Clown: criação pessoal?

O processo de criação e desenvolvimento do Clown é, por muitos, considerado uma “descoberta pessoal”. Concordo que a linguagem do Clown, de fato, implica um auto-conhecimento, mas questionei: é uma especificidade do Clown ser um trabalho tão pessoal? Em sendo o Clown um personagem cômico, e assim, um personagem circense completamente adaptável para o teatro, não seria pessoal a criação de qualquer outro personagem?

A partir desse questionamento, considerei também investigar outra dúvida constante: o Clown nasce por vocação individual, ou ele pode “ser criado” por qualquer pessoa, possua ou não esta pessoa uma vocação natural para a comicidade do Clown?
Neste artigo, apresento minhas impressões e opiniões pessoais sobre o assunto, que já começa com a polêmica conceituação do que é o Clown. Como entendo, o Clown é um personagem cômico e infantil, de origem na tradição e história circenses.
No Circo, evidentemente, o Clown também revela suas heranças, anteriores à estrutura do que chamamos hoje de Circo. Dessas heranças, a mais aceita por mim se refere a “personagens”, pois penso ser o Clown do Circo criado e emprestado do teatro popular de rua, inspirado nas máscaras medievais da Commedia dell’Arte e nas posteriores “Arlequinadas”, e até apresentado pelos artistas cômicos de rua a convite do Circo, conferindo a este seu caráter nômade. Ainda que se saiba ter o Clown muitas origens históricas, creio ser o teatro de rua uma das mais fortes possibilidades ou influências.
Aos que combatem a idéia de ser o Clown um personagem, a definição mais aceita é a de ser um trabalho de “entrega total” da pessoa do ator, revelando intimidade, flexibilizando defesas e expondo o seu ridículo pessoal. Segundo estes (que eu chamo de “acadêmicos”), o Clown é individual, é o artista “nu”, e, portanto apresenta toda a sua complexidade humana aflorada à pele, nem sempre a serviço da comédia e do fazer rir, expectativas naturais do público em relação à imagem do Clown.

Todavia, não são conceituações que podem se relacionar? O estado frágil do ator exposto não sugere a este uma nova conduta, uma nova lógica individual, novas defesas naturalmente criadas, novos raciocínio e comportamento corporal? Não pode este estado ser visto como uma identidade nova, diferente da real, e que não seria de fato uma individualidade sustentável na realidade cotidiana?

Creio que podemos, sim, ver este estado de extrema vulnerabilidade e ridículo como uma identidade criada, um personagem estranho ao mundo moderno e à realidade da vida social. E na mesma medida, eu também posso aceitar que, sendo personagem pensado e concebido pelo ator-criador, é muito possível e natural que o artista empreste a esta criação muito de seu lado pessoal e íntimo. De suas expressões às experiências de vida, é o Clown, enquanto personagem, também uma criação pessoal.

Penso até que, a qualquer personagem, o artista empresta muito de si, tornando sua criação pessoal. Prova disso é, no teatro, existirem infinitas maneiras de se representar um mesmo personagem. Ainda que este não mude, em lógica, falas, ações, a realização do personagem em cena personaliza-se conforme cada artista que o interpreta.
O que considero, no Clown, ser tão marcadamente pessoal, é o meu entendimento de que, conforme a tradição circense, ele é sem dúvida um personagem infantil, e sendo a infância comum a todos nós, colocamos muito de nossa experiência infantil no Clown. Essa experiência torna cada Clown personalíssimo.

O desafio da linguagem do Clown, então, é justamente: como ser tão autêntico e espontâneo como é a criança? Eis, parafraseando Shakespeare, a questão! That´s the question!

Antes de entrar na relação com o público, e de, nesta relação, desenvolver a comicidade, criando a situação cômica e encontrando o melhor tempo cômico para o desenvolvimento de cada acontecimento, há que se ter criado um personagem – naturalmente, pessoal – que expressa com naturalidade a essência de uma criança.

