Artigos

Circo-teatro é teatro no circo

Silva, Erminia “Circo-teatro é teatro no circo”, in Revista Anjos do Picadeiro 7 – Encontro Internacional de Palhaços. Rio de Janeiro: Teatro de Anônimo/Petrobrás; Editora: Ieda Magri, maio de 2009, pp. 32-51. ISSN 1983-6449, 105 p.


No sexto encontro dos Anjos, em Salvador, a presença de circenses itinerantes nos espetáculos apresentados teve um aumento significativo em relação às outras versões. Marcante o fato de terem participado como artistas, com seus números ou como debatedores de mesas. Entretanto, com relação às oficinas, ainda não tinha sido daquela vez.

No Anjos do Picadeiro 7 uma nova situação foi vivida nas oficinas. Teófanes Silveira, o palhaço Biribinha, que havia se apresentado no espetáculo de abertura nos Anjos 6, foi convidado a dar uma oficina de quatro dias de circo-teatro. O grupo que participou desse trabalho, no final, apresentou uma peça: A última moda em Paris, do rol das que eram representadas nos circos itinerantes, em particular o do Biribinha.

Uma reflexão sobre a ausência de circenses brasileiros, oriundos dos circos itinerantes de lona ou dos “tradicionais” nessas atividades, eu já havia feito no artigo “Anjos do Picadeiro: história em ato”, na publicação a partir da comemoração dos dez anos nos Anjos do Picadeiro 5, em 2006. Entre as mesas de debate desse Encontro, participei de uma cujo tema era “Palhaço bom nasce pronto?”. Entre os debatedores da mesa, uma fala de Geraldo Santos Passos (Circo Teatro Biriba), me estimulou a escrever o artigo. Ele passou a imagem de que não sabia ensinar, que não tinha metodologia para, por exemplo, ministrar uma oficina. Naquele texto, além de considerar tudo o que até esse momento tenho escrito em minhas pesquisas e análises sobre o processo de formação dos circenses brasileiros, como o palhaço Biriba, originários da itinerância ou de grupos familiares “tradicionais”, chamei atenção para dois pontos: primeiro, a necessidade dos mesmos acreditarem que são portadores de saberes e de fazeres que são verdadeiras metodologias em si, construídas ali no mundo do trabalho circense, o que lhes permitia voltar a ser mestres-aprendizes; segundo, que os circenses novos das cidades ao praticarem a diversidade o fizessem incorporando e entendendo o quanto aqueles têm o que ensinar e a importância de incorporá-los em eventos como festivais e encontros, em particular nos Anjos.

Na oficina de Biribinha, no Anjos 7, de todo o grupo, somente o mestre tinha origem no “circo tradicional”. Todos os outros eram artistas oriundos de distintas regiões do país, com diferentes processos de formação; todos eram palhaços e/ou cômicos, alguns tinham passado por formações circenses específicas em cursos, oficinas, escolas, etc. Todos eram atores. Considero essa oficina inédita pelo fato do mestre ser circense brasileiro, que nasceu e pertenceu a uma geração familiar tradicional que formava tanto nas acrobacias em geral, na palhaçaria e, principalmente, no circo-teatro.

Diversas experiências têm ocorrido pelo Brasil afora entre circenses tradicionais e jovens artistas. Entretanto, a sua maioria tem se voltado para o aprendizado de técnicas acrobáticas, poucas se voltam para o processo de formação da dramaturgia do circo-teatro. E foi isso o que aconteceu. Já havia uma prática no Anjos de se realizar oficinas com circenses. Leris Colombaioni, que também possui característica de ser de origem familiar circense, sistematicamente é convidado para dar oficinas. Mas, nenhum mestre daqui havia ainda sido convidado para dar uma dessas oficinas e, principalmente, montar uma peça.

No final do processo e após a apresentação da peça, conversei com os vários componentes do grupo. Na época me propus realizar entrevistas com todos os participantes: do mestre Biribinha aos alunos e, a partir disso, escrever sobre os significados de terem participado de uma experiência tão singular. Infelizmente, isso não aconteceu como planejado. Mas, mesmo não realizando uma conversa pessoal como proposto, o grupo que participou da oficina iniciou algumas trocas de e-mails pela Internet, com pontos importantes sobre todo o processo e montagem de uma peça e sobre o circo-teatro em si, surgidos a partir da oficina, da apresentação e da relação com o público. Um debate que extrapolou as fronteiras do Anjos, do Rio de Janeiro, dos quatro dias. Acho que é isso mesmo que desejam seus organizadores. Mas, infelizmente, como tudo isso aconteceu no último mês do ano, não foi possível ainda retomar esse diálogo.

E o que foi parte desse diálogo? Foram levantadas questões e dúvidas sobre os diversos significados de tudo o que envolve a produção da dramaturgia do que se entende por circo-teatro: gênero, público, encenação, texto, contemporaneidade, estética, ética, e muito mais.

Estou ao par dessa discussão, pois mesmo não fazendo parte do grupo que fez a oficina fui incluída na lista dos participantes da mesma. Esio Magalhães (ver referência biográfica no final) já fazia parte dessa lista, mesmo que também não tenha feito parte do grupo.

Desses papos e discussões tirei algumas observações e questões que me provocaram intensamente dessa experiência ocorrida no Anjos 7, mas que no fundo só fez aflorar em mim muitas que já vêm caminhando comigo, nesse meu andar como circense militante e como pesquisadora da história do circo e do próprio circo-teatro brasileiro.

Essas questões já fazem parte das elaborações que venho realizando, bem como estão presentes na maioria dos debates que vêm ocorrendo nos últimos dez anos sobre a produção da dramaturgia do circo-teatro, o que resulta em debates constantes em torno da estética e da ética; além disso, senti urgência em tentar re-iniciar minhas inquietações colocando no papel e expor ao diálogo. Entretanto, antes de iniciar a escrita, senti necessidade de fazer isso com pessoas que pudessem contribuir, ampliar, questionar e problematizar tudo o que eu estava elaborando. Nesse sentido, no final de janeiro de 2009, propus uma roda de conversa com Esio Magalhães (ator, mímico, teatro de rua e clown) e Tiche Viana (diretora e pesquisadora de teatro, especializada na linguagem das máscaras e Commedia dell’Arte), ambos fundadores do Barracão Teatro (Campinas-SP); e com Emerson Elias Merhy (professor e pesquisador na área de micropolítica do trabalho).

Daqui em diante, o que foi conversado na roda estará por trás desse texto através de minhas palavras, mas sob minha responsabilidade. Adianto apenas que infelizmente não vai ser possível tratar de tudo o que discutimos, e que terei que focar algumas questões.

Claro que, como historiadora/pesquisadora, um dos focos de elaboração tratou da produção da memória sobre o circo-teatro em geral e sua dramaturgia em particular, nos últimos 30 anos.

Por quê faço esse recorte temporal? Porque de todas as possíveis produções de memória sobre o tema, de 30 anos para cá houve um aumento significativo de procura pelo resgate da mesma. Com a entrada dos novos sujeitos históricos na produção da linguagem circense: alunos, mestres e proprietários de escolas de circo, autodidatas, circo social, houve também um aumento de alunos e pesquisadores para dentro dos campos universitários. Particularmente no campo da pesquisa, realizados pela diversidade desses sujeitos, acadêmicos ou não, a produção teatral circense tornou-se um dos objetos de estudo.

Com relação ao tema circo-teatro minhas elaborações estão sempre atentas para a questão do fazer dramático, da dramaturgia, da produção do artista/ator voltado para o circo-teatro.

Creio que sempre tenho me perguntado, quando me vejo diante desse tema, quais são as memórias que têm nos conduzido a compreender o circo-teatro no Brasil e como elas são ou foram produzidas? Quais as memórias que Biribinhas e Biribas portam e produzem? Quais têm sido oficializadas pelas publicações e pesquisas de estudiosos acadêmicos ou não?

O que isso tem a ver com uma sensação de que defender a noção de circo-teatro como gênero é algo fora de lugar ou pertencente a uma memória específica, de uma certa fase e portanto datada?

A história polifônica e polissêmica do circo brasileiro nos autoriza mais a falar em teatro no circo apresentando todas as modalidades possíveis de representações teatrais do que em circo-teatro com um gênero único, ou pelo menos dois como se tem definido: comédia e (melo)drama.

A formação do artista circense em cada período histórico e dentro do complexo significado do conceito de teatralidade circense, englobou as mais variadas formas de expressões artísticas constituintes do espetáculo circense. Uma das principais características desse fazer circense de todo o século XIX até pelo menos 1950, era sua contemporaneidade com a diversidade de gêneros teatrais, musicais e da dança produzidos, o que garantia presença nos palcos/picadeiros diálogo e mútua constitutividade que estabeleciam com os movimentos culturais da sua época. O artista/ator nesse contexto era múltiplo: acrobata, autor, ator, cantor, dançarino, músico, cenógrafo, figurinista, sonoplasta, maquiador, coreografia, produtor, entre muitos outros.

Com essas características de contemporaneidade e de sinergia com seu tempo e culturas locais, vivendo o próprio teatro que se fazia na sua época, como pensar a história teatral circense como produção de uma única forma de representação e gênero único?

Caminhar para uma reflexão sobre as várias memórias que produzem hoje a noção do que foi o circo-teatro nos leva a pelo menos dois lugares, entre muitos. Um sobre a construção de uma memória que se produziu através da narrativa constituída no campo dos estudos e pesquisas realizadas nos espaços acadêmicos, em particular. Outro, sobre a memória produzida pelo próprio artista circense do circo itinerante, os “tradicionais” do circo-família, que está hoje narrando a partir de sua existência o que foi e é esse teatro no circo e do qual ele foi protagonista, bem como seus pais e parentes.

A década de 1970 foi um dos primeiros momentos em que o tema circo foi foco de pesquisa para dentro da academia. Alguns pesquisadores da Universidade de São Paulo, em suas pesquisas para mestrados e doutorados nos cursos de História, Ciências Sociais, Política e Antropologia, voltaram-se para o estudo dos lazeres, festas da classe operária e escolheram o circo como meio para chegar ao que essa classe fazia quando não estava nas fábricas. Utilizando de metodologias da sociologia e antropologia, localizaram diversos circos que estavam na periferia da cidade de São Paulo e iniciaram suas pesquisas, através de observação do cotidiano dos circenses, assistindo aos espetáculos, bem como entrevistando-os.

Uma análise mais detalhada a respeito dessa produção pode ser encontrada em minha dissertação de mestrado O circo: sua arte e seus saberes (no prelo para ser publicado em livro pela Editora Funarte). Não é intenção e não é possível, nesse texto, analisar cada autor, mas procurarei resumir as idéias gerais que estavam presentes em algumas daquelas publicações (ver referência bibliográfica).

Uma parte destes estudos sobre o circo no Brasil, que tomou o circo como objeto, trabalhou com algumas informações históricas sobre a produção do espetáculo circense, priorizando em particular nas suas análises o circo-teatro. Estes pesquisadores tinham como objetivo discutir os processos culturais a partir de uma ótica que os enquadrava em pólos antagônicos como elite e popular, centro e periferia, rural e urbano, permeados pelo embate entre cultura popular e cultura de massa. Sob o pano de fundo do tratamento do campo da cultura a partir da oposição dominantes versus dominados, na procura de entender, através das ofertas de lazer, o lugar, o modo de ser e o que era dito pelas classes populares, escolheram o circo como um de seus mediadores, a fim de demonstrar o quanto as manifestações populares e as relações sociais “simples” da zona rural foram “invadidas” e “aniquiladas” pelas relações econômicas dominadoras da “cultura de massa” e pela “indústria cultural”.

Por quê retomar a essa discussão de 40 anos atrás? Porque há componentes destes estudos que interessam considerar para um diálogo mais preciso sobre a construção de uma certa memória sobre a produção dramatúrgica do circo-teatro. Em primeiro lugar, menciono a maneira pela qual estabeleceram a relação entre surgimento do circo-teatro, cultura de massa e indústria cultural, como parte do processo de descaracterização do circo como o espetáculo “mais popular”. Esta perspectiva influenciou ou mesmo reforçou algumas análises que seguem este tipo de compreensão sobre a história do circo e sua “desagregação” enquanto produção artística, como é o caso de algumas pesquisas históricas na área teatral realizadas mais recentemente. Em segundo, pelo fato de fazerem uma conexão histórica sobre a formação deste circo-teatro, que assume e reafirma uma certa memória oficial – gerada de modo quase uniforme pelos memorialistas e pelos circenses que essas pesquisas entrevistaram – que afirma a noção de fundação da teatralidade circense do circo-teatro como resultado do ato individual de Benjamin de Oliveira.

Esse conjunto de memórias produzida no final da década de 1970, na academia, mas que se alimenta também de uma certa memória datada de circenses sobre o circo-teatro, influenciou várias pesquisas realizadas sobre esse tema e, de alguma forma, ainda orienta alguns trabalhos. As mais constantes são que o teatro foi o responsável pela decadência do circo tradicional; que com circo-teatro e shows, eram espaços tipicamente invadidos pelos meios de comunicação de massa: televisão, rádio e indústria do disco (essa na sua produção das duplas e músicas sertanejas). O que só reforçava a ideia da impureza do espetáculo.

Sem uma pesquisa histórica mais aprofundada, inclusive de vários outros momentos, a construção de um olhar sobre a produção da dramaturgia circense na década de 1970 e em alguns circos da periferia da cidade de São Paulo, sudeste brasileiro, tornou-se a própria história da teatralidade circense, no Brasil, desconhecendo ou mesmo apagando várias outras; inclusive que a produção dessa cidade difere dos espetáculos circenses no norte, nordeste e centro-oeste brasileiro. A produção circense da periferia de São Paulo transformou-se “na” memória científica oficial da produção circense brasileira.

Como aqueles pesquisadores reproduziram uma memória a partir da observação participante e entrevistas dos circenses, utilizando somente a fonte oral sem cruzamento com outras fontes e outras memórias históricas, restringiram a riqueza da produção histórica da teatralidade circense naquilo que estava se produzindo no final dos anos de 1970 generalizando para todo o Brasil; a partir daí reduziram a diversidade da dramaturgia desenvolvida pelos circenses nos quase 150 anos de história até então, em apenas dois gêneros que seriam representados: melodramas e comédias.

As primeiras fontes que me levaram a pesquisar as expressões da teatralidade circense, nas quais o circo-teatro foi importante componente e que me permitiram definir o circo como um espaço polissêmico e polifônico, foram as levantadas para a elaboração de minha dissertação de mestrado. Realizei diversas entrevistas com artistas e li textos de memorialistas circenses. Através delas, pude perceber a multiplicidade das linguagens dos espetáculos e um intenso debate, tanto entre os circenses quanto na bibliografia pertinente, que ao mesmo tempo em que a memória circense reconhecia a existência do circo-teatro, acabava também por responsabilizá-lo pela distorção do que seria um espetáculo circense “puro”.

Este debate em torno do que seria um circo “puro” não é recente, já ocorria desde o início do século XIX. O que se entendia por “puro” era um espetáculo que apresentasse somente números ginásticos, acrobáticos e de animais, com palhaços realizando mímicas e sem falas. O debate não se dava apenas na esfera circense: cronistas, letrados, jornalistas e teatrólogos também apontavam que, quando aqueles artistas incorporavam elementos diferentes, comprometiam o “típico e tradicional” espetáculo do circo.

Para alguns circenses o teatro teria sido o “novo” elemento que a “tradição” incorporou – reformulando a maneira de apresentar o espetáculo. Entretanto, a análise que aqui se faz é que o teatro não era algo “novo”, mas sim constituinte da produção artística circense. Várias foram as incorporações do modo de fazer teatro, no Brasil, que os circenses iam fundindo ao seu modo de produzir o circo como espetáculo. Quaisquer outras “novas” expressões artísticas eram aprendidas, resignificadas e incorporadas nos mesmos moldes do conjunto dos outros elementos que definiam o circo-família, na sua contemporaneidade.

Não há consenso também entre os circenses quanto às explicações adotadas nesse estudo. Não analisam o teatro no circo como um divisor entre o mais ou o menos “popular”, nem mesmo aceitam que foram divididos em circos da periferia ou do centro da cidade por causa do teatro. Mas, imputam ao teatro o fato de que muitos artistas deixaram de aprender e desenvolver números acrobáticos para tornarem-se apenas atores de peças.

Há quem identifique como Antolin Garcia, a entrada do teatro no circo como o momento em que teve início a ruptura da maneira de ser do artista circense “completo”, uma vez que os circenses teriam abandonado os números. Esse autor faz parte de certa “seleção de memória” ao afirmar que teria sido Benjamim de Oliveira o introdutor do circo-teatro, no Brasil. Imputa a ele todo tipo de problema que isso resultou, além do fato de que os circos apresentavam um teatro de má qualidade.

O teatro do negro teve seus seguidores e logo todos os circos passaram a apresentar um teatro precário, debaixo de suas lonas; as famílias tradicionais circenses pararam a prática de seus atos, comprimidas pelas exigências do teatro, que havia dominado o gosto e a opinião pública. Assim, foram-se extinguindo os magníficos números acrobáticos, para dar lugar a uma avalancha de maus atores, incompetentes e iletrados, que faziam do drama uma comédia e da comédia um drama.

