E o palhaço o que é?

Espuleta lembra o talentoso Bombril no dia dedicado a quem faz graça

Um dia antes de morrer, o palhaço Bombril acordou às duas da tarde, acalmou os cabelos rebeldes com um pouco d’água e, em companhia de Espuleta, nome de picadeiro de Rodrigo Senden, foi armar um circo no distrito de Sousas. No caminho, entre uma “barbeiragem” e outra de Espuleta, que assumia o volante, parecendo estar pilotando um daqueles táxis-maluco, Bombril relembrava antigas entradas e reprises de palhaço. “Ele era um cara fantástico. Devia saber mais de duzentas esquetes”, conta Rodrigo, aprendiz de Bombril. Enquanto se deleitava com os antigos causos do palhaço veterano que, apesar de ter colocado os pés no picadeiro tardiamente, aos vinte anos, parecia ter nascido sob uma lona, Espuleta não se dava conta que estava completamente perdido numa estrada de terra.

Ao avistar a lona semi-erguida do Troup Trama Circus, montada em uma fazenda, Espuleta e Bombril abrem um sorriso maroto, tal como o das crianças que assistiram em Amparo, durante o Festival de Inverno deste ano, a esquete O Apito, considerada a última performance de Bombril. “Optamos por esta reprise de palhaço devido ao tempo. Meu pai já estava doente e não podia ficar em pé por muito tempo”, explica a contorcionista Jaqueline de Souza, filha de Bombril. Aos 77 anos de idade, João de Souza, nome de batismo de Bombril, passava maus bocados com o Parkinson. No entanto, as mãos trêmulas e a voz baixa eram deixadas de lado quando o palhaço tomava um único remédio: o picadeiro. Ali, os sintomas da doença davam lugar a um homem irreverente e cheio de energia. “Quando ele chegava ao picadeiro se transformava em outra pessoa. Virava um monstro”, arremata Congão, apelido de Rodrigo.

Voltando à véspera da morte de Bombril. Na medida em que Espuleta e Fabinho de Souza, o palhaço Danoninho, armam a lona do Troup Trama Circus, trinta por vinte, com dois mastros, o velho palhaço Bombril supervisiona a montagem, com olhos apurados e uma bagagem de antigos picadeiros. Além do Circo Bombril, de sua propriedade, que percorreu o Brasil de cabo a rabo, João de Souza integrou diversas companhias circenses, como Circo Robatini, Estrela Dalva, Timbica e Pipoca. “Ele sentou numa cadeira e, no decorrer da montagem, ia apontando os erros. E assim fomos montando o circo juntos”. Às oito da noite, a tenda estava de pé. O cheiro fresco da lona e aquele sabor de serragem na boca, comum nas sessões de circo, mexiam com Bombril. Entre uma gag de palhaço e outra que ensinava aos artistas presentes, chamou Rodrigo num canto e o provocou: “Vamos montar um circo pra gente. Não tenho dúvida de que faremos sucesso por onde ele passar”.

Espuleta levou aquilo na brincadeira, como mais uma pilhéria de picadeiro de Bombril, que vira-e-mexe soltava uma piadinha de salão, antes de pronunciar o seu bordão: “Fa…vor, fa…vor, fa…vor, fa…vor, fa…vor! Coisa!”. Mas Jaqueline sabe que não era mais uma estripulia do pai. “O sonho dele era voltar a ter um circo, de poder administrá-lo. Queria voltar à ativa. Ele ficou doente quando, há dez anos, parou com o circo”. Também, não era nada fácil para Bombril, proclamado o Tarzan Brasileiro, na década de 50, devido a sua extrema força dental, ficar estacionado em casa, vivendo de lembranças. “Meu pai levantava uma mesa com os dentes. Junto com o meu padrinho, o trapezista Bira, ele fazia um número de força dental com trapézio. Ele segurava o trapézio com os dentes, enquanto o Bira se apresentava”.

O Tarzan brasileiro não tinha medo de nada. Alto lá! Tinha sim. Dois, por sinal. Medo da morte e de assombração. “Além de morrer de medo de morrer, ele trancava a casa toda. Tinha pavor de fantasma”, entrega Jaqueline. Atualmente, na ausência de Bombril, quem executa o ritual de, aos primeiros sinais da noite, trancafiar portas e janelas é o garotinho Kelvyn Koppe, de sete anos. Neto de Bombril, o aprendiz de palhaço não herdou apenas a mania do avô, mas o gosto pelo picadeiro e a irreverência de palhaço. “Ele pegou o jeito de meu pai. Os dois eram muito unidos. Com o avô, o Kelvyn aprendeu muita coisa sobre circo”. Não é à toa que, a partir de agora, o garoto sobe ao palco com o nome de Bombrilzinho.

Se não tivesse partido às nove da manhã, daquele 28 de outubro, depois de ter ido a uma igreja evangélica no Centro de Campinas, o veterano palhaço Bombril estrelaria duas ou três esquetes de picadeiro no III Encontro da Asfaci (Associação de Famílias e Artistas Circenses), que acontece no Sesc/Campinas, em razão ao Dia do Palhaço, comemorado no próximo domingo (10). “Na ocasião, iremos homenageá-lo com um espetáculo. Mas, com certeza, o seo Bombril está lá em cima esperando a vez de se apresentar. Esperto como ele, vai querer passar na frente de outros palhaços”, arrisca Espuleta. A propósito, nos últimos dois anos, o picadeiro brasileiro teve duas perdas irreparáveis. Waldemar Seyssel, o palhaço Arrelia, faleceu em 2005, à beira de completar um século e, George Savalla Gomes, o Carequinha, deixou a cena em abril deste ano, aos 90 anos de idade.

Abracadabra

Palhaço Espuleta ganhou na sorte grande. Apesar de ser considerado vagabundo, ingênuo e metido a rapaz de fino trato pela língua-de-trapo de Rodrigo Senden, seu criador, o fanfarrão não tem nada de bobo. Afinal, ele foi um dos poucos herdeiros de Bombril. “Antes de morrer o seo Bombril me ensinou um número de mágica cômica. Ele não revelou esse truque para ninguém, nem para seu filho”. Feliz da vida, Rodrigo Senden, palhaço há doze anos, não vê a hora de executar o número: A Caixa de Espadas, tido como um dos grandes destaques da performance do palhaço Poca Ropa que, devido as suas mil e uma utilidades dentro e fora da lona circense, foi batizado de Bombril.


Publicado in Correio Popular – Caderno Cotidiano, agosto/2009

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