uma tradição que tem a oralidade como forma de transmissão dos saberes. O apoio aos trabalhos de memória e registro deve ser ampliado tendo em vista a urgência no recolhimento de informações de muitas pessoas que falecem e, não-famosas, pouco ou nunca entrevistadas, acabam por se perder importantes acervos. Seu registro atrelado à perspectiva da memória e da identidade de circenses ilustra o elo indissociável que existe entre cultura e memória, sendo parte da constituição do patrimônio histórico cultural circense.

Ainda hoje, muitas mães passam toda a gravidez acompanhando o circo; assim, a formação e aprendizagem da vida e das artes circenses são processos que têm início logo na gestação, sendo desenvolvido de acordo com as diferentes fases vividas. O ensino desta arte para quem não nasce ou não acompanha um circo teve início no Brasil a partir do surgimento das escolas de circo, na década de 1980. Em paralelo, projetos onde se descobriu a linguagem circense como importante instrumento pedagógico voltado para transformação social e construção da cidadania passaram a se proliferar e ficaram conhecidos como “circo social”.

Todos esses segmentos do circo foram contemplados no chamamento do governo federal com a finalidade de diagnosticar e propor encaminhamentos às atividades circenses para o Plano Nacional do Circo. Com base nos debates e levantamento das necessidades e anseios dos segmentos artísticos, o Ministério da Cultura permitiu que se elencasse diretrizes e metas para elaboração de políticas públicas que contemplem a diversidade e as especificidades da classe artística, projetadas para os próximos dez anos. São, fundamentalmente, programas e ações que estimulem a formação, produção, difusão e documentação das atividades artístico-culturais.

Com a eleição de Dilma Rousseff, primeira mulher presidenta do Brasil, ansiamos que a nova equipe formada pelo Ministério da Cultura tenha maior agilidade na efetivação das propostas aprovadas após serem amplamente debatidas, com início nas Câmaras Setoriais de Circo, no final de 2005.

Estamos confiantes que esse próximo governo será capaz de concretizar ações que independem de legislação, apenas, afinco e boa vontade política com esses trabalhadores e trabalhadoras da arte e da cultura popular brasileira.

Viva o circo e todas as pessoas que colaboram para que ele continue existindo no Brasil e no mundo.

Araraquara, janeiro/2010

Joelma Costa

Cientista Social, Diretora Circense, Palhaça, fundadora da Asfaci e da lista virtual Circomunicando


[*] Tinhorão, José Ramos. Circo brasileiro, local do universal, In: Cultura popular: temas e questões. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Ed.34, 2006. Trabalho apresentado no seminário “Entre Europa e África”, promovido pela Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em dezembro de 1995 e publicado na coletânea “A invenção do carioca”, Rio de Janeiro, Topbooks/Edições Casa de Rui Barbosa, 2000.

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