Introdução do livro Respeitável público… O circo em cena

Neste artigo Erminia Silva apresenta o texto de introdução de seu livro em co-autoria com Luis Alberto de Abreu. Respeitável público… O circo em cena, foi lançado em dezembro pela Edições Funarte. Para saber mais sobre o livro visite nossa Livraria.

Para que uma arte sobreviva, ela necessita fazer escola.[1]

Desde o final do século XVIII, na Europa Ocidental, grupos e formas de expressões artísticas diversas foram se constituindo e se identificando como circenses.  Esses grupos, na sua maioria familiar, formaram o que se costuma denominar de “dinastias circenses” e iniciaram trajetórias para as Américas e uma parte do Oriente.

O modo de organização do trabalho e do processo de aprendizagem circense manteve as características presentes entre os artistas contemporâneos do período: a transmissão oral do conjunto de saberes e práticas de geração-a-geração; saberes que davam conta da vida cotidiana, capacitação e formação dos membros do grupo.

No Brasil, a partir do início do século XIX, registra-se a presença de várias famílias circenses européias, trazendo a “tradição” da transmissão oral dos seus saberes. A organização do circo, nos diferentes lugares para os quais os artistas migraram, foi marcada pelas relações singulares estabelecidas com as realidades culturais e sociais específicas de cada região ou país, sem quebrar a forma de transmissão do saber: familiar, coletiva e oral. Esta forma perdura praticamente até os dias de hoje, particularmente nos grupos circenses itinerantes da lona.

A relação de trabalho que se estabeleceu no circo, mesmo com apresentações individuais no espetáculo, esteve centrada na organização familiar como a sua base de sustentação. A transmissão do saber circense fez desse mundo uma escola única e permanente. Esse saber, essa arte ancestral e única que é o circo, só se perpetua graças a dois mecanismos: a transmissão do saber de pai para filho e o ensino proporcionado por uma escola. [2]

O conteúdo deste saber era (e é) suficiente para: ensinar a armar e desarmar o circo; preparar os números, as peças de teatro e capacitar crianças e adultos para executá-los. Este conteúdo tratava também de ensinar sobre a vida nas cidades, as primeiras letras e as técnicas de locomoção do circo. Através deste saber transmitido coletivamente às gerações seguintes, garantiu-se a continuidade de um modo particular de trabalho e uma maneira específica de organizar o espetáculo.

Eu e mais dezesseis primos fazemos parte da quarta geração, no Brasil, da família Wassilnovich (depois Silva) que veio da Europa na segunda metade do século XIX. Chegou como saltimbanco, tendo como instrumento de trabalho quase que exclusivamente seu corpo. Como seus componentes eram produtores e portadores da memória circense, detentores dos saberes artísticos e de construção dos espaços para suas apresentações, organizaram a partir das matérias primas disponíveis na época e nos lugares, seus palcos/picadeiros e seus espetáculos.

Diferentemente de nossos antepassados, não pudemos dar continuidade à aprendizagem dentro do circo, pois somos uma geração que não mais recebeu os ensinamentos circenses. Não possuímos qualquer relação profissional como artistas.

Por quê não nos foi destinado um mestre que nos transmitisse este saber e garantisse a nossa permanência no circo? Meu pai, Barry Charles Silva, afirmou em entrevista que “… não queríamos que vocês aprendessem nada no circo porque depois nós não conseguiríamos mais tirá-los de lá”. Por quê sentiram a necessidade de nos tirar do circo? Isto acontecia apenas na minha família ou as outras famílias circenses também sentiam esta necessidade?

Em idade escolar, fomos mandados para a casa de parentes que possuíam residência fixa, para iniciarmos nossos estudos “formais” e construirmos um “futuro diferente” e “melhor” que a vida que haviam herdado, segundo eles mesmos. Sempre ouvimos as histórias de circo, víamos fotografias ou recortes de jornais, mas não havia um livro para ler, assim como não havia nada semelhante a essas histórias em nossos livros escolares. Tratava-se da história do “povo do circo” que ninguém mais conhecia.

Adultos, parte de nós percebeu que essa distância tornou difícil a continuidade da arte circense, porque não éramos mais os depositários de suas memórias – ensinamentos e saberes.

A partir das décadas de 1940 e 1950, período de nascimento da minha geração, iniciou-se um processo de transformação do modo de organização do trabalho e do processo de socialização/formação/aprendizagem, alterando-se a transmissão dos saberes circenses, o que fez gerar outras formas de produção do espetáculo e do artista.

