Benjamim de Oliveira: uma vida em trânsito


“Benjamim de Oliveira: uma vida em trânsito”, in Revista S/Nº – Organização: Bob Wolfenson, Roberto Cipolla e Hélio Rosas. São Paulo: dezembro de 2007.


O fascínio que o circo exercia (e exerce) sobre as pessoas – nos seus desejos de serem artistas, de pertencerem a um grupo “caminhante”, nas suas imagens de que a vida nômade seria oposta às pressões de uma vida de trabalho e familiar, fazia com que muitas delas fugissem literalmente com o circo. Nessa fuga há uma dobra que põe em tensão o controle e o descontrole, o voluntário e o involuntário, a consciência e a inconsciência. Como em um transe.

Muitos, como Benjamim de Oliveira, que descrevem suas fugas, passam-nos a vivência dessas situações. Em seu relato, disse que com 12 anos, em 1882, realizou seu desejo de fuga. Filho de   escravos enfrentou as consequências de uma punição como negro fugido. Através de suas falas é possível verificar o conflito que vivia naquela sociedade escravocrata; e isso parece que encorajou esse garoto, apelidado de Beijo, a ponto de enfrentar o seu pai caçador de escravos. Fugir com o circo possibilitava ir na direção das fantasias de uma nova vida, bem como recusar a que vivia. Não era só uma aventura romântica, mas também a chance de (sobre)viver de uma outra maneira.

Naquele ano, uma pequena caravana de artistas locomovia-se em cima de carros de boi, pelas estradas montanhosas e esburacadas da região ao sul de Curral del Rey (atual Belo Horizonte), em direção à Cidade do Pará, antiga Vila do Patafufo, nas Minas Gerais, onde morava Benjamim. O grupo fazia parte de uma modesta companhia circense cujo diretor era o artista Sotero Villela. Após percurso pelas difíceis estradas daquela região, usadas por tropeiros, ao som do ranger lamentoso das rodas, chegou o circo à cidade, alterando o ritmo e o cotidiano.

O circo de Sotero era um rancho de taipa, construído a partir da ida à mata e cortado eucaliptos ou ipês que iriam formar o círculo de madeiras coberto por uma forração de algodão, possuindo apenas um mastro central. O dia da estréia agitou ainda mais a cidade, enlouquecendo a garotada quando saía o palhaço com a cara sarapintada, cavalgando um bucéfalo abundante de ossos. Formava-se um verdadeiro cortejo. Os seguidores eram obrigados a responder em coro os chistes da chula do palhaço, e os que gritassem mais alto recebiam uma marca no braço, para entrarem sem pagar. À noite, iluminava-se o circo com candeias de flores-de-flandres com pavios de algodão, alimentados a querosene.

Um pouco antes do circo se iluminar e do público começar a entrar, já estavam a postos os vendedores e quituteiros, com seus tabuleiros repletos de doces, sucos e bolos. Entre esses estava o moleque Beijo. Vendia broas feitas por sua mãe na porta do circo e para os artistas, o que lhe permitiu ter uma aproximação com eles.

Nascido em 11 de junho de 1870, na Fazenda dos Guardas, era o quarto filho de Malaquias e Leandra. Sua mãe, era escrava doméstica e teve todos os seus filhos alforriados ao nascer. A principal atividade da fazenda era a pecuária, entretanto, o “sinhô” era também vendedor de escravos. Relata Benjamim que seu pai era um homem terrível, que lhe surrava quase todo dia; um “negro hercúleo, enorme”, freqüentemente incumbido de capturar os negros fugidos.

A sua entrada no circo não foi uma mera extensão da sua vida na Fazenda. Em suas memórias conta que pelas manhãs fazia exercícios de “bambu”, também conhecido como percha. Informa, ainda, que iniciou os primeiros exercícios para saltar, orientado pelo artista da companhia, Severino de Oliveira, de quem se supõe, adotou o sobrenome.

Logo no início já estava integrado ao modo de organização do circo no período e, como tal, foi partícipe de uma tradição oral, entendida não apenas como oralidade, mas como o conjunto das memórias gestuais, sonoras, de relações sociais e culturais, do qual fazia parte, também, os afazeres domésticos e o cuidado dos animais. Teve acesso à aprendizagem de saberes e técnicas que lhe permitiram tornar-se um circense.

Após um período de aprendizagem, chegou “finalmente o grande dia” da estréia de Benjamim, em Morro Mateus Leme, próxima à Cidade do Pará, sugerindo que o tempo desde a fuga não deve ter sido muito longo. Isso permite reconhecer que, independente do lugar e do tempo, foi preparado desde o início da fuga e logo incorporado como artista. A partir da estréia, sempre um momento de transe, aprendeu e executou vários outros números de acrobacia, corda indiana, trapézio, além de ser o “palhaço-cartaz”.

Depois de quase três anos trabalhando no Circo Sotero, fugiu pela segunda vez na vida.

Segundo o seu relato, mas sem explicar muito bem, diz que silenciosamente desapareceu, afirmando: “meu destino era fugir. Destino de negro…”. Incorporou-se a um grupo de ciganos, não esclarecendo como isso ocorreu, apenas informando que eram ciganos caldeireiros, que, segundo ele, era uma profissão que procurava encobrir a verdadeira, a de ladrões de cavalos.

Mesmo que não fale do seu cotidiano entre os ciganos, é provável que tenha vivido uma relação escrava. Descobre por uma moça do grupo, que iriam trocá-lo por um cavalo. E, por meio de uma combinação com a menina, foge de novo, pela terceira vez.

Estava tão embrenhado pelo sertão mineiro, que teve que andar umas “sessenta léguas” para chegar a uma vila. No trajeto foi preso por um fazendeiro, que o julgou fugido de uma outra fazenda. Era comum homens e mulheres negros forros serem presos, tanto na cidade quanto nos campos, e terem que provar a condição de liberto, com o documento de alforria. Benjamim disse que, além de não ser fugido, possuía uma profissão, era circense. Não tendo nenhum documento que comprovasse a alforria, fez uma demonstração das habilidades acrobáticas aprendidas. Talvez porque a presença negra não fosse incomum nos espetáculos circenses, Benjamim conseguiu um bom resultado em sua demonstração, e foi autorizado a continuar seu caminho. Transitou. Portador de uma teatralidade circense – acervo de saberes e técnicas -, possibilitou-lhe se safar dessa situação.

A partir desse período entrou em novos canais de transes e transformações, levando-o a inúmeras experiências constituindo-se acrobata-músico-cantor-ator-diretor, ou seja, um “artista circense completo” – profissional que é ao mesmo tempo herdeiro de saberes e portador de futuro, que tem em si a capacidade de criar, inspirar e provocar mudanças.

Continuou transitando. Gravou seis discos pela Columbia Phonograph Co.; foi filmado pela Photo-Cinematographica Brasileira de Antonio Leal e José Labanca, em 1908, representando Peri na peça O Guarani, no Circo Spinelli. Transitou em 1910, com grande visibilidade nos jornais da época, quando nesse mesmo circo produziu e encenou a opereta A viúva alegre, com participação do maestro Paulino Sacramento, Baiano como ator principal e cenografia de Angelo Lazary. Numa polissemia e polifonia na produção artística circense, incorporou nesse espetáculo projeções cinematográficas em uma tela de modo simultâneo ao baile final da peça.

Apareceu de modo efetivo na produção cultural da época, junto com vários outros construtores do Circo-teatro. Contribuiu para o circo entrar em transe.

Sabendo-se disso, não é mais possível compreender a história do teatro, da música, do disco, do rádio, do cinema, da televisão, no Brasil, sem transitar pelo circo e sua teatralidade.


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