Há cem anos, O “Circo de Cavalinhos” no interior de São Paulo
O circo sendo anunciado no jornal da cidade – um tablóide de quatro páginas que era a sensação no início do século passado, impresso em “typographia”, na base do linotipo. Para quem cresceu em contato com o mundo virtual isso até parece coisa da idade da pedra, mas nesse tempo, o circo tinha um lugar especial na cidade de São Roque, distante 58 km de São Paulo.
O circo era uma importante atração, ao lado do teatro e do cinema. Em minhas pesquisas sobre a história da cidade de São Roque, adquiri os exemplares do semanário O Sãoroquense dos anos de 1904 e 1909, que retratavam minuciosamente o cotidiano da pequena cidade do interior de São Paulo. As matérias iam de poesias publicadas com destaque na primeira página a comunicados sobre a enfermidade das pessoas ou a mudança de algum cidadão para outra localidade.
Na coluna “Noticiário” pequenas notas acerca dos assuntos do cotidiano da cidade, do país e até do mundo. O circo sempre estava presente nessas notícias, nas edições do primeiro semestre de 1904. O anúncio antecipado criava a expectativa. A cada edição, o jornal acompanhava a presença do circo como respeitada atração cultural e de lazer. Sua chegada, seus espetáculos, sua partida… Tudo registrado, tudo divulgado. Circos “austríacos”; circos dirigidos por artistas de origem japonesa, como o “Guarany”; ou de propriedade de famílias italianas, como o Temperani, estão presentes nas páginas de O Sãoroquense.
A cidade, fundada por volta de 1654, teve seu panorama econômico, social e cultural influenciado pela chegada dos imigrantes italianos ao final do século 19. Entre eles, artistas, amantes do teatro e músicos. São Roque vivia uma efervescência cultural jamais vista que perdurou por mais de meio século.
Circo versus Teatro
No teatro São João, levavam peças teatrais com artistas famosos, no início do século 20, e a cidade também tinha seus próprios grupos teatrais, orquestras, bandas e a Sociedade União Literária. Nesse panorama cultural, o circo tinha um espaço próprio. Era valorizado pela porção da população local que apreciava e participava da vida cultural. O “circo de cavalinhos” estava presente na cidade, paralelamente às apresentações de espetáculos do teatro local, concorrendo com ele.
Na edição do jornal O Sãoroquense de 10 de janeiro de 1904, o anúncio de um terço de página do Theatro São João convida para o espetáculo do domingo da Sociedade Operaria Musical e Recreativa de Mayrink. Na primeira parte, a comédia em dois atos, de Coimbra Leite, Os Espectros; na segunda parte, a comédia em um ato de Dupont de Sousa, Valentes e Medrosos. No intervalo, eram levados monólogos como Todos Cortam e Dentada da Sogra e declamadas poesias como O Navio Negreiro, de Castro Alves e O Fiel, de Guerra Junqueira.
Já na edição seguinte do mesmo jornal, no dia 17 de janeiro de 1904, lê-se no “Noticiário”:
Circo Austríaco
Esta companhia de cavallinhos que possue bons artistas, tem dado excellentes espectaculos com regulares concorrencias, no largo Tiradentes.
Na edição de O Sãoroquense do dia 31 de janeiro de 1904, o jornal revela a partida do circo:
Circo Austríaco
Depois de ter dado dois espectáculos retirou-se desta cidade a companhia de cavallinhos do circo austríaco. Os dois espectaculos foram regularmente concorridos, porém depois não foi possível obter mais casa, apezar de insistir por 3 noites consecutivas. O povo prefere mais ao theatro.
As notícias do semanário dão conta do grande interesse da população por espetáculos teatrais, mas note-se que a despeito da cidade ser muito pequena, cerca de três mil habitantes nessa época, e da forte influência da colônia italiana na preferência pelo teatro, o circo mantém-se por mais de duas semanas, com espetáculos “concorridos”.
Para a montagem da lona eram reservados os principais espaços públicos do pequeno centro urbano de São Roque: a Praça da Matriz, a Praça da Republica, ou o largo Tiradentes, depois chamado de Largo dos Mendes.
No dia 27 de março de 1904, o jornal O Sãoroquense anuncia:
Circo
Acha-se nesta cidade uma companhia eqüestre, que vae levantar o barracão no Largo da Matriz.
