Inclusão social de pessoas com deficiência no circo profissional
Artigo publicado originalmente em inglês no AnthroArt em: https://theanthro.art/social-inclusion-of-people-with-disabilities-in-professional-circus-rui-leitao/
Resumo
A inclusão é um tema cada vez mais em debate e em processo de transformação. As artes performativas não estão fora dessa equação e tendem cada vez mais a olhar para a problemática e a criar novas oportunidades para aqueles que muitas vezes são deixados para trás por questões físicas, intelectuais ou sociais. Neste artigo proponho uma análise crítica a uma programa de inclusão de pessoas com deficiência numa produção profissional de circo contemporâneo com o objectivo de compreender o impacto do mesmo nos participantes e na comunidade envolvente, assim como as dificuldades na implementação do mesmo.
PALAVRAS-CHAVE: inclusão, circo, deficiência.
Introdução
Historicamente a atenção dada à pessoa com deficiência é muito recente. Podemos apontar como o início do levantamento desta problemática de forma mais séria a partir da década de 1970, na altura em que Michael Pachovas com os seus colegas, a partir de um episódio que se poderia considerar de desobediência civil, criaram uma rampa de acesso ao passeio durante uma noite. A esse acto criou-se o termo “the curb cut effect”, que veio a transformar toda a história da acessibilidade (Blackwell, A. G., 2016). Na mesma década de 1970 é criada a disciplina de Estudos da Deficiência (Rios, Pereira, & Meinerz, 2019). Ainda assim é preciso esperar até 2006 para que a Organização das Nações Unidas criem a convenção dos direitos da pessoa com deficiência que começou, desde logo, a ser ratificada por uma ampla amostra de países, incluindo Portugal, em 2007. Percebe-se assim o motivo de que esta temática começou a tomar novas proporções a partir do início do presente século.
Acerca da história do circo moderno, esta tem outra magnitude, sendo que se inicia ainda no século XVIII pela mão de um cavaleiro de nome Philip Astley. A evolução do circo passa por muitas fases duas das quais gostaria de ressalvar para um melhor enquadramento deste estudo. A primeira fase que gostaria de destacar é a inclusão de pessoas com características anormais como modelos de exibição pelas suas características específicas. Os chamados “Freak Shows” têm início no século XIX e duram de forma expressiva até à década de 1970. Dá para perceber que esta década é sem dúvida um momento de viragem de como a sociedade começa a mudar a forma de lidar com a pessoa com deficiência. Apesar de nos dias de hoje este modelo de negócio ser totalmente reprimido — mas também certo de que ainda existam alguns espectáculos deste género —, a verdade é que podemos considerar como o primeiro acto de inclusão de pessoas com deficiência no circo. Na época eram exibidas pelas suas “anomalias” e de forma depreciativa, no entanto estes circos proporcionavam-lhes trabalho e remuneração, que em muitos casos era bastante alta. A segunda fase da evolução do circo que deixo nota é a criação do “Circo Contemporâneo” ou “Novo Circo”. Muito impulsionados pelo Maio de 1968 (Costa: 2005), uma série de artistas independentes não pertencentes a nenhuma família circense cria um novo conceito de circo fora da esfera dos circos tradicionais e familiares. Este modelo aproxima-se mais do teatro e da dança, cruzando-se inclusive com estas disciplinas, iniciando um nova linguagem e um novo modelo de trabalho. Ao contrário do circo tradicional em que se nasce dentro dele e é bastante impermeável a artistas de fora (Afonso, 2002), o novo circo trabalha com artistas oriundos de diferentes meios e contextos.
Esta introdução serve para localizarmos o programa “Panorama” levado a cabo pelo Instituo Nacional das Artes do Circo (INAC) enquadrado na linha de financiamento PARTIS & Arts For Change da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação La Caixa. “Panorama” é um programa de dois anos em que o principal foco é a integração de pessoas com deficiência em duas produções artísticas profissionais de novo circo. Uma característica relevante para o caso é que os participantes seleccionados são utentes de instituições de apoio à pessoa com deficiência e seus familiares.
