Arte-educadores discutindo sobre drogas: existe ou não existe?

Texto de Emerson Merhy (que não tem a pretensão de ser completamente descritivo e fiel ao que aconteceu, mas apontar o que foi relevante da maneira mais sincera, possível)
Rio de Janeiro: 23/05/2013

Como disparamos o começo do trabalho

No dia 22 de maio de 2013, um grupo de 28 arte-educadores se reuniu na sede do “Se essa rua fosse minha”, em roda de conversa e uma oficina de atividades (sob o título: Chacoalhando a sensibilidade), junto com alguns pesquisadores e docentes da Universidade Federal Fluminense – UFF e Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, para desenvolver um trabalho sobre um dos temas que mais os afetam nas suas ações nas ruas, com moradores crianças e adultos, pelas cidades do Rio de Janeiro. (Ver relação dos participantes abaixo)

No começo da roda de conversa, coordenada pelo Professor Emerson Elias Merhy (UFRJ), houve uma problematização sobre a noção que cada um tinha e vivia em relação a questão da dependência.

O que é dependência para cada um de nós? E a fala, rolou.

Esse caminho foi escolhido porque é muito difícil partirmos do tema da droga simplesmente usando as noções mais comuns no imaginário social e nos conceitos conservadores, que têm sido utilizados pelos governos e grupo de trabalhadores do judiciário, da educação e da saúde, como um todo. Pois, a noção mais básica que esses conceitos conservadores passam é que a droga existe e ponto final e, além disso, que ela tem o poder de ser sujeito que aprisiona a gente. Invertendo o fato de que nós é que somos usuários de drogas e as fabricamos.

Como construir uma noção tão conservadora se sabemos que muitos povos indígenas, europeus, africanos, asiáticos, ou seja, em qualquer lugar dessa terra e em distintas épocas, sempre fizeram uso de substâncias extraídas de plantas, por exemplo, para poderem “viajar” para além desse mundo e encontrar suas divindades. Será que estamos autorizados a usar o conceito negativo de droga que temos usado, hoje em dia? Mesmo sabendo que essas substâncias extraídas das plantas são psicoativas e alteram o corpo-sensível e o corpo-pensamento de quem usa?

De fato, não estamos autorizados a fazer isso.

E, aí, como então entrar no tema da conversa sobre droga com um grupo de trabalhadores na rua, com os arte-educadores que estavam nessa roda de conversa, sem cair nessa armadilha do senso comum do imaginário mais conservador, da sociedade atual, que tem sérias consequências no modo de abordar o outro na rua. Como regra com um tacão intensamente autoritário e por parte de qualquer uma das instituições clássicas, como o judiciário, educação, a saúde, a polícia e por aí vai.

Por isso, entramos pelo tema da dependência e não da droga, em um primeiro momento.

Como foi a roda de conversa em seu primeiro momento

Diante da pergunta, o grupo foi abrindo uma conversa que mostrou diferentes modos de olhar para a questão da dependência. Muitos apontaram um lado negativo e usaram o próprio uso de drogas como o crack, por exemplo, para dizer que ser dependente era muito ruim, pois não permitia se ser saudável ou impedia a produção da vida. Outros disseram que não viam, assim, pois cada um é dependente de muitas coisas, como uma arte-educadora que disse que ela era muito dependente de café, de certos refrigerantes, de certos alimentos, inclusive de celular, pois a dependência é uma produção em aberto, e pensar sobre ela obriga pensar sobre cada um na sua relação com os outros e as coisas, em geral.

O grupo acabou conceituando, para si, a ideia de que a produção da vida era isso, então, uma construção de redes com os outros, redes que o coordenador sugeriu como redes de existências, mas que não era só com pessoas, como tinha falado a arte-educadora de si.

Houve um exemplo de alguém que está em uma UTI com um balão de oxigênio, que ele depende de modo único e que isso, apesar de ser muita dependência, não era necessariamente ruim.

O grupo se viu diante de dilemas e o coordenador sugeriu que procurassem pensar em si e nos outros, mas agora sob a noção da independência.
Aí, a roda ficou mais calada. Entretanto, alguns começaram a dizer que ser independente é não ter nenhuma dependência e outros apontaram que não. Esses sugeriram que a independência poderia vir não no contraponto da dependência, mas na conversa com ela.

