Uma legião de circenses se move nas muitas cidades que Fortaleza abriga. A maioria delas, no que apreendemos como a periferia da cidade. Os circenses levam no corpo uma memória tocada por muitas, muitas experiências de tempo.
Mais de 15 lonas migram pelos bairros que não constam na paisagem mais visível. Alegria, Capucho, Circo do Motoka, Circo Show, Gleyse, J.Gomes, London, Marlin, Meridiano, Mirtes, Neves, Tessalonisense Rei, Tropical, World e Vip Circus vivem a mambembar entre o Bom Jardim e o Jardim Iracema, da Messejana à Barra do Ceará, passando pelas margens de rios como o Maranguapinho, pelas areias do Curió, da lagoa da Vila União.
Como podemos não vê-los? Como podem ser, lonas e circenses, tão invisíveis no equilíbrio precário de anunciar a cada dia que Hoje tem espetáculo? Diz o poeta Carlos Drummond de Andrade que, onde não há jardim, as flores nascem do investimento secreto em formas improváveis.
O fotógrafo Jacques Antunes registra a floração. A poesia brota em qualquer lugar. Chão duro de terra batida, ruas fora de mapa, terrenos baldios, campos de futebol de poeira, vazios que dizem muito da ocupação da cidade, do que a cidade se ocupa.
Como na música de Chico Science, a cidade não pára, a cidade só cresce. A cidade não cessa de fazer prosperar a aglomeração, não se indigna de não ter mais lugar, de não saber o que fazer com o que sobra, o que vaza, o que transborda.
As imagens são necessárias para que, cegos de tanto ver, como canta Caetano Veloso, possamos viver a densidade de mundos que se fazem e se desmancham. Como as flores que nascem e fenescem, dizendo do fluxo da vida, do que começa e acaba, do que surge e desaparece. As imagens como vestígios de nosso enfrentamento da morte, do desejo de expansão infinita que atravessa nosso sentir a finitude.
O circo chegou. Uma vez armada, não nos damos conta dos homens e mulheres que trabalharam para que a lona surgisse. Ela se mostra como algo que sempre esteve lá. Não sabemos de onde vem, das marcas do caminho, da travessia. Ela se vai. Mais uma vez. Passa diante dos nossos olhos e recorremos às fotos de Jacques, às imagens de Bergman em Noites de Circo para ver o deslocamento, o esforço coletivo de ir, de pelejar, de continuar.
Nos picadeiros, do caçula Farofinha, de 3 anos, ao mais velho palhaço em atividade no Ceará, Trepinha, 81 anos, todos sabem que sem tristeza não se faz um samba não, como nos ensinou a música brasileira. É o milagre tão humano, demasiado humano, da vontade de viver com viço sabendo da melancolia, sem negá-la. Como nos bastidores registrados por Jacques, como nas cenas de Palhaços, filme de Fellini.
No picadeiro, os números se sucedem: um menino e os chapéus voadores. Partimos da fotografia para o cinema: de Jacques para Abril Despedaçado, de Walter Moreira Salles. Superfícies onde se repete o número de malabares/chapéus.
Sim, cegos de tanto ver, fazemos imagens para perceber a série de acasos que o trouxe à cena, ao burburinho da feira. No filme, a feira enche a cidade de uma vida outra. Nas fotos de Jacques, a feira se atualiza à entrada do circo, com o comércio miúdo salpicado de corantes vermelho para a maçã do amor e rosa para o algodão doce, nacos tão artesanais quanto o figurino que Dona Rosa Brito faz para a família nos dizer, com o número da Pirâmide Humana, que a vida só é possível com o outro. Uma força só se mobiliza em relação a, só se realiza com.
A força das imagens de Jacques Antunes está cheia de graça. Como um viajante, o fotógrafo nos apresenta uma geografia com a intenção e a capacidade de nos tocar, de nos mobilizar para olhar e ver, para sentir. Só sentindo, diz Hilda Hilst, este caos que é o homem pode vibrar.
Olhemos, agora, duas imagens de lonas vazias. A da capa do livro, cor de barro, terra lavada pelo artifício. A outra, da lona feita com o lixo publicitário da sociedade que reduziu o consumo a uma prática frenética de aquisição e descarte. Como se fosse possível descartar não só o que envelhece, mas o envelhecer, o envelhecimento. Lonas vazias, silêncios eloqüentes.
Um vazio que nos chama, um vazio que nos interpela. Talvez por não sabermos ainda como perguntar com delicadeza e contundência sobre como estamos vivendo, como estamos a produzir nossa existência. Ainda que o mundo esteja sempre dando respostas, como diz Saramago no livro Memorial do Convento.
Um perguntar e responder que nos lembra os encontros do viajante veneziano Marco Pólo com o imperador Kublai Khan, n’As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino. De outras terras, Marco Pólo trazia narrativas e relatos para o grande Khan, senhor de um império tão vasto quanto desconhecido para ele próprio.
A cada encontro, o império ganhava concretude a partir do dizer de Marco Pólo, da escuta do imperador. Um jogo, a princípio, de falar e ouvir. Depois, renovado pelo silêncio, pela mostra que o viajante fazia de pequenos achados recolhidos em suas incursões pelo império.
É o que Jacques nos oferece, pequenos achados. Com seu silencioso relato, dá passagem ao invisível. Faz-nos estranhar a paisagem rotineira. Diz que a vida pode ser de muitos modos. Mas é sempre ávida, uma forja que não pára de arder. Encantadora e dolorosa, dolorosa e encantadora.
Sim, Jacques, a prática de olhar e ver encanta e dói.
Precisamos cuidar dos nossos jardins.