Nesta investigação adoptei uma metodologia assente no modelo etnográfico onde, através do trabalho de campo como observador participante, pude experienciar todo o desenvolvimento do programa, que irei especificar mais à frente. Durante o trabalho de campo estava focado em tentar compreender como é que este projecto era aplicado e desenvolvido, quais as suas virtudes e debilidades, mas também entender de como toda a comunidade envolvente dos participantes actuava perante uma proposta como a da integração dos mesmos num espectáculo de novo circo. Interessava-me saber de como actuavam não só os profissionais envolvidos directamente no projecto, mas também os familiares e amigos dos participantes, os técnicos das instituições onde eles passavam os seus dias, a politica local, a comunicação social e por fim, a sociedade civil baseado na amostra do publico que assistiu ao espectáculo. Além da observação participante foram feitas entrevistas abertas aos vários intervenientes e anotações de conversas informais ao longo do processo.
Antes da exposição do “Panorama”, devo fazer nota à nomenclatura usada para fins de entendermos quais as partes envolvidas e os seus papeis no processo. Designo de “participantes” os indivíduos com deficiência que participaram no programa e de “artistas” os profissionais que dirigiram ou acompanharam o processo. Em boa verdade, no final todos eram artistas, mas para facilitar a leitura deste artigo optei por esta distinção.
O “Panorama”
Esta apresentação seguirá uma linha cronológica da aplicação do programa, o que nos permitirá entender a narrativa de todo o processo. O programa propunha quatro fases: 1) selecção dos participantes; 2) preparação técnica; 3) criação; 4) apresentação pública. Depois destas 4 fases ainda se realizou uma mesa redonda com a finalidade de partilhar os desafios do programa.
A primeira fase, a selecção, foi organizado da seguinte forma: foram convidadas 3 instituições de apoio à pessoa com deficiência do concelho de V. N. de Famalicão, cada uma destas fez uma pré-selecção de 8 indivíduos de ambos os géneros e com deficiências múltiplas. Totalizavam assim 24 indivíduos que participaram numa oficina de 3 dias nas instalações do INAC. Essa oficina foi dirigida pelas duas artistas de circo que iriam, mais tarte, complementar o elenco do espectáculo e a encenadora do mesmo. Alguns dos participantes pré-seleccionados já tinham feito parte de outros programas de circo social e de inclusão promovidos pelo INAC, como o “Envolvarte”, outros estavam a estrear-se. Neste momento do processo apercebi-me que as técnicas das instituições de apoio à pessoa com deficiência contavam com a selecção de alguns dos seus utentes, no entanto, o olhar da direcção artística era diferente. A decisão final era da encenadora, Carolina Vasconcelos, e esta sabia muito concretamente o que pretendia dos participantes. Não só eles tinham que ter alguma aptidão para as artes do circo, como deveriam demonstrar outras características, como autonomia e compreensão, para que pudessem assim desenvolver um espectáculo de nível profissional, ao contrário de programas como o “Envolvarte” em que todos os utentes das várias instituições participavam. No final ficaram seleccionados 5 participantes de 3 instituições. Estes 3 dias de trabalho foram de muito entusiasmo e, ao mesmo tempo, de muita confusão. Não se percebia muito bem se os participantes entendiam o que estavam ali a fazer, ou seja, que aquilo era um processo de selecção. Para a grande maioria era apenas mais um dia fora da instituição, a experimentar coisas diferentes.