Pode-se inferir que o circo dessa época na cidade não é o circo-teatro,o genuíno circo brasileiro, embora os registros históricos dêem conta de que ele nascia nesse mesmo período, mas com o objetivo de levar o teatro para as localidades onde não havia. A referência no jornal O São-roquense é sempre ao chamado “circo de cavalinhos” que remonta à origem atribuída por historiadores ao circo moderno, de origem européia, com picadeiro e cobertura como conhecemos hoje, apesar da evolução dos materiais utilizados em sua montagem.
Novo anúncio da chegada de um circo na cidade é publicado no jornal de São Roque em 22 de maio de 1904:
Cavallinhos
Consta que vira, por estes dias, dar uma serie de 4 espectaculos, a companhia do Circo Guarany, sob a direção dos artistas J. Alves e Takssawa Mange.
Pode-se notar aqui a presença de um artista de origem japonesa, provavelmente, na direção do circo. Já na edição seguinte, em 29 de maio de 1904, O Sãoroquense anuncia a estréia na cidade do Circo Guarany, que parecia ser um circo de porte maior do que o “austríaco” anunciado anteriormente, pelo teor da nota publicada e pelo espaço reservado a ele:a principal praça de São Roque.
Cavallinhos
Hoje estreará o circo Guarany, cujos artistas vem procedidos da fama de excellentes no gênero. O seu pavilhão foi levantado no Largo da Matriz o que concorrerá para boas enchentes nas noites de funcções.
Na página ao lado, na mesma edição do jornal, está estampado um anúncio, da estréia do circo, provavelmente pago, com destaque para o espetáculo eqüestre, que divulga também os preços: 1$000 (mil réis) para as gerais e 2$000 (dois mil réis) para os lugares “reservados”. O anúncio comunicava também que não havia meia-entrada.
Na edição de 5 de junho de 1904, o jornal dá conta do sucesso do circo na cidade, na mesma na coluna “Noticiário”, com idêntico título:
Cavallinhos
As funcçoes realizadas no Circo Guarany tem attrahido a atenção popular de modo que as enchentes alli tem sido a deitar fora. Os trabalhos tem agradado muito ao nosso público. Hoje em novo e variado espectaculo.
O circo permanece por duas semanas na cidade, montado no Largo da Matriz, na área em frente à igreja católica, principal ponto de referência da cidade na época. Quinze dias parece ser o tempo que os circos permaneciam montados em São Roque, nesse período.
E em sua edição de 12 de junho de 1904, O Sãoroquense anuncia a apresentação do último espetáculo da temporada do Circo Guarany na cidade:
Cavallinhos
Com boas concorrências e bons trabalhos a companhia do Circo Guarany continua a dar boas funcções no barracão do Largo da Matriz. Hoje haverá um variado e attrahente espectaculo de despedida da companhia.
Na edição seguinte, o jornal anunciava a excelente temporada do circo em São Roque e a próxima apresentação da companhia do Circo Guarany, na cidade de Capivary, ainda no estado de São Paulo.
A presença de diferentes circos na cidade, de acordo com o noticiário do semanário local, no primeiro semestre de 1904, revela uma periodicidade de cerca de dois meses, entre o desmontar da lona de um circo e a chegada de outro à cidade, a mesma mantida para a apresentação de novos espetáculos no teatro São João.
No final do mês seguinte, na edição de 31 de julho de 1904, o jornal previamente dá a notícia da chegada de um novo circo à cidade, o que mostra que durante o contato com a localidade para planejar a montagem da lona, era costume comunicar a vinda do circo também à imprensa, com o objetivo da divulgar a temporada das companhias circenses na cidade.
Circo
Pretende vir trabalhar brevemente nesta cidade a companhia do circo Temperani actualmente em Sorocaba.
No dia 14 de agosto, véspera das Festas de Agosto, as tradicionais festas do padroeiro da cidade, que desde o século 19 envolvem festejos religiosos e profanos, o jornal o Sãoroquense comunica a montagem da lona do circo Temperani, no “largo da República” (hoje Praça da República). Percebe-se que aí o circo tem participação na maior festa da cidade, como atração nos dias em que todos os moradores da zona rural tinham o costume de vir para o centro da cidade e praticamente toda a população participava dos festejos.
A montagem da lona é deslocada para o “largo da República”, próximo do “largo da Matriz”, em função, provavelmente, dos festejos religiosos, com desfile e procissão que, até hoje, como naquela época, ocupam as ruas centrais da cidade e culminam em frente à igreja Matriz, na praça do mesmo nome.
Circo
A Companhia do Circo Temperani levantou o seu barracão no Largo da República, onde dará alguns espectