A leitura do livro Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil, de Erminia Silva, revela, como num espetáculo circense, a cada página uma surpresa. A primeira é certamente a incrível epopéia das famílias de circenses européias desde os primórdios das formações de circo de cavalinhos da Europa, principalmente Inglaterra, até a grande aventura que as fazia rasgar o mar em busca de novas platéias.
Depois, chegando ao Brasil, começaram um itinerário notável de adaptação aos costumes e viagens intermináveis, criando um modo de vida e sobretudo de produção artística ímpares na história. No processo de adaptação, Erminia mostra como surgiram as pantomimas que povoam o imaginário brasileiro desde mestres da literatura como Machado de Assis, Arthur Azevedo e Mario de Andrade até hoje.
Erminia analisa como os homens e mulheres circenses transformaram o palco/picadeiro num lugar polissêmico e polifônico, no qual se aliavam destreza corporal, musicalidade, comicidade, dança e representação teatral. Parte da idéia de que os circenses, particularmente os brasileiros, há mais de dois séculos, devem ser vistos como um grupo que sempre articulou saberes e técnicas artísticos contemporâneos, seja durante o século XIX como no XX, tendo como referência definidora um processo permanente de (re)elaboração e (re)significação, bem como produziam um espetáculo para cada público, manipulando elementos de outras variáveis artísticas já disponíveis e gerando novas e múltiplas versões da teatralidade circense. Por isso o estranhamento da autora em torno de um pretenso “ressurgimento do circo como moda”, ou do “circo novo”, das academias de circo ou de grandes espetáculos como o Cirque de Soleil, em cima de um debate de “contemporaneidade”; visto como o “enunciador” de uma “nova” linguagem artística que “revolucionou” a técnica circense.
São poucos historiadores que se dedicam à história do circo, e pouquíssimos que, como Erminia, reconhecem no processo de produção circense, em especial a brasileira, não uma “arte menor”, mas um imenso arsenal de saberes e práticas que já produziam teatro em grande escala, com peças ricamente elaboradas, contando com grande número de artistas, músicos profissionais e sofisticado aparato cênico. Para quem julga, como de hábito, que o teatro brasileiro só viria a existir a partir da década de 1940 com as peças de Nelson Rodrigues, é uma imensa surpresa descobrir que, no início do século XX, por exemplo, o Circo de Emílio Fernandes, montou uma peça em que o Teatro São Pedro de Alcântara (atual João Caetano) era completamente inundado e que os atores representavam embaixo d’água e sobre pontes construídas especialmente para o espetáculo. Ou ainda que, durante as badaladíssimas apresentações de Sarah Bernard no Rio de Janeiro, no Teatro Lírico, palco da antológica atriz, não houve lotação plena em nenhum dia, enquanto o Circo instalado no São Pedro via todas as noites multidões concorrendo pelo ingresso para ver Rosita de La Plata. Nas palavras dos cartazes-propagandas usados para a divulgação: “Sempre enchentes! Sempre enchentes!”
A PESQUISA E OS CARTAZES-PROGRAMAS
Para levantar a grandeza e a importância desta história desconhecida do grande público, Erminia, pesquisadora incansável, consultou mais de 20 jornais e revistas, abrangendo um período em torno de 60 anos. Como a história do circo do Brasil não era tratada até então com a atenção que merece, foi através das propagandas veiculadas pelos próprios circos que foi possível obter informações cruciais na reconstituição desta história. Assim, das páginas amareladas dos jornais pesquisados foram surgindo as constituições das diversas famílias, suas mobilidades entre os vários circos, os percursos delas e dos artistas mais importantes e, o que é notável, o repertório teatral desses circenses, já que nas propagandas as pantomimas eram descritas com uma infinita riqueza de detalhes, ato a ato.
Toda essa gama de informação pode ser conferida nos dois apêndices incluídos no livro: o “Repertório teatral dos circenses”, relação composta pelas peças representadas nos circos entre 1834 e 1912, localizadas nas fontes pesquisadas pela autora, com detalhes de quem realizou o mise-en-scène, os atores, as músicas etc.; e a coleção de “Cartazes-programas”, em uma seleção da autora por sua importância e significado.