A segunda etapa era o treino físico e técnico dos participantes seleccionados em algumas técnicas das artes do circo. No primeiro dia desta etapa há uma das participantes que partilha, com grande entusiasmo, a seguinte expressão: “fomos seleccionados, aqui estamos nós”. Torna-se claro, nesta segunda fase, o motivo de estarem a trabalhar neste projecto. Nesta primeira sessão de trabalho, a direcção artística mostra aos participantes uma selecção de vídeos de outras criações do mesmo género produzidas em outros países. Após a mostra dos vídeos têm uma conversa com os seleccionados expondo os objectivos do programa para o qual foram seleccionados. Esta sessão de esclarecimento não só foi importante para entenderem melhor o programa, como também os motivou a fazerem parte deste percurso. Alguns dos participantes projectavam-se naquelas imagens e ambicionavam serem artistas, sobretudo dois elementos que já tinham particpado em programas do género anteriormente. As técnicas de circo seleccionadas para as sessões de treino foram: a Roda Alemã, Malabarismo, Acrobacia e Globo. A selecção destas técnicas deve-se ao facto destas serem as especialidades dominadas pelas artistas que iriam acompanhar todo o processo e mais tarde fazer parte do elenco. O processo de treino durou cerca de três meses com uma rotina de 3 dias por semana, com 2 horas de treino por cada dia. Nesta fase, a equipa artística apercebe-se de que o tempo é demasiado curto para trabalhar com pessoas com as dificuldades que se apresentam. O tempo do processo de aprendizagem, apesar de ser bastante proveitoso, é muito superior ao espectável. Essa sensação foi-se ampliando e já no momento de criação a encenadora partilhava as suas dificuldades pela falta de tempo que tinha para trabalhar com os participantes.
É também nesta segunda etapa que verifico uma grande divergência nas forma de trato das técnicas das instituições de apoio à pessoa com deficiência e das artistas que acompanhavam o processo. Devemos entender, por questões históricas, que as pessoas com deficiência que ocupam o seu tempo livre em instituições de apoio à pessoa com deficiência não deixam de de ser pessoas segregadas da sociedade (Aydos, 2001). Esta sua segregação cria uma linguagem muito paternalista, ou maternalista, entre o cuidador e o cuidado. Mesmo que as instituições desenvolvam várias actividades fora dos seus estabelecimentos, estes indivíduos estão praticamente sempre entre si, ou seja, o processo de real inclusão com a a sociedade é ainda muito parco. Por outro lado, porque as artistas envolvidas não estão a par dessa linguagem, e porque um dos motivos deste programa é quebrar barreiras, apercebo-me que a linguagem destas é muito mais horizontal, de um para um. Nas primeiras sessões senti um certo desconforto por parte de algumas técnicas que tentavam traduzir aquilo que era dito aos participantes ou em sentido inverso. Com o passar do tempo, e com a conquista de confiança por parte das artistas, este desconforto foi desaparecendo, sendo que no momento de criação as técnicas já nem acompanhavam os seus utentes nos ensaios. Ganhou-se confiança, autonomia e o processo de inclusão começa a desenrolar-se.
Depois de três meses de treino intensivo das técnicas de circo, chega o momento de partirem para a criação propriamente dita. Como se trata de um criação feita de raiz, o jogo ganha uma importância muito relevante nesta fase. Mesmo que baseado numa história real, o espectáculo “Ilha Elefante” será sempre uma interpretação performática dessa história. O jogo dramático permite um outro envolvimento entre os participantes por ser uma prática colectiva (Salgado, 2014). É um espaço físico e temporal distante do quotidiano, onde as regras são criadas conforme os participantes vão-se envolvendo no jogo e onde a imaginação pode vaguear por onde bem entender. O acto de fingimento no jogo dramático é um acto natural para estes participantes, talvez pela tipologia de deficiência que lhes era atribuída, o mundo imaginário é um espaço que eles conhecem bem. Artaud (in Cesariny, 2021) na sua “Carta aos Médicos-Chefe dos Asilos de Alienados” refere-se a essa libertação dos prisioneiros desses asilos, referindo-se que estes eram pessoas apenas com outra visão do mundo. Artaud sofreu atrozmente os tratamentos dos meados do séc. XX e só muito mais tarde compreenderam a sua genialidade. Não é a nossa condição humana, física e intelectual, que nos limita a imaginação, mas sim o meio onde muitas vezes nos desenvolvemos como pessoas. Depois da estreia do espectáculo fiz uma visita a cada um dos participantes para saber como estavam e um deles partilhou-me que sentia saudades do INAC porque “lá posso falar, aqui [na instituição] não”. Talvez não fosse a questão do “falar”, mas sim a do “ser” que ele me quereria transmitir.
