Escrevo este artigo sem a pretensão tola de discutir uma questão que é matéria de estudo acadêmico. Sem a pretensão de generalizar e muito menos acreditando que estou apresentando uma inusitada exceção.
Apenas conto uma história. Uma história de amor e de afeto.
Quando comecei a trabalhar com arte circense, tarde, aos 26 anos, eu sempre ouvi que o circo tradicional era fechado aos novos circenses. E por isso sempre achei muita arrogância da minha parte dizer que eu era “do circo”. Sempre me apresentei como uma bailarina que pratica arte circense.
Moro em Guapimirim. Interior do Rio de Janeiro. Raramente vem circo aqui na minha cidade. A prefeitura não facilita, os terrenos têm aluguel caro, o público não pode pagar um valor justo pelos ingressos, a defesa civil e os bombeiros demoram a atender os circenses. E tudo isso se traduz em dias não trabalhados para os circenses, perda de dinheiro, o que os desmotiva a voltar nesta cidade.
Em 2013, na praça principal de Guapimirim, chegou o Circo Real Madri. Uma lona relativamente pequena. Eu trabalhava ali perto com o meu projeto social de circo.
Com um certo receio, já que tanto ouvi sobre o suposto preconceito dos circenses tradicionais em relação aos que brincam de circo, fui até a lona quando eles ainda estavam se organizando.
Fui recebida pelo Luizão. Dono do circo. Um senhor sério mas de fala mansa, sotaque do sul e olhar profundo. Apresentei-me como uma bailarina que praticava aéreos e que tinha uma escolinha de circo em Guapimirim. Para minha surpresa este circo não tinha ninguém que fazia número de tecido, então eu pedi para fazer uma apresentação no espetáculo deles. Para mim, uma honra! Nunca havia me apresentado numa lona.
Montei um número bem tradicional e na primeira noite que a prefeitura finalmente os autorizou, eu me apresentei. Nervosa! E feliz da vida!
E a partir daí as portas deste circo estavam abertas para mim. Comigo vieram meus alunos. Todos tinham livre acesso à lona. Assim como eu, todos os meus foram recebidos com muita alegria! A família de Luizão nos tratava como estrelas. Fizemos aulas de malabares com os filhos dele. Passamos noites incríveis de muitas risadas na intimidade da família que se reúne debaixo da lona para beber, comer e criar esquetes hilárias de palhaçaria e mágica no improviso. E para minha grande alegria, os filhos do circo foram ao meu galpão fazer a minha aula.
Trocamos! Compartilhamos conhecimento. Sem nenhuma barreira.
E, como todo circo de lona, eles se foram.
Maio de 2014. Eu estava na praça principal de Guapimirim quando escutei um carro com megafone anunciando: Cecília, que está aí na praça de Guapimirim! Venha até o carro do circo Real Madri!
Eles voltaram!
Não só voltaram como lembraram de mim. E foi mais um ano em que eu me apresentei na lona, em outro terreno, uma lona maior do que a do outro ano, e desta vez com um número menos tradicional e mais a minha cara. Levei meus alunos para fazer aula no circo. Trocamos truques, confraternizamos!
Hoje, Luizão e seus filhos me indicam para todos os circos da rede deles. Meus alunos têm portas abertas para treinar lá e até fizeram uma apresentação de trapézio fixo em um dos shows. Eu tenho o privilégio de ter aula de malabares com os filhos do circo, aula de palhaçaria, aula de história viva do circo todos os anos que o Circo real Madri nos prestigia com sua presença em Guapimirim.
E por isso, com todo respeito aos acadêmicos e estudiosos, eu despretensiosamente digo que eu sou de uma família circense, sou da família do circo do Luizão, não de uma geração que surgiu por laços de sangue, mas da geração que surge através de laços, nós bem fortes e cordas bem empatadas, por amor e muito afeto.