Analisando a nós mesmos. A luta pela descriminalização do aborto

Emerson Elias Merhy – desde 28 de junho de 2018, iniciou publicação semanal (às sextas-feiras) como Colunista da Revista on line – SEMANAON.

COLUNA RE-EXISTIR NA DIFERENÇA

Analisando a nós mesmos. A luta pela descriminalização do aborto

Porque abrir uma coluna, na sua primeira aparição, com um tema tão polêmico, se há outros na ordem do dia mais fáceis e óbvios, tão importantes para uma pequena conversa em uma coluna que se denomina Re-Existir na Diferença? Talvez porque ele traga por dentro algo bem comum hoje em dia: a prática da maldade em nome do ato do bem.

As recentes vitórias dos movimentos feministas, bem como de vários coletivos sociais solidários às suas lutas sobre o direito ao aborto, na Argentina e Irlanda, para surpresa de muitos, pede essa conversa, e é bem analisadora dessa questão.

A fala de uma das lideranças argentinas da luta pelo direito ao aborto até a 14ª semana da gestação, que “sempre nos fizeram acreditar que a luta era aborto sim ou não”, ao pontuar a vitória junto aos deputados nacionais da proposta, chama atenção pela sutileza do que está em disputa.

Essa mesma dirigente disse que, por ano, na Argentina, pelo menos 50 mil mulheres eram internadas em hospitais devido aos riscos de morte após a prática clandestina do aborto, realizada em péssimas condições de higiene. Apontou que cair na conversa de “sim ou não” seria deixar de considerar essas milhares de mulheres, e muitas outras que nem nos hospitais chegavam, como cidadãs a serem protegidas pelo estado pelo seu direito a uma vida digna e saudável. Isso, em nome de uma suposta vida concebida que ainda não veio à luz como existência, muito menos com o reconhecimento de seus direitos civis, por não existir como tal.

O debate de juristas argentinos pontua as falsidades dos argumentos de quem aponta o direito ao aborto como direito ao assassinato. Indicam que não é verdade que se fere uma legislação internacional de proteção à infância e muito menos uma normativa jurídica argentina sobre esse reconhecimento de que na concepção já há um cidadão.

Além disso, destaca-se que os que se opõem a esse direito ao aborto usam argumentos fortemente embasados em questões moralizadoras e religiosas para defenderem seus pontos de vistas, desprezando e mesmo criminalizando aquelas mulheres que decidem pelo aborto como meio de poder continuar a viver em situações mais suportáveis.

Em nome do que afirmam ser um ato do bem, que proibiria o direito ao aborto, praticam de fato atos bem perversos, muitas vezes levando a morte milhares de mulheres.

Essa moralização das condutas em sociedades tão complexas como as que vivemos, no processo de globalização, não são tão vigilantes sobre o fato de que as principais vítimas de suas posições são exatamente aqueles coletivos mais vulnerabilizados para sustentar materialmente suas precárias condições de vida. Essas atitudes moralizantes visam fundamentalmente mulheres que menos condições têm de sustentar um cuidado de si mais eficaz, quando tomam uma decisão, diga-se, sempre bem difícil, sobre a interrupção de uma gravidez.

Esses atos, em nome do bem, que de efeito são perversos, são um dos principais produtores do favorecimento das péssimas condições da prática do abortamento por insistirem em sua ilegalidade, estão hoje espalhados em várias situações semelhantes, sempre atingindo os grupos mais vulneráveis materialmente.

Não estão muito longe os casos sequestros de bebês praticados em nome “do bem” para a criança, pelo fato das mães serem usuárias de drogas, ou imigrantes, ou pobres, ou …. das experiências que a luta pela legalização do aborto tem apontado, como as grandes violências institucionalizadas por atos jurídicos, embasados em uma moral duvidosa, que visam atos criminalizadores de pessoas e coletivos que vivem em situação de  grande precariedade, pela América Latina.

Aqui, no Brasil, as experiências discriminatórias se agravam ainda mais, pois além dessas situações agrega-se a persistência do racismo como prática que tem levado a eliminação de grandes contingentes populacionais todo ano, com a ajuda efetiva dos aparatos repressivos do próprio estado, que deveriam garantir o exercício do direito da cidadania ser realizada plenamente na defesa da vida de qualquer um.

A quantidade de morte de jovens negros na faixa de 14 a 26 anos, pelo país como um todo, é outro componente a colocar em evidência quanto a luta contra os que são chamados de marginais. Estes, tem sido alvos, na verdade, de execução em massa, sem direito a defesa. Mais um exemplo de ação feita “para o bem de todos”, que, efetivamente, se traduz em um exercício puro da maldade. Assunto para uma outra escrita.

Fonte: Semana On – A informação ligada em você Analisando a nós mesmos | Semana On
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