Texto publicado na Revista Continente ON LINE, em 01 de maio de 2012
A imagem de um cachorro amarrado por uma linguiça é a mais contundente lembrança da memória do meu avô materno. Como seria esse tempo dele, em que cachorros eram amarrados por linguiças? Como raspa do tacho, cresci em meio à gente grande que falava de coisas do “tempo antigo”, dos tostões e de quando o América era o “tampa de Crush” no futebol pernambucano.
Garoto suburbano, fui impregnado – sem me dar por isso – de referências culturais cotidianamente definidoras do meu modo de agir, pensar, comer (em todos os sentidos), rezar e reproduzir o que nem imaginava ser arte. Porque, sem saber o que era a vida, acreditava que eu era a vida. As festas religiosas, o carnaval de rua (Ah! Como era fantástico ver o moleque tomar banho no auge da brincadeira das Lavadeiras de Areias), o Xangô de Dona Preta e os circos no Campo do Piolho ou no Largo do Ipiranga, e, um pouco mais tarde, ao lado do açude do Timbi. Tudo isso antes de ser palhaço, dançarino e ator – exatamente nessa ordem. Era no tempo em que minha mãe cobria a TV ABC preto e branco com uma proteção de acrílico colorida (verde ou azul, durante a semana, e multicolorida, aos sábados, domingos e feriados), bem antes do estouro de Tapacurá – que nunca estourou.
Essa narrativa da minha memória, aparentemente sem valor histórico para o mundo, lembra o ofício do narrador historiográfico, citado por Baudelaire, como um “trapeiro”, um catador de sucata e lixo. Aquele que recolhe cacos, restos, detritos, para garantir sua sobrevivência, mas também para que nada seja perdido, esquecido. É o registro que a historiografia oficial, durante séculos, não soube o que fazer com ele, e que por isso foi deixado de lado como algo sem significação, importância e sentido. Era a sobra do discurso histórico.
O excitante debate teórico que estimula a discussão sobre a relação entre história e memória tem atravessado gerações de historiadores, envolvendo os objetivos e fundamentos do seu trabalho. A memória está a serviço da construção de referenciais sobre o passado e o presente dos grupos sociais, refletindo a intimidade de suas mudanças. O desenvolvimento da historiografia foi forjado, inicialmente, em registros memorialistas, como as fontes orais.
A partir do século 18, quando a história ganha o status de ciência, essa memória constituída a partir da oralidade passa a não mais ser considerada uma fonte segura para o historiador. A ciência – única forma de conhecimento – deve produzir verdades únicas, objetivas e absolutas. Esse pensamento permaneceu vigoroso até a primeira metade do século 20, quando importantes historiadores propuseram a diversificação de temas mais voltados para as “pessoas comuns” e relativizaram a importância de “marcos políticos” para a escrita da História. Esse foi o primeiro passo – que culminou com a diversificação do uso de fontes, englobando também a iconografia, a literatura e trabalhos artísticos.
A arte circense, por sua característica itinerante e sua constituição restrita a grupos sociais singulares e específicos – em muitos casos, consolidados por laços familiares –, criou naturais mecanismos do repasse de saberes e memória do seu cotidiano essencialmente pautados na oralidade.
BEM IMATERIAL
A arte circense brasileira começou a se forjar no século 19, a partir da chegada de famílias tradicionais desse campo, oriundas de vários países, sobretudo da Europa. Incorporando diversas expressões artísticas regionais, no Brasil, o circo adquiriu algumas características que o diferem da prática de outros países, ao mesmo tempo em que, por sua origem, mantém elementos essenciais que efetivam sua integração original ao moderno circo, surgido na Inglaterra, na segunda metade do século 18.
Parte indissolúvel da modernidade brasileira, essa arte pode ser considerada um bem imaterial da nossa cultura – elemento fundamental da representação de nossa pluralidade cultural e expressão dos diversos sotaques orais, políticos, econômicos, sociais e geográficos de nossa brasilidade. É a manifestação das artes cênicas que mais autenticamente representa a fala de cada rincão deste vasto país.
Mas sua herança histórica, pautada na oralidade e numa forma quase artesanal de organização e gestão, e a ausência durante décadas de políticas públicas capazes de perceber sua importância como expressão determinante da nossa identidade, empurraram a arte circense para a periferia das periferias, sucateando as companhias itinerantes, apressando a falência artística e moral de vários artistas.
Reagindo a esse destino, sua natureza doméstica e artesanal, sua capacidade natural de absorver o entorno em sua própria expressão, e sua peculiar forma de se comunicar (dizem que notícia em boca de circense chega mais rápido do que e-mail) forçaram – ao longo das três últimas décadas – uma reformulação no processo de ensino de seus saberes. Isso, na maneira de gerenciar sua cadeia produtiva, de se organizar enquanto movimento, de forçar a atenção dos poderes públicos para a sua presença no universo cultural brasileiro e, particularmente, na busca de formas e conceitos diversos de registro e difusão de sua memória.
Do tempo em se amarrava cachorro com linguiça, tem ressurgido, através de pesquisas promovidas por estudiosos voluntários ou motivados por processos acadêmicos, uma memória abastecida de importantes ações do circo para a construção do moderno pensamento brasileiro sobre si e sobre o mundo. Na última década, personagens e fatos, e suas contextualizações com momentos históricos do Brasil, aparecem reafirmando essa arte que, durante muito tempo, e ainda hoje, é uma das mais populares e acessíveis do nosso país.
Em Pernambuco, duas importantes obras foram editadas, nos últimos anos, com o apoio do governo de Pernambuco, através do Funcultura: o catálogo Circo social no Brasil (2009), idealizado pelo artista e pesquisador Bóris Trindade Júnior (Borica), registrando os grupos, escolas e projetos que integram a Rede de Circo do Mundo Brasil, movimento fundado no Brasil em 2000; e Circo social: a experiência da Escola Pernambucana de Circo (2011), resultante da monografia de especialização em Ensino das Artes – UFPE, do artista de teatro e historiador Rudimar Constâncio. E, através do Prêmio Funarte Carequinha de Estímulo ao Circo (2010), o artista circense e sociólogo Gilberto Trindade prepara um documentário sobre a vida de Wilson Ribeiro da Silva, o mágico e proprietário de circo, mestre Alakazam.
Esses registros fazem aflorar lembranças opacas da memória coletiva da nossa gente, que pouco a pouco retomam suas cores. Números, artistas, circos, piadas, proezas, que pertenciam ao universo individual da memória de quem as presenciou, passam a ganhar status de documento da lembrança de um passado intrinsecamente relacionado à nossa expressão cênica brasileira contemporânea.