Entendo o Clown como sendo nossa imagem pessoal de como vemos a criança, considerando que a criança mais familiar a nós é a nossa própria. Dentre os muitos adjetivos que relacionamos à infância, creio que o melhor deles seria “viva”, pois a criança, pela espontaneidade, alegria, criatividade, curiosidade, energia, exala a vida a todo momento!

Uma criança doente não se faz tão presente assim. E não por acaso, filmes de terror costumam nos chocar com imagens de crianças “mortas”. O simples pensamento deste contraste entre vida e morte, infância e fim, é absolutamente assustador.
Como então fazemos um personagem tão vivo a ponto de quase voltarmos a ser criança? Não podemos voltar. Representamos, contudo, devendo acreditar por completo em nossa criação. O Clown é um personagem que vivemos e experienciamos, talvez mais do que outros personagens teatrais, pois tentamos no Clown expressar o que admiramos na criança, segundo a nossa criança e a nossa opinião. Nesta investigação, também nos auto-conhecemos.

Investigando em nós as qualidades da infância, creio que conferimos ao Clown, além da vida, o carisma da criança, que solicita, doa e inspira instintivamente nos adultos um carinho natural cativante. Ao meu ver, esta é a essência do trabalho do Clown.
Mas não basta ser a criança. Através do Clown, buscamos na criança a expressão livre e a energia suficientes para fazer o público rir. E o riso espontâneo é outro talento da criança tão marcante em nós. O que é uma criança doente, senão aquela que não sorri? Quantas vezes não observamos maravilhados com qual simplicidade e imaginação a criança, sozinha, se diverte?

É natural da infância rir quando se está bem, chorar quando se está triste, expressar a raiva, a impaciência, a vergonha, e todos os sentimentos e estados que, à medida em que desenvolvemos defesas emocionais para a vida madura, começamos a encobrir, disfarçar, evitar que se mostrem de imediato. E assim, vamos perdendo nossa natural capacidade espontânea de expressar, de fantasiar, e mesmo de sentir. Guardamos muito, mostramos pouco, damos muito valor ao medo, e perdemos com isso nossa qualidade de vida. Em geral, vivemos menos intensamente as emoções na nossa maturidade.

O Clown, como a criança, deve ser livre para sentir, e livre para expressar. Ao ser livre e espontâneo, ele provoca no público também a expressão espontânea do riso. Entretanto, o Clown precisa – e eis mais uma dificuldade da profissão – estar acima da condição pessoal do artista, pois enquanto linguagem, o personagem Clown é essencialmente cômico, e fazer rir é seu compromisso com o público que o vê. As dificuldades pessoais do ator-criador restringem o Clown.

Ainda que personalíssimo, o Clown pode rir enquanto o artista, interiormente, sofre. Não há contra-senso, pois o Clown precisa acreditar-se vivo como criança, e sendo criança, separar enquanto está em cena os seus sentimentos de personagem infantil do universo adulto do ator-criador. Caso o adulto contamine demais o personagem, de fato, ele o perde, e assim ele não sensibiliza o público. O Clown torna-se falso, porque não é criança, mas um adulto frágil e deslocado na missão de ser cômico. Ele frustra as expectativas que a imagem do Clown desperta nas pessoas, e estas, frustradas, não riem.

Criado o Clown desse modo, tomando-se por base a vivência infantil do ator-criador, o personagem torna-se muito mais autêntico, verdadeiro, e significativo para quem o representa. Sendo um personagem tão pessoal, tão bem conhecido, o Clown tem toda a capacidade de cativar o público com seu carisma infantil, já não cabendo a pergunta: o Clown pode ser criado, ou é vocação nata?

Todos nós temos vocação para ser criança. Todos exercemos esta vocação durante a vida. Logo, o Clown pode ser criado, bem como pode ser ensinado e orientado. Ele pode ser despertado, ou descoberto, ou desenvolvido a partir de uma vocação já consciente para a Comédia.

