A Função Social do Clown

O Clown é um animal político também. Assim como definiu Aristótelessobre a sociabilidade do ser humano, o Clown nas relações que criacom o público adota também atitudes e posições políticas deconvívio social.

Recentemente,tive contato com profissionais que desenvolvem a linguagem do Clowndentro de hospitais e casas de saúde, umaexperiência social riquíssima sem dúvida, pela qual todos estesprofissionais devem nutrir grande orgulho e assumir muitaresponsabilidade. Neste trabalho, percebe-se mais claramente a funçãosocial do Clown, numa relação com o público que vai além dacomicidade da cena. Em suas entrevistas, Patch Adams, o famoso médicoe clown americano, que espalhou ao mundo o sonho de humanizar otratamento hospitalar, e acima de tudo o respeito à dignidade dapessoa, o amor e a alegria, sempre diz: “Friendshipis the best medicine“(Amizade é o melhorremédio).

Parece-meinevitável e natural o envolvimento emocional entre o Clown e aplatéia, e numa relação tão íntima e próxima como noshospitais, este envolvimento não é diferente. Se o Clown conquista,no Circo, a torcida do público, o carinho das crianças, no hospitalele passa a ser, além de médico divertido, uma visita especial, umamigo confidente, quase um parente. Sem dúvida, o papel social ficaclaro, então, dada a importância do artista na assistênciacúmplice dos pacientes, familiares, e até dos funcionários dohospital.

O Clown, historicamente, vem do povo. Trabalha com valores sociais,princípios éticos, temas ligados à natureza humana, colocando naação cômica uma identificação com a platéia para expor seuponto de vista crítico, subversivo, excêntrico, exótico,exagerado, absurdo, reflexivo, lírico, irônico, sutil, na intençãode fazer rir. O riso confirma ao artista que a mensagem chegou aopúblico e o sensibilizou.

O Circo é uma instituição social, porque também ao longo daHistória constituiu-se pelo povo, deu-lhe voz e publicidade,trabalho, e em sua formação, estabeleceu novas relações entreclasses sociais, culturas, etnias, famílias, ofícios e artes.

A aproximação entre classes sociais fica clara com a presença deartistas mambembes, por exemplo, na companhia artística formada peloex-militar inglês Philip Astley, representante da aristocracia daépoca. Astley, entre outros, seria um dos primeiros espetáculos deartes circenses da Europa, segundo a autora Erminia Silvai.

Astleyé referência importantíssima na evolução do Circo, pois a partirdele, começa-se a estabelecer as características que marcarão avida das companhias circenses, a natureza popular e nômadeemprestada dos mambembes, as relações de trabalho entre famílias,a mistura da aristocracia, da burguesia e da classe trabalhadora nasarquibancadas e no picadeiro, a presença de animais na arena, abanda militar. Cita Erminia, pg. 40-41:

O tipo de espetáculo recriadopor Astley, ao unir em torno de si as famílias de saltimbancos,grupos dos teatros de feiras, ciganos dançadores de ursos, artistasherdeiros da commediadell’arte, uniatambém o cômico e o dramático; associava a pantomima e o palhaçocom a acrobacia, o equilíbrio, as provas eqüestres e o adestramentode animais, em um mesmo espaço. Neste momento, não se criava apenasum modelo de espetáculo, mas a estrutura de uma organização.ii

É também característica da relação de trabalho dentro do Circo umagrande liberdade criativa e expressiva, e Leo Bassi, clown italianode família tradicional, destaca a fala do palhaço, entre tantosoutros artistas de um espetáculo tradicional de circo, que nãodialogam com o público. Assim diz:

Hoje temos a televisão, podemosver notícias, temos o futebol também, que são… porém, quandonão havia nada, a única coisa era a conversação e depois o circocomo um lugar de magia. Então, o palhaço era a alma e o espíritodo circo; era ele que podia falar. Porque os malabaristas nãofalavam, os acrobatas não diziam nada tampouco. Porém o palhaçofalava diretamente e interpretava as opiniões, as idéias políticastambém, de seu público; público popular, público da rua, públicode classe pobre e o público amava o palhaço, porque interpretavasuas opiniões. Era a voz do pobre, era a alma, o espírito do povo.Eu venho desta tradição antiga do circo como lugar de informações e o palhaço como olho irônico e divertido sobre o mundo, comopiniões políticas. É sempre difícil, hoje, falar disso porque amaioria do público fica com a imagem do clown com nariz vermelho esapatos e com as crianças. Hoje em dia, se você fala da funçãopolítica do clown, as pessoas te olham um pouco estranho porque nãoassociam a idéia. (fonte:http://www.alegrar.com.br/01/entrevista/2.html)

leo_bassiLeo Bassi (foto ao lado) associa ao seu trabalho de Clown a linguagem doBufão, semelhante à da estética do Teatro do Oprimido, como umpersonagem visceral, instintivo, crítico contemporâneo denunciadordos problemas sociais, questionador e provocador politizado.Entendendo, neste Teatro, o “oprimido” como a linguagem teatralda bufonaria por tratar de indivíduos ou grupos “social,cultural, política, econômica, racial ou sexualmente despossuídosdo seu direito ao Diálogo ou, de qualquer forma, diminuídos noexercício desse direito.”iii

O Bufão, por essência subversivo, marginalizado e crítico,constitui linguagem teatral que pode desempenhar papel social naconscientização do público a respeito de questões de interessepopular. É isto o que Leo Bassi pretende ao colocar num contextoaparentemente ingênuo e lúdico, do Clown tradicional, mensagenspropondo pesados questionamentos políticos e sociais.

Leo Bassi ainda resgata no Clown a sua origem histórica na Commediadell’Arte, por trazer a público a injustarealidade social do excluído na irreverência de máscaras como asde Arlequim e Pulcinella, tipos extremamente carismáticos, popularese cômicos que através de artistas como Grimald iiv influenciaram o Clown moderno. Como representante de uma tradição circense que traz consigo a experiência da Comédia Italiana, o Clown de Bassi denuncia relações sociais viciadas e exploratóriasassim como os servos Arlequim e Pulcinella desafiam e questionam seuspatrões.

Na tradição circense, o Clown denominado Augusto, que utiliza amáscara de nariz vermelho, também subverte a ordem do espetáculo,questionando as regras estabelecidas pelo Clown de Cara Branca,personagem que representa autoridade e equivale ao Mestre de Pista,ou criando uma lógica própria. Esta ação se repete na maioria dasentradas e reprises clássicas, transmitindo ao público a mensagemde que o Clown não obedece necessariamente à ordem social, maslança um novo ponto de vista, criativo e divertido sobre ela,estimulando a reflexão.

No hospital, esta subversão do Clown se dá através do tratamento humanitário, que permite na relação médico-paciente um imenso afeto e empatia, produzindo, além da reflexão, uma nova condiçãona qual o sofrimento é diminuído. A seriedade é substituída pelocarinho e humor, a frieza do procedimento médico padrão dá lugarao amor altruísta de um tratamento exclusivo.

Na filosofia do Dr. Patch Adams, inspiração para tantos Clowns de hospital no mundo, não há lugar para preconceito nem exclusão.Entendo o Circo tradicional como entidade democrática justamente porrepresentar, em sua função social, este acolhimento, este diálogo entre raças e culturas. Afinal de contas, é o Circo um espaço internacional da Arte, recebendo em sua vasta História sejam grupos marginalizados, como os ciganos, sejam aristocratas instruídos. Adota e incentiva como artistas e profissionais pessoas que, muitas vezes, não encontram outra oportunidade fora da família circense,educando e preparando-os para a vida. Benjamin de Oliveira é um demuitos exemplos desta inclusão, conforme relatam os historiadores do Circo.

Não era só uma aventuraromantizada que buscava, era a chance de sobreviver de uma novamaneira. Assim, aproveitando a ausência do pai, que tinha ido a umoutro sítio “amansar uns burros novos”, coincidindo também como dia em que o circo estava partindo, saiu de casa com o tabuleiro efugiu com a companhia. Daí em diante, em todas as outras entrevistasem que conta a sua história de vida, Benjamin raramente voltou afalar explicitamente de seu pai, de sua condição de filho deescravos ou da escravidão propriamente dita. v

O Circo tradicional já trouxe informação, tecnologia, inovação,desenvolvimento e trabalho, beneficiando indivíduos, famílias,comunidades, cidades inteiras, e continuará desempenhando papelsocial importante apesar de transformar-se constantemente paraadaptar-se ao seu tempo. Esta continuidade conta muito com o trabalhodo Clown, que tem em si a natureza dinâmica, contemporânea,criativa e crítica da arte circense.


i SILVA, Erminia. Circo-Teatro: Benjamin de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil. São Paulo: Ed. Altana, pg. 34.

ii CERVELATTI, Alessandro. Questa sera grande spettacolo – storia del circo italiano. Milano: Ed. Avanti! – Collezione “Monde Popolare”, 1961, pg. 223-229.

iii Manifesto do Teatro do Oprimido, artigo 10. Fonte: http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=112

iv Giuseppe Grimaldi (ver Erminia Silva, op. cit., pg. 46) destacou-se como cômico de pantomimas inglesas, apresentando em suas “arlequinadas” uma maquiagem que unia a cor branca do plácido Pierrô ao vermelho agressivo do Arlequim, dando os elementos para que seu filho, Joe Grimaldi, aperfeiçoasse a máscara do Clown. Um dos defensores desta idéia é Cervelatti.

v SILVA, Erminia. op. cit., pg. 91.

Related posts

Nota: O Circo na Europa

circon

Teatro de Anônimo (RJ) – Ação coletiva em defesa da Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha (ENCLO)!

giane

Circo: encontros que produzem encontros

circon