(…)

A decadência sacudiu o circo de vez, porque o elemento já não era o mesmo. Não sou (…) saudosista, mas cumprirei o dever de não falsear a verdade; os artistas brasileiros de outros tempos eram completos desde o porte em cena à apresentação perfeita de suas habilidades. Embora se especializassem em determinados atos, conheciam ainda todos os demais exercícios praticados sob o toldo (…) Parte dos atuais componentes, ao contrário de seus antepassados, corrompem a arte circense, apresentando-se ao público destituídos de valor, sem nenhum requisito que os recomende como dignatários [de uma arte]. (Garcia, 1976, pp. 165-166)

Fica claro nesse autor, bem como em alguns circenses, intelectuais e memorialistas, a interpretação de que não havia teatro antes e que sua entrada teria colocado a “tradição” à prova, chegando mesmo a destruí-la, sendo a razão para não se transmitir mais à geração seguinte todo o conjunto de saberes e práticas. Essas falas, tomadas isoladamente, também parecem reforçar as análises que vêem o teatro como o divisor do circo podendo-se supor, inclusive, que havia conflitos entre circenses-atores e circenses-acrobatas.

Todo trabalho de pesquisa por mim desenvolvido para o livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil, e para esse estudo, revelou que, após percorrer as trajetórias dos artistas, fica difícil entender que existiu uma única forma de organizar o espetáculo circense, e nem que qualquer uma delas tenha sido responsável por sua decadência. Para mim, a noção de decadência ou equivalentes não dão conta da riqueza da produção circense na sua história, mesmo em momentos de grandes dificuldades para a sua existência. Há uma forte tendência em analisar mudanças e transformações como a morte do circo.

Ao contrário, a teatralidade circense, na sua expressão como circo-teatro fez parte da formação e constituição do que era ser artista nos séculos XVIII, XIX e parte do início do XX. A análise efetuada nos relatos das fontes pesquisadas revela uma contradição. Quando solicitada uma descrição sobre a aprendizagem do teatro, a resposta é unânime: aprender e treinar seus números “tradicionais” sempre fez parte da sua formação em qualquer circunstância; mesmo porque, em nenhum momento, esses números deixaram de ser apresentados ou mesmo incorporados às peças teatrais, como já era feito na época das pantomimas. O fato é que antes do palco propriamente dito, os circenses já encenavam peças no picadeiro. O palco não vem “destruir” o picadeiro, ou seja, não é o teatro que vai comprometer a “tradição”. Ele é incorporado, não sendo considerado um elemento estranho, pois já fazia parte do conjunto do conhecimento circense.

A organização do trabalho, o modo de produção do espetáculo e o processo de formação/socialização/aprendizagem formavam um conjunto, eram vinculados e mutuamente dependentes. Com isso, parto da ideia de que os circenses devem ser vistos como um grupo que articulava uma estrutura, que a princípio seria vista como um núcleo fixo com redes de atualização, envolvendo matrizes e procedimentos em constante reelaboração e re-significação. Adotavam procedimentos que adequavam, incorporavam e produziam um espetáculo para cada público manipulando elementos de outras variáveis artísticas já disponíveis, gerando novas e múltiplas versões da teatralidade. Compor um espetáculo circense nesta situação era refazer de modo permanente estas mesmas propriedades de constituição e a sua distinção em relação aos outros modos de construção dos espetáculos artísticos.

Os circenses do final da década de 1970, fontes principais dos estudos realizados, eram portadores das memórias e saberes de seus pais, os quais vivenciaram um determinado modo de estética teatral que foi sendo construída e se consolidando a partir da década de 1920/30. Tal estética – que não era exclusiva do fazer teatral circense, mas de toda uma geração do teatro em geral –, era definida por determinações de personagens como uma certa tipificação.

Rosyane Trotta, ao descrever a “técnica dos ensaiadores”, naquele período, diz que cabia a eles, em linhas gerais, “marcar o espetáculo”, ou seja, um “bom ensaiador” era “aquele que, no menor prazo de tempo, articulava os atores de modo que não se esbarrassem e tornassem a cena compreensível”; os cuidados com os objetos de cena e os horários dos atores eram tarefas adicionais. (Trotta, 1994). No texto da autora, essa descrição refere-se apenas à “história do teatro brasileiro”.

Diversidade de fontes me informa sobre a diversidade dos gêneros teatrais, mas não consigo chegar diretamente no modo como representavam. Mas, consigo ver o que está sendo noticiado nas propagandas dos espetáculos, e isso me dá uma visibilidade boa de que o que acontecia no circo acontecia nos teatros, em termos de gênero. Então é a farsa, a mágica, cena ou ato cômico, burletas, farsa dramática, dramas fantásticos, sainetes, drama policial, revista do ano, peças sacras, óperas, operetas, além disso estão adaptando boa parte da literatura produzida ou traduzida no Brasil. Posteriormente, realizavam adaptações dos filmes épicos, musicais, dramas e comédias do cinema norte americano. Assim como acontecia no século XIX com toda a produção musical e da dança, com o cinema foram introduzidos nos espetáculos, em particular nas peças teatrais o sapateado, os foxtrotese e ragtimes, sempre acompanhadas pela banda ou orquestra composta pelos próprios artistas circenses. Poucos sabem que vários circos adaptaram Shakespeare (Flauta Mágica, Otelo, entre outros), José de Alencar (O Guarany), entre outros para os palcos/picadeiros circenses.

Outras fontes também fizeram ver que o que estava sendo produzido nos circos e nos teatros eram as mesmas peças, os vários profissionais do teatro que trabalhavam também nos palcos/picadeiros circenses: atores, músicos, ensaiadores ou responsáveis pela mise-en-scène, adaptadores de textos ou enredos, coreógrafos, pintores dos telões (futuros cenógrafos), dançarinos e, principalmente um profissional pouco divulgado pelas histórias oficiais – o dramaturgo.

Foi um período em que todo o tipo de gênero teatral da época: sério, alegre, musical, de tudo o que era entendido por ferramentas técnicas para a produção teatral (cenário, figurino, iluminação, etc.), dos profissionais: autores, adaptadores, maestros, músicos, passava pelo intercâmbio entre os grupos circenses e os grupos teatrais.

Vários artistas que são fontes orais hoje, 2009, nasceram quando no teatro em geral se realizava uma forma de representação teatral no qual a determinado ator ou atriz sempre cabia um tipo de papel a ser representado; no qual cada ator circense representava apenas e unicamente um personagem ou tipos fixos, como: o galã, a mocinha, o vilão, a vilã, a caricata, o velho, a velha, o cômico. É uma estética teatral do período de 1920/30 e, portanto, vai ser também a estética do teatro no circo.

Essa produção não era exclusiva do circo, era teatral. Esio Magalhães colocou como dúvida se existiriam fontes para corroborar a minha elaboração a respeito de que essa forma de representação, de tipos fixos e dois únicos gêneros: o melodrama e a comédia, era datada, ou seja, era produto de um período e não a “única história” do teatro no circo?

Procuro demonstrar isso através da vida artística de Lili Cardona – artista circense do Circo Spinelli, acrobata e atriz reconhecida até mesmo pela crítica teatral dos jornais do Rio de Janeiro, no final do século XIX até pelo menos 1920. Se dermos a mão a ela, perseguindo sua trajetória artística, a vemos representar diversos papéis em diversos gêneros teatrais: vilã, mocinha, moleque, rainha, dama da sociedade, dançarina, cupido, entre outros. Quando se montava peças do gênero revista do ano, cada ator ou atriz assumia diversos personagens, num momento era um político, em outro representava o “samba”, depois a “enchente”, a febre amarela, um ator famoso do momento, um juiz, etc. Além disso, era preciso que o ator soubesse, necessariamente, dançar e cantar. Recorri a Lili como fio condutor para exemplificar, mas a história de vida da maioria dos circenses do período possibilita ter essa visibilidade sobre a produção teatral. Nesse sentido é que, em meu livro, não trabalho em nenhum momento a caracterização de personagens, pois trato de um período anterior às décadas de 1920/30.

Por isso, afirmo que a maior parte significativa da memória produzida hoje sobre o processo histórico do circo-teatro brasileiro é de uma representação tipificada datada. Própria de quem nasceu exatamente nesse período e não tem, nem precisa ter, um aprofundamento maior da pesquisa histórica circense. Essa forma de representação vai se estabelecer na produção teatral do circo até hoje. Por várias razões, mas vou tratar de apenas uma delas. A partir de 1920/30, até por conta do sucesso que faziam os circos-teatro, apresentavam uma peça por noite, o que dificultava em muito a formação de artistas para papéis muito diferentes. O ponto que já existia desde o século XIX, e não era um privilégio do circo, vai nesse período tornar-se figura principal, tanto que alguns autores chegam a defini-lo como uma espécie de ensaiador, pois tinha que dominar todos os papéis. Antes desse período uma mesma peça ficava em cartaz durante muito tempo, por exemplo, a adaptação da A Viúva Alegre, em 1910 por Benjamim de Oliveira para o circo, foi apresentada no mínimo durante três anos.