Por exemplo, o grande problema da pessoa da UTI era que tinha tanta dependência de uma relação quase única, que o grau de independência era muito baixo. Mas, como disse o coordenador, talvez quem tenha muitas possibilidades de dependências pode, de fato, ser independente.

O grupo ficou muito inquieto com essa possibilidade imaginária.

Fizemos, então, um exercício com as mãos. Pediu que juntassem as duas mãos como se fossem coladas e, assim, as mãos não podiam ir ao encontro das outras mãos que estavam na roda. Todos estavam nessa imagem presos em si, uma mão dependente da outra e não podendo explorar encontros com as outras mãos.

Depois, fizemos um movimento de que as mãos dependentes entre si conseguem também se movimentar, separando-se e juntando-se de novo, quando quiserem. Mas, quando separam-se podem também se juntarem com outras mãos que estavam também separadas.

Formamos a imagem de produção de uma rica rede de encontros ao construirmos vários tipos de dependências. Aumentamos tanto a rede de dependências de cada mão, com qualquer outra, que cada mão tornou-se independente, pois podia fazer escolhas para se movimentar na busca de uma outra.

Com isso, o grupo experimentou como pode ser na construção das redes existenciais. Como deve ser quando alguém pode ir construindo encontros sem ficar preso exclusivamente em um só ou em poucos encontros. Como ter muitas possibilidades cria graus ampliados de escolha e liberdade na construção de si e de suas redes existenciais.

Voltamos a falar de que na UTI só se podia ficar colado ao aparelho de oxigênio e concluímos que estar assim, implica em se ser muito dependente e isso cria a sensação da morte a qualquer momento. Ao contrário, quando se amplia as possibilidades de produção de mais vidas e de explorar as muitas vidas, ainda virtuais, que podem existir em nós, nos encontros e nas afecções com os outros, o rompimento de uma linha de dependência não implica na imediata produção da morte, como no caso da UTI.

Daí, passamos a conversar sobre o uso de substâncias que possam ser denominadas de drogas e vimos que o problema está na construção de uma rede existencial de dependência pobre, na qual essa substância ocuparia um lugar semelhante a situação de alguém internado na UTI, vinculado a um aparelho de oxigênio.

Nesse momento, no grupo aparece também a necessidade de falarmos das nossas experiências com crianças que vivem na rua e como vemos o lugar que as drogas, como a cola, o solvente, o crack e por aí vai, ocupam na construção das redes existenciais deles.

O grupo abandonou qualquer postura moralizante sobre o uso, intensivo ou não, que muitos fazem. Vários relatos foram expostos na roda de conversa e íamos conversando sobre cada um. Nesse processo, precisamos abrir um novo conceito: o de redução de danos.

Se a produção de vida em nós é a construção de redes existenciais, cada vez mais diversificadas e ricas e, se a independência é um efeito de muitas dependências distintas, chegamos a conclusão que há construções de certos caminhos que fazemos para minimizar graves produções de danos existenciais. Ou seja, procuramos agir na lógica de redução de danos, subjetivamente valores de maneiras muito específica por cada um, fazendo certas escolhas de conexões como um jeito de cuidar se si.

Por isso, a decisão de um menino ou menina, na rua, em usar uma certa droga pode ser, mais do que um vício infernal, a redução de danos em relação a suportar situações hostis, impossíveis de serem enfrentadas sem o uso.

Ou, às vezes, uma menina pode usar o crack para poder suportar uma prática de prostituição, que lhe rende ganhos materiais que necessita.

Para nós, o problema passou a tentar entender essa construção das redes, caso a caso, fora de um julgamento “medicalizador”, que facilmente nos leva a olhar uma situação dessas fazendo diagnóstico de adoecimentos e julgamentos morais, muitas vezes fatais para a própria criança.

Ficou claro que a questão seria a de como se conectar com o outro, para poder utilizar desse encontro como um dispositivo que alavancasse e contribuísse a produção de mais vida, para aumentar as redes diversificadas de conexões. E, o uso da droga vai passando a ser secundarizada, diante de tantas novas coisas que se pode e se deseja fazer.

Com isso, ficou claro porque um simples prender o outro e impedi-lo de usar droga, como regra geral, não trás benefícios nenhum, muito pelo contrário.