Esse processo não foi vivenciado apenas no interior da minha família. Acontecia também com outras famílias que ainda permaneciam no circo. Não se pode negar que, até hoje, há a continuidade da transmissão de saberes, embora de forma distinta dos modos de transmissão do saber coletivo dos “tradicionais”. Atualmente, não está dada, no modo de organização do trabalho dos circenses itinerantes da lona, a responsabilidade pela continuidade do ensino artístico da geração seguinte. Cada família passou a se preocupar com a “escola formal” onde seus filhos iriam estudar e não mais com a formação sob a lona.

As memórias do “povo da lona”, daqueles que têm “serragem nas veias”, são pouco conhecidas. A importância desse registro parece ser evidente, tanto porque a produção da teatralidade circense fez e faz parte da constituição da história cultural no Brasil, quanto porque aqueles que estão dentro do circo não se dão conta daquela produção e nem mesmo das transformações que as gerações anteriores e eles produziram.

Em 1985 comecei a entrevistar meus familiares circenses com o intuito inicial de saber, pelo menos, a origem da minha família. Tais entrevistas aumentaram minha curiosidade e, então, passei a procurar pela história das famílias circenses. Entrevistei pessoas de outras famílias, o que me fez perceber certas lacunas no conhecimento dos circenses sobre a sua história, assim como um forte sentimento de angústia por “algo que havia mudado” ou “algo que havia acabado”.

Apesar de não instruírem mais seus filhos do “modo tradicional”, os entrevistados procuraram mostrar como tinham sido ensinados e como este aprendizado estava, agora, se modificando. Ficava cada vez mais claro, pelos depoimentos dos circenses da década de 1980, que uma determinada forma de viver no circo estava se transformando e que um outro circense estava nascendo.

A partir das entrevistas realizadas, ponto de partida para minha pesquisa, dois temas fundamentais apareceram. O primeiro, foi a formação do circense através da transmissão oral do saber, passado de geração-a-geração, intermediado pela memória. O segundo, diz respeito à constatação de que houve uma quebra nessa transmissão, que abriu a possibilidade da construção de um outro modo de organização do trabalho e de produção do espetáculo circense.

É necessário estudar a linguagem circense com a perspectiva de construir sua historicidade, tomá-la no seu jeito de constituição de singularidades sob a ótica do processo de socialização, formação e aprendizagem dos circenses. Mesmo possuindo artistas de diferentes nacionalidades, a permanência das famílias, no Brasil, formou, conformou e organizou a construção de um determinado modo de se fazer circo no século XIX e início do XX.

Assim, o que se pretende nesse livro, é saber como se constituiu e se consolidou este circo naquele período, como o conhecimento foi transmitido e como as relações familiares e de trabalho se conformaram de tal modo que resultaram no que denomino de circo-família.

*  *  *

Um projeto dessa ordem só pôde ser levado adiante porque a historiografia, nas décadas de 1970/80 abriu espaços para o estudo de temas e fontes antes considerados pertinentes a outras áreas das ciências humanas.

Ainda é recente a configuração do que se convencionou chamar de história cultural, no interior da qual a “cultura popular” parece ter sido de novo descoberta. Eric J. Hobsbawm em suas reflexões sobre os problemas técnicos desta outra história, com origem no povo, a “história da cultura popular”, diz que a história do povo vira moda devido à natureza política das próprias motivações dos historiadores.[3]

Entretanto, e apesar das aberturas promovidas pela história cultural, certos temas, como o circo, parte da vida cultural brasileira, não foram “descobertos” pelos historiadores, mesmo sendo produzidos trabalhos e pesquisas, no Brasil, com as novas abordagens históricas. Essa discussão é importante, na medida em que este trabalho se propõe a analisar o circo através de uma perspectiva da História, incorporando instrumentais metodológicos de outras disciplinas, como por exemplo, a Antropologia.

Para realizar este estudo de compreensão da formação de um grupo social que se desenvolveu através da transmissão oral de seus saberes e práticas, a metodologia adotada consistiu em tratar de sua história através de fontes orais. Não utilizo este conceito na linha de que seja “história oral”, pois acredito estar fazendo uma pesquisa no campo da História, sem quaisquer adjetivos ou estatutos particulares.[4]

A data de nascimento foi o critério de escolha dos circenses entrevistados. Foram selecionados aqueles que nasceram até a década de 1940 e cuja memória familiar era capaz de informar sobre o período estabelecido nesta pesquisa, totalizando quatorze entrevistas. Há um entrevistado que nasceu em 1963, mas é importante incluí-lo como fonte, pois pertence a uma família que organizou o circo com as características do circo-família.

Além destas entrevistas feitas pessoalmente, também são fontes desse estudo três entrevistas de circenses realizadas pelo Serviço Nacional de Teatro, entre 1976 e 1978.  Foram localizadas nos arquivos do Cedoc/Funarte, Rio de Janeiro.