Todo o processo de criação foi um processo de grande desenvolvimento para todas as partes, sobretudo para os participantes e para as artistas. A relação entre ambos foi gerando para uma nova linguagem entre eles, onde já não era necessária a tradução de ninguém. Também não era preciso o paternalismo normalmente adoptado com pessoas com deficiência. Aos poucos, cada um deles, foi ganhando a sua autonomia e responsabilidade. Era bastante perceptível o seu desenvolvimento como seres humanos mais autónomos, responsáveis e capazes.
O dia de estreia, o culminar de todo o processo, foi um dia em que me deparo com uma questão “Porque é que estes jovens estão entregues às instituições?”. Estamos a falar de 5 jovens com um certo grau de autonomia e capacidades. Ao reler os meus apontamentos, das conversas e entrevistas que tive com familiares e directoras das instituições, apercebo-me que não é por vontade delas que estes jovens não seguem uma carreira. A directora de uma das instituições partilhava comigo que “sonha em ver alguns dos seus utentes conseguirem uma relação amorosa nas suas vidas e viverem autonomamente”. Também a irmã de um dos participantes gostava muito de dar essa oportunidade ao seu irmão mas diz que “ninguém lhe dá emprego, o país não está preparado para receber estas pessoas”. Foi a partir destes depoimentos, que levei, mais tarde, na mesa redonda a seguinte questão: “até onde é que os nossos investimentos são suficiente para lidarmos com jovens como estes?”. Quando me refiro ao “nossos” é toda a gente. A responsabilidade não é só política, da família ou das instituições, mas sim de toda a sociedade que não se envolve com estas questões porque nem sequer lhes toca.
Conclusão
Reforço o pensamento, que tenho vindo a desenvolver ao longo de anos, sobre o poder das artes performativas no processo de construção e transformação do ser humano e, por consequência, da sociedade. Neste caso em concreto percebo que este trabalho não é apenas uma forma de desenvolver novas capacidades aos participantes, mas também o desenvolvimento de novas leituras para a problemática da inclusão de pessoas com deficiência na sociedade. A participação de pessoas com deficiência numa produção profissional de circo contemporâneo gerou várias adaptações de discursos e relações com os participantes sobretudo nas duas partes mais envolvidas, as instituições de apoio à pessoa com deficiência e os artistas de circo que levaram a cabo este projecto. Concluo também que a sociedade civil, a política e a comunicação social, pelo menos ao nível local de onde decorreu o projecto, estão ainda muito distantes desta problemática e que apesar de sentirem empatia com ideias como esta o seu apoio está longe de ser o possível e necessário. Este tipo de projectos requerem muita energia, empenho e tempo, que por consequência, também exigem um financiamento substancial. Tal como já aconteceu com o teatro e a dança em projectos do mesmo âmbito, ou seja, de cariz profissional, acrescenta-se agora, em Portugal, o circo como uma nova ferramenta do desenvolvimento de novas possibilidades de transformação da sociedade sobre a questão da inclusão social de pessoas com deficiência: questionando, problematizando e criando novas oportunidades.
Bibliografia
Afonso, J. (2002). Os circos não existem: Família e trabalho no meio circense. Impr. de Ciências Sociais.
Aydos, V. (2021). Construindo o “bom trabalhador”: Inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Etnográfica, vol. 25 (2), 289–314. https://doi.org/10.4000/etnografica.9818
Blackwell, Angela Glover. (2016). The Curb-Cut Effect. Stanford Social Innovation Review, 15, 2833. https://doi.org/10.48558/YVMS-CC96
Cesariny, M. (2021). Textos de afirmação e de combate do movimento surrealista mundial (2.a edição, Novembro de 2021). Documenta.
Costa, I. A. (2005). As artes do circo. Sinais de Cena, 1(3), 49–56.
Rios, C., Pereira, É. L., & Meinerz, N. (2019). Apresentação: Perspectivas antropológicas sobre deficiência no Brasil. Anuário Antropológico, v.44 n.1, 29–42. https://doi.org/10.4000/aa.3475
Salgado, R. S. (2014). A Política do Jogo Dramático: Marginalidade descentrada como resistência criativa. Em Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir (pp. 77–113). 100Luz.