Partimos para estimular os arte-educadores a se expressarem sem a fala ou a escrita formal

Iniciamos uma nova dinâmica, por considerarmos as reflexões bem produtivas e percebendo o manejo que o grupo ia fazendo desses termos: dependência, independência e redução de danos, para poder pensar a presença da droga.

Não mais como roda de conversa, mas como grupos que se formariam para produzir algum material, que procurasse comunicar o que desejasse desde que não fosse com uma narrativa oral formal ou um texto escrito, tão formal quanto.

Sugerimos, agora, a dinâmica de uma oficina pelo corpo-sensível e o grupo escolheria as formas de expressão que lhes parecessem melhor. Uns escreveram um roteiro teatral e fizeram sua apresentação, outros, pintaram a 8 mãos um quadro e, outros, fizeram uma roda de samba.

A apresentação teatral colocou em cena um menino cheirando cola sob a ação, em um lugar público, de ofertas opostas: uma, induzindo escolher o simples prazer pelo prazer, a outra, ofertando acolhimento material e afetivo e busca de novos tipos de apostas existenciais.
O grupo de samba foi espontaneamente escolhendo músicas e cantando, aumentando com o passar do tempo o número de componentes, sem falar ou planejar nada.

Os do quadro, sem conversar entre si, de traço em traço e de cor em cor, foram construindo um diálogo bem rico sobre caminhos, ruas, encruzilhadas, linhas de fuga, luz, calor, paz.

Depois da apresentação, voltamos a conversar usando privilegiadamente a fala e tentando narrar o que tínhamos recolhido desse momento do corpo-sensível se expressando e apareceu uma conversa sobre os muitos corpos que temos, nos quais nem sempre o pensamento e o racional são os principais.

Trocamos experiências e noções de como os encontros de corpos-sensíveis, entre nós e os meninos e meninas, nas ruas, são ricos de acontecimentos não verbais e não textuais, desafiando-nos a falar por outras formas de expressão, inclusive para poder ser ofertador de processos existenciais que não se revelam e não se sustentam nas linguagens faladas.

O desafio que ficou para o grupo e que trouxe para a avaliação final do dia de trabalho foi: como tirar proveito dessa nova caixa de ferramentas de ideias/conceitos, que agora tinha no seu interior o modo como o corpo-sensível se afeta e se expressa sem pensamento e sem linguagem falada, a noção de rede de conexão existencial e sua vinculação com a produção de vida, e o conceito de dependência e suas consequências para poder pensar sobre a relação de todos nós com as drogas, de qualquer tipo?

Concluindo que faz sentido a noção de que a droga existe e não existe. Pois, quem existe mesmo é quem a utiliza, quem a deseja, quem a fabrica como tal. Voltamos aos índios, porque o que é droga ilícita para uns, é substância guia para o divino, em outros.

No final, o grupo pediu para continuarmos com esse tipo de trabalho, atravessado por outros temas: o da sexualidade na vida dos meninos e meninas nas ruas, o da produção social da noção de droga ilícita e a quem isso interessa.

RELAÇÃO DOS PARTICIPANTES
Oficina : Drogas Existem ou não existem ?
Lista de Presença

1. Alex Souza dos Santos
2. Antônio Futuro
3. Bianca de Faria Roque da Silva
4. Célia Regina Souza da Silva
5. Crisvaldina Araújo de Souza
6. Daniel da Silva Vargas
7. Daniela Vieira
8. Denise Francisca de Oliveira Roque
9. Emannuel Carlos ferreiras Barros
10. Ernildo França costa
11. Hélio Pereira Carvalho filho
12. João Ricardo Lacerda de Menezes
13. Luis Fernando D. Martins
14. Maira Monteiro fróes
15. Marco Aurélio da Silva Barbosa
16. Maria Aparecida de Andrade
17. Maria de Fatima L.S. Bento
18. Marilene Gonçalves de Andrade
19. Marilia Teixeira Lopes
20. Olivar J.S. Bendelak
21. Rafael Morgant Pinheiro
22. Rita de Cassia Ferreira Morais
23. Robson Sebastião Silva da Fonseca
24. Sarah Gregory
25. Sofia Arze
26. Thamiris da Silva Bruno Rocha
27. Verônica Pereira Gomes
28. Wanderson de Moura Santos

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