Aqueles olhos que lembram

Lá onde o vento faz a curva, o Judas perde as meias… Naquele pequeno povoado sem nenhuma sala de teatro e onde o pequeno cinema de outrora, hoje transformado em templo, ainda despertava a nostalgia dos antigos beijos de namorados e emoções de uma distante e empoeirada Hollywood, o cheiro de pipoca, vez por outra, voltava a tomar os ares.  Como uma lembrança de que todos ali eram vivos, as vozes dos meninos que corriam pelas ruas soavam como trombetas de anjos da alegria:

– O circo chegou!

Mal sabiam eles que aquela seria a última praça. Ao arriar aquela lona, encerraria a sua longa carreira Dona Amaralina, cansada de tantas lutas, debilitada de saúde e já sem a ajuda de seu Amarantes, companheiro de arte, amor e lutas ao longo de décadas, até que um ataque fulminante o subtraiu dos picadeiros da vida.

Amarantes e Amaralina, poderiam ser José, Maria, Expedito… São milhares de circenses que ao longo de séculos de história entregaram a sua vida à difícil arte de viver o circo e fazer  circo em um país que os aplaude, mas os exclui, discrimina e persegue.

O cidadão circense, além de viver os desafios da vida nômade, é testemunha viva de um Brasil que muitos tentam varrer para baixo do tapete.

O circo chega em cidades que não têm sequer uma sala de teatro. Chega a cidades nas quais o cinema é apenas uma nostálgica lembrança de tempos idos e a própria televisão, veículo de massa por excelência, não chega, a menos que por intermédio de antenas parabólicas.

O circo chega aonde não chega a luz, a saúde, o esgoto e oferece um espetáculo inesquecível às populações interioranas, curiosamente sem ser na maioria das vezes sequer citado nas políticas públicas que visam a interiorização da fruição cultural e do incentivo à cultura.

O circo é a cultura em movimento. Chega onde o Brasil das cidades parece não querer enxergar.

Isso estabelece um paradoxo quando nos defrontamos com os debates nos meios oficiais visando ampliação geográfica, da fruição de bens culturais fomentados. Cadê o circo?

Estatísticas referentes à Lei Rouanet, mostram-na historicamente ineficaz em fazê-la chegar ao circo tradicional itinerante. A situação poderia ser contrabalançada por outros mecanismos, os quais já se mais eficazes. Porém mesmo nesses mecanismos o circo ainda permanece como “primo pobre” das artes cênicas. Sempre com dotações menores que outras expressões também importantíssimas como teatro e dança.

As políticas públicas de inclusão do Circo chegaram para ficar. Inicialmente tímidas, progressivamente estão mostrando resultados animadores, os quais têm motivado investimentos progressivamente maiores.  Ainda pode-se dizer que estamos em uma fase que pode ser chamada de emergencial. O circense despertou para a importância da organização coletiva e de lutar por seus direitos de cidadania. O poder público vem aprendendo, ensinando e se convencendo que o circo existe. Saímos da fase da invisibilidade para a fase da construção de políticas de Estado.

O grande desafio é ampliá-las.

Dona Amaralina, em seu olhar cansado, de tantas lutas e carregado de tantas lembranças, é a personagem com a qual nos defrontamos em cada circo que ainda luta para superar as dificuldades do historicamente excluído.  É o circense doente e cansado, no fim da vida, que ainda tem que encarar a má vontade de algumas autoridades municipais que não se importam com o direito de seus cidadãos a usufruírem da alegria, cultura e diversão proporcionada pelo circo, e por isso impõem dificuldades para a chegada do circo às suas populações.

Dona Amaralina é a guerreira ferida, cansada de lutar, que pela última vez recolhe sua tenda e aguarda o dia da morte. Aqueles olhos, também são a lembrança do nosso dever. O dever de prosseguir nessa luta. A luta pelo respeito, pela inclusão, a luta pelos direitos civis e pelo reconhecimento pleno de uma realidade que se impõe:

O Circo chegou! E ele chega a cada semana onde poucos agentes culturais se atrevem a chegar com tal coragem, superação e esforço.

Que o reconhecimento a essa expressão se amplie cada vez mais. E que esse a esse reconhecimento seja permitido chegar a todos os circos do Brasil.

Que os olhos de cada circense cansado de tantas lutas, nos lembre, a cada dia, que não podemos perder um dia sequer.

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