Por ser pessoal, a criação do Clown também não segue regras tampouco modelos. Cada processo de criação é individual e único, como é cada artista e cada concepção a respeito de “ser criança”. Para muitos, o Clown nasce de brincadeiras lúdicas. Outros o descobrem em vivências e cursos de iniciação, através de exercícios teatrais expressivos. Alguns também possuem muitos elementos, características pessoais, naturalmente cômicos, bastando um olhar atento que aponte o que serve ao trabalho do Clown.

Me parece bem difícil criar sozinho um Clown, pois é na relação com o outro que se faz a Comédia. O Clown sempre provoca o riso no outro, e deve agir sempre com esse objetivo. Por isso, colabora imensamente com a criação o olhar externo, desde que permita a liberdade do ator-criador e oriente sem preconceitos nem egoísmo a comicidade do mesmo artista. Não havendo, porém, uma direção específica do trabalho de criação, o que não pode faltar na construção do Clown é a orientação do público. É imprescindível submeter a criação ao julgo do riso popular, e por ter sido esta a minha experiência própria, costumo dizer que o Clown é uma pesquisa sobretudo prática.

Para se criar o Clown, ou os Clowns – nada impede, na minha opinião, que tenhamos mais de um personagem clownesco, atribuindo a todos nossa marca pessoal –, iniciamos de fato um processo de auto-conhecimento, pois identificamos a criança e suas qualidades em nós, aceitamos e experimentamos expressar nossas emoções, aproveitamos tudo o que temos, naturalmente, a serviço do riso. Nosso Clown talvez seja nossa criança, que não percebeu que cresceu.

Não acredito muito em nos fazermos “ridículos” para atuar no Clown. Não se trata de uma auto-censura, ou exibição de defeitos. Pelo contrário, vejo o Clown como uma auto-aceitação, na qual o ridículo não importa, mas sim o prazer de ser engraçado.
O meu trabalho de Clown começou a florescer quando percebi que o Clown não se tratava de rir-se para talvez mobilizar o público a rir junto. O riso primeiro surge no público, pelo prazer de ver o Clown em ação e, compreendendo, sentir o prazer do Clown em seu modo de vida. Não significa que o Clown viva no prazer, mas ele vive comicamente o tempo todo, envolvendo-se em situações cômicas. O Clown é cômico até na dor, uma dor que, a favor do riso, dura alguns segundos, e que é, visivelmente, engraçada e diferente. Este nonsense é risível, e o sofrimento, ainda que vivido pelo personagem, não dura a ponto de ser dramático.

Sobre meu processo de criação, o que posso dizer é que, depois de muito estudo, não sei quando surgiu o meu Clown, mas sei com segurança que ele não está completamente criado. Quiçá nunca estará, pois em sua vida, e na minha, ele vai se criando e lapidando.
Sou muito grato a todos os apaixonados pela linguagem do Clown, que viram comicidade em mim e, um dia, me convidaram a fazer cursos de Clown, observando: “Você tem jeito de palhaço.” Ao que eu respondi prontamente: “Eu não sei se isso é um elogio ou não…” Pois sim, eu já fui um Clown muito diferente de hoje.

Agradeço aos circenses que me ensinaram generosamente a tradição de suas famílias e vidas, e até hoje acreditam que tenho condições de continuar trabalhando com e como Clown. É sempre uma honra conhecer, aprender, e merecer a confiança de artistas que admiro tanto. Graças a eles, eu continuo estudando, e procuro transmitir o que me ensinaram a outros interessados como eu.

Agradeço especialmente, e dedico meu trabalho, ao público que me orienta e incentiva. É para ele que persigo mais qualidade em cada apresentação, e procuro fazer o melhor possível. O público merece sempre um bom trabalho, rir a convite do Clown, pois para este, nenhum problema é insolúvel.
Alexandre Cartianu, maio de 2010

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