A memória de quem nasceu naquele período relata esse modo de representação: peças repetidas muitas vezes e papéis tipificados. Além de tomarem como marcadores fixos esse certo formato de representação teatral, de um determinado período histórico que acabou sendo realizado até quase o fim do circo-teatro, muitos pesquisadores de hoje que se voltam para estudar, resgatar e representar o circo-teatro o fazem querendo recuperar essas peças antigas, em particular do momento do melodrama.

Mas, é importante deixar claro que o fato de repetir não significava ausência de movimento, de mudanças. Por mais que o espetáculo daquele período fosse marcado pela repetição, uma peça por noite e os papéis tipificados, ao se analisar os folhetos e manuscritos das peças teatrais, mas também a própria informação oral dos circenses, é possível dizer que no interior dessa repetição havia também inovação, com incorporação o tempo todo das novidades do mundo artístico. Por exemplo, os circenses iam ao cinema inúmeras vezes para assistir aos filmes de Fred Astaire para aprenderem a sapatear e incorporavam a dança em suas peças; assistiam Ben Hur e adaptavam para o palco/picadeiro. Quando não compravam, eles próprios, os aparelhos cinematográficos para exibirem cinema nos espetáculos e, em outro momento, montarem as peças.

Então, apesar da tipificação dos personagens, mesmo assim havia uma variação dos textos, músicas, danças, e em particular o próprio texto era alterado dependendo da cidade, do público, do padre, do delegado, de ser matine ou não. Apesar da tipificação dos personagens, não era a mesma apresentação, a mesma peça era montada de formas diferentes. E mesmo dentro da tipificação eram incluídos novos conteúdos para os personagens. Um exemplo disso é o próprio personagem palhaço: a princípio tipificado, mas nunca é o mesmo em nenhuma representação.

Quando toda essa memória é produzida para 2009, além da memória oral só ter uma parte da história do circo teatro, de uma forma datada de representação no circo-teatro, eles trazem o texto para os dias de hoje, “quase” que montando a peça de forma estética e até ética de quando ela foi produzida, ou seja, no formato de 50 anos atrás, e inclusive no contexto ético-moral daquele período, quase que dando a sensação de que algo está fora de lugar. Como não há incorporação de todo conjunto de polissemia e polifonia que significava a produção do circo-teatro descrito até aqui, que ao mesmo tempo tipificava mas diversificava, o que se faz é uma pobre cristalização defasada de uma forma de representação, de outro período e lugar. Porque mesmo que fosse tipificada, se a moda era o sapateado, a vilã ou a mocinha tinham que aprender a dança e incluir na peça, mesmo que isso não fizesse parte do texto original. Quando se tenta “recuperar” a memória do circo-teatro como sendo essa dos anos 1920/1930 e ponto, há como um engessamento dessa memória.

Na roda de conversa que mencionei acima, Tiche Viana analisou o quanto fazia sentido esse debate sobre uma dada forma de representação e dramaturgia de uma época, ser “transportada” para outra. Como especialista na linguagem das máscaras e Commedia dell’Arte, afirmou que nos cursos que ministra sobre esses temas, bem como em relação às montagens realizadas em torno dos personagens da Commedia, os modos de se significar as representações dos personagens ou tipos fixos são entendidos às vezes em um debate tenso.

Para ela a pesquisa realizada por alguns historiadores europeus questiona mitos criados em torno daqueles personagens mas, principalmente, sobre as origens da Commedia e sua profissionalização. Como não há condições de reproduzir toda nossa conversa em roda, destacarei, nesse momento, a referência que ela traz sobre um ponto em particular. Naqueles estudos históricos afirmava-se que o que assegurava a existência em alta, por séculos, da Commedia, conseguindo se comunicar com todos os níveis de público (das ruas, dos palácios, etc.), foi a capacidade dos atores não se especializarem. Tiche aponta que, em um primeiro momento, essa análise lhe causou estranhamento, pois pensou: eram tipos fixos e como que um tipo fixo não é uma especialização?

Entretanto, aqueles estudos lhe fizeram todo sentido e coincidiam com seu próprio fazer teatral. Pois, por mais que se fizesse um tipo fixo, esse tinha que absorver todos os elementos que o tornasse capaz de interagir com a platéia daquele lugar e daquela hora; tinha que estabelecer relação que fizesse sentido para quem estava fazendo e vendo. Segundo ela isso perpetuou a Commedia dell’Arte por muito tempo, pois pegava no desejo: de ver aquilo durante tanto tempo.

Há todo um conjunto de desenhos que se tornaram registros de memória dos personagens da comédia. Para uma parte dos grupos que estudam e/ou representam esse gênero, quando vão construir um dos muitos personagens, por exemplo o Arlequim, há uma tendência de representá-lo de acordo com posturas corporais que o caracterizavam dançando; sem se darem conta que esses desenhos eram feitos por uma pessoa que, em geral, captava os atores quando estavam fazendo a convocatória para o seu espetáculo e não necessariamente encenando. Por isso, nesses desenhos estão sempre bailando, como se estivessem sempre em festa.

No entanto, é justamente a partir desses desenhos que se cristalizou uma “imagem”, ou se produziu uma memória “engessada” do Arlequim para qualquer período histórico, o que não é real, pois não é possível imaginar uma forma do conceber teatral, que possua uma história de mais de quatro séculos como a Commedia dell’Arte e a linguagem das máscaras, que tenha sido representada de uma única maneira.

Apenas para exemplificar uma possibilidade diferente de se trabalhar a produção do circo-teatro nos dias de hoje, sem ser uma repetição de um modelo de 50 anos atrás, menciono o trabalho que fiz junto à Cia. Estável e Luís Alberto de Abreu como consultora da história de circo e circo-teatro. Após quase seis meses de estudos, Abreu escreveu O Auto do Circo e o grupo teatral montou, com maestria, a peça. A princípio a estréia foi em um teatro tipo italiano. Algum tempo depois adquiriram uma lona e, após as adaptações que o novo espaço exigia, hoje ela é encenada somente sob a lona de um circo itinerante. Isso é circo-teatro, não é melodrama, não é tipificado, é teatro no circo. A história do circo do século XIX até pelo menos 1920, era teatro no circo, e tudo o que isso representa de polissemia e polifonia. Não era só uma tipificação de personagens empobrecida e era uma diversificação de gêneros.

É possível fazer teatro no circo com as peças antigas, mas atualizando-as em todos os sentidos estéticos inventados até esse século XXI. É desejável fazer teatro no circo com novas peças escritas, ocupando o espaço da lona em toda a sua plenitude. Isso é circo-teatro.

A interação, a sinergia com seu tempo, o fazer sempre igual e sempre ser diferente, faz com que montagens de textos teatrais levados nos palcos/picadeiros circenses estejam em sintonia, também, com a questão ética-moral do público que as assiste.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Artigo: “Anjos do Picadeiro: história em ato”, in Revista Anjos do Picadeiro 5. Rio de Janeiro: realização Teatro de Anônimo; Editores Ieda Magri e Sidney Cruz, Publicação do 5º Encontro Internacional de Palhaços, dezembro de 2006, pp. 8-19.

Avanzi, Roger e Tamaoki, Verônica – Circo Nerino. São Paulo: Pindorama Circus/Códex, 2004.

Barriguelli, José Claudio – “O Teatro Popular Rural: o Circo-Teatro”, in Debate e Crítica, São Paulo: Revista Quadrimensal de Ciências Sociais, nº 3, julho/1974, pp. 107 a 120.

Castro, Alice Viveiros de – O Elogia da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.

Duarte, Regina Horta – Noites circenses – Espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

––––––––––––––––––– O circo em cartaz. Belo Horizonte: Einthoven Científica Ltda., 2001.

Garcia, Antolin – O Circo (a pitoresca turne do circo Garcia através à África e países asiáticos). São Paulo: Edições DAG. Escrito em 1962 e publicado em 1976.

Montes, Maria Lúcia Aparecida – Lazer e ideologia: a representação do social e do político na cultura popular. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1983.

Paschoa Júnior, Pedro Della – “O Circo – Teatro Popular”, in Cadernos de Lazer 3. São Paulo: Sesc-SP/Brasiliense, 1978, pp. 18 a 28.

Silva, Erminia – Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Editora Altana, 2007.

______________ O circo: suas artes e seus saberes. O circo no Brasil do final do século XIX a meados do XX. Campinas: Dissertação de Mestrado, 1996. À disposição no www.pindoramacircus.com.br – no prelo

Related posts

A educação e o circo social

Silva

Sarrasani. Entre la fábula y la epopeya

circon

Nem 8, Nem 80!

circon