A análise desse material nos dá como que um sentimento de justiça para com a história dos inúmeros homens e mulheres que fizeram da produção circense a sua vida.
BENJAMIM DE OLIVEIRA
Como não poderia deixar de ser, a figura de Benjamim de Oliveira conduz a narrativa do livro todo. Benjamim, conhecido por um epíteto que certamente diminui seus méritos – o de “primeiro ator ou palhaço negro do Brasil”-, foi um grande ator, sim, mas também acrobata, palhaço, cantor, músico, compositor, dramaturgo, encenador e proprietário de circo.
Aos 12 anos, em 1882, fugiu da fazenda em que seus pais eram escravos, na cidade de Pará de Minas, antiga Patafufo, no interior de Minas Gerais, com um circo que passava e desde então iniciou seu aprendizado circense em vários circos, até ser reconhecido nacionalmente e colecionar inúmeros méritos. Acompanhando sua trajetória até a década de 1910, Erminia, ao mesmo tempo em que esmiúça e exemplifica a trajetória de vários outros artistas, evidencia que embora sejam notórios seu talento e qualidades individuais, ele é também resultado de um rigoroso processo de formação presente no dia-a-dia do circo. Os múltiplos talentos que as teorias artísticas contemporâneas buscam e propõem, já era realidade concreta e cotidiana na vida dos circos do século XIX e início do XX.
“Portanto, Benjamin de Oliveira não foi avis rara. Talvez tenha sido a ave que conseguiu vôos longos e graciosos, mas foi um tipo de artista semelhante a outros, de menos fama, mas com iguais talentos e qualidades. Isso não diminui em nada a sua figura, só reafirma o raciocínio geral da autora de que o circo no Brasil, muito além do espetáculo, muito além da imagem desqualificadora de ‘melodrama, acrobacia e palhaço’ que lhe tem sido atribuída, esconde um processo de formação artística para o qual devíamos olhar mais atentamente”. Restabelece, também, a importância dos compartilhamentos e trocas que Benjamim e a maioria dos circenses faziam com as várias expressões artísticas consideradas “brasileiras”, particularmente no teatro e na música, com parcerias como Baiano, Mário Pinheiro, Paulino Sacramento, Eduardo das Neves e Catulo da Paixão Cearense; com a Gravadora Columbia Record onde gravou seis discos, e no cinema com Labanca, Leal & Cia.
E temos assim a história de um circo que, se na sua natureza é nômade, internacional e poliglota, passa a ser brasileiro, repleto de acrobacias, teatro, música e ginga, muita ginga.
A AUTORA
Erminia Silvia, quarta geração circense no Brasil, filha de Barry Charles Silva, é mestre e doutora pelo departamento de História da Universidade Estadual de Campinas. Sua pesquisa sobre o processo histórico do circo e circenses no Brasil, resultou na dissertação de mestrado (1996) – O Circo: Sua arte e seus saberes. O circo no Brasil do final do século XIX a meados do XXI; e na tese de doutorado (2003) – As múltiplas linguagens na teatralidade circense: Benjamim de Oliveira e o circo-teatro, no Brasil, no final do século XIX e início do XX, que agora se transforma neste livro.
É professora de história do circo no Cefac – Centro de Formação Profissional em Artes Circenses (SP) e desenvolve oficinas de história na Escola Nacional de Circo (RJ); uma das coordenadoras do site www.pindoramacircus.com.br. Atua como consultora junto a grupos de artistas e coletivos, como a Asfaci – Associação de Famílias e Artistas Circenses, Associação de Escolas de Circo e a Rede Circo do Mundo, Brasil – Circo Social.
CIRCO TEATRO: BENJAMIM DE OLIVEIRA E TEATRALIDADE CIRCENSE NO BRASILERMINIA SILVAEDITORA ALTANAAPOIO: FunarteParabólica ComunicaçãoLANÇAMENTOLocal: Circo ZanniMemorial da América LatinaEndereço: Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664Entrada: Portão 08Data: 20.08.2007Horário: 19hPARABÓLICA COMUNICAÇÃOPaulo Arcuri+11 6378-3858paulo@aparabolica.com.br