As entrevistas são fontes primárias e privilegiadas para os objetivos propostos, mas foram também incorporados como fontes os livros escritos por “gente de circo” – os memorialistas, nos quais se encontram relatos de cunho autobiográfico, que contêm informações pertinentes ao tema. [5]

A maneira como se abordou cada entrevistado foi orientada para que relatassem suas vivências como circenses, mesmo para aqueles que não haviam nascido em circo. Estas entrevistas foram todas gravadas e transcritas.

Dado que não se pretendia fazer história de vida ou de uma família, os entrevistados e os memorialistas foram analisados como um conjunto. O método utilizado para esta análise foi estabelecer recortes temáticos, ou melhor, referências, de modo a abordar as informações das fontes a partir de parâmetros originados delas mesmas, abstraídos pelo historiador.

Os dados iniciais para esses recortes decorrem da semelhança nos relatos de suas histórias, o que permitiu a apreensão dos elementos fundamentais para entender a constituição do circo-família, quais sejam: tradição, família e transmissão do saber. Verificou-se que estes elementos são os definidores do conjunto formado pelo processo de socialização/formação/aprendizagem e a organização do trabalho.

Na medida em que a proposta é refletir sobre a constituição histórica do circo-família, construída através da memória do circense, é preciso discutir a importância da memória e das fontes orais na pesquisa histórica.

O trabalho da memória, quando mediado pelo ofício do historiador, revela possibilidades novas de reconstrução do passado. Mas, não se deve pretender reconstituir o “quadro cronológico” em que o passado está inserido através das informações orais. A preocupação em contextualizar o grupo que está sendo estudado deve ser do historiador, desde que não perca de vista os aspectos peculiares deste grupo. Não se pode imputar a “fraquezas cronológicas” das fontes orais a impossibilidade da realização de um estudo. É preciso verificar o que significa e como é apreendido o tempo dos acontecimentos no interior do grupo estudado.

Para o circo-família o tempo era marcado por mudanças e transformações em seu próprio modo de produzir o circo como um espetáculo, e neste movimento ser também transformado. É o tempo do trabalho que obedece a um outro tipo de marcador: a organização do espetáculo e o processo de socialização/formação/aprendizagem.

Os dados extraídos de uma entrevista não são somente lembranças pessoais, mas a elaboração de algo que fez (e faz) parte do grupo social e familiar da pessoa entrevistada. No caso do circo, a vida dos que vivem “debaixo da lona” possui uma característica singular, pois é sempre um viver comunitário. Sua estrutura básica é de agrupamento de famílias, que vivem e trabalham no mesmo local. Nessa relação de vida e trabalho, as famílias “tradicionais” transmitiam todo o aprendizado do ofício, através do que foi aprendido, por sua vez, com seus antepassados. Nesse contexto, é difícil ver o relato da memória de um artista circense como produção unicamente individual, ela é coletiva também. O aprendizado, tanto o da vida como o de ser artista, ocorria no próprio local em que se vivia e trabalhava; assim é a construção social de um processo de trabalho específico: o trabalho circense. Sua especificidade reside no fato de que, além de ter uma dimensão individual, constitui um processo de formação e capacitação ao mesmo tempo grupal e familiar. [6]

Não é o caso de afirmar que os relatos reproduzem uma homogeneidade e que eles são a “pura” manifestação da verdade. Possuem contradições, não porque são baseados na memória, mas sim porque são fontes, e como qualquer fonte serão analisadas à luz de sua historicidade e produção. Nesse sentido, esse estudo diverge de Paul Thompson, particularmente quando faz um contraponto entre as “vantagens” das “evidências orais” tomadas como mais verdadeiras frente às documentais. [7]

Verifica-se, por exemplo, que no presente os circenses elaboram um discurso em que é constante a necessidade de se afirmarem como “legítimos” representantes da cultura popular, pois apresentam um espetáculo de relação direta com o público. Consideram-se como “a” forma de lazer não “contaminada” pelos meios de comunicação de massa.

Essa elaboração é analisada por alguns trabalhos como verdadeira, na medida em que o circo seria visto como aquele que “resistiu” e “sobreviveu” a todas as formas de “dominação” de outras manifestações culturais, consideradas “impuras” e, portanto, não populares. Os próprios relatos permitem verificar que esse discurso está ligado ao momento que o circense vivencia. A análise das fontes orais e dos memorialistas circenses mostra que, longe de se sentirem apenas os “sobreviventes”, sempre mantiveram um padrão de diálogo com os diferentes sujeitos sociais e culturais da sua época.

As fontes orais foram imprescindíveis para esse estudo, em sua proposta de reconstituir um momento da história do circo no Brasil, caminhando pelo seu interior, de modo a expressar o movimento histórico dessa construção. Não é, portanto, problema a recriação do passado a partir do presente, mas sim um desafio para o historiador compreender por que os circenses incorporaram um determinado discurso, por exemplo o da “pureza”, como também entender os múltiplos significados que esse grupo apresenta em suas relações sócio-culturais com a sociedade.

Assim, compreender, através dessas fontes, o mundo interno do circo como um lugar no qual se conformaram saberes e práticas, requer uma reflexão sobre sua historicidade, centrada no que ele tem de singular e nas suas relações de compartilhamento com outros grupos sociais inseridos no mesmo contexto. Essa compreensão leva à percepção de que houve transformações na forma de constituição do circo-família, que não delineava um todo homogêneo, mas que possuía uma maneira particular de organização e que produzia um tipo particular de artista.

O conceito circo-família foi construído por meio da abstração de elementos que, para os circenses – a fonte – constituíam matéria prima de seu modo de viver. A noção geral dada pelo conceito é a de um circo que se fundamentava na família circense. O conceito é complexo, constituído por meio da intermediação dos vários aspectos que conformam essa idéia de família circense. Estes vários aspectos – saberes, práticas e “tradição” – já estavam presentes na formação do circo com a chegada das primeiras famílias no início do século XIX no Brasil.

A partir desse período, verifica-se a “fixação” e o entrelaçamento das diversas famílias através de casamentos, sociedades, contratações e incorporações de diversos artistas locais. Desse modo, como a resultante da permanência é uma nova linguagem, o nascimento de filhos brasileiros com nomes brasileiros, a interligação e a fixação das famílias resulta, também, em um processo de socialização/formação/aprendizagem e em uma organização do trabalho em que os saberes, práticas e a “tradição” serão os balizadores da continuidade e manutenção do circo.

Assim, do final do século XIX à metade do seguinte, recorte temporal desse estudo, é possível observar um circo que desenvolveu relações sociais e de trabalho específicas, resultantes das variadas formas de adaptação entre o artista imigrante e a consolidação do circo como uma escola, além das interligações entre as várias famílias circenses – proprietárias ou não. É a esse conjunto que denomino circo-família.

Mas o circo-família só existiu até o momento em que estava fundamentado na forma coletiva de transmissão dos saberes e práticas; através da memória e do trabalho, e na crença e aposta de que era necessário que a geração seguinte fosse portadora de futuro, ou seja, depositária dos saberes. Transmitido oralmente, que pressupunha também todo um ritual de aprendizagem para fazer-se e tornar-se circense.

A organização do trabalho circense e o processo de socialização/formação/aprendizagem formavam um conjunto, eram articulados e mutuamente dependentes. Seu papel como elemento constituinte do circo-família só pode ser adequadamente avaliado se este conjunto for considerado como a mais perfeita modalidade de adaptação entre um modo de vida e suas necessidades de manutenção. Não se tratava de organizar o trabalho de modo a produzir apenas o espetáculo – tratava-se de produzir, reproduzir e manter o circo-família.


[1]. Annie Fratellini –- “O Picadeiro é a liberdade”, in O Correio da UNESCO. Revista mensal. Rio de Janeiro, ano 16, nº. 3, março/1988, p. 27.

[2]. J. Ziegler apud Mônica J. Renevey – “Escola para artista”, in O Correio da UNESCO, op. cit., p. 24.

[3]. Eric J. Hobsbawm – “A Outra História. Algumas reflexões”, in: Krantz, F. (org.) – A Outra História. Ideologia e protesto popular nos séculos XVII a XIX. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

[4]. Ver: Joan del Alcazar i Garrido – “As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate”, in Revista Brasileira de História. São Paulo: v. 13, nr. 25/26, pp. 33-54. set. 92/ago. 93.

[5]. Os livros são: – Antolin Garcia – O circo (A pitoresca turnê do Circo Garcia, através da África e países Asiáticos). São Paulo: Edições DAG. 1976. Waldemar Seyssel – Arrelia e o Circo. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1977. Dirce (Tangará) Milietello – Picadeiro. São Paulo.: Edições Guarida Produções Artísticas, 1978. Tito Neto – Minha Vida no Circo. São Paulo: Edições Autores Novos, 1985.

[6]. Ver: Maurice Halbwachs – A Memória Coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990. Em particular quando discute memória coletiva e memória individual, pp. 25-47; bem como: Márcia Mansor D’Aléssio – “Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora”, in Revista Brasileira de História, op. cit., pp. 97-103.

[7]. “As Contribuições da História Oral”, in A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, pp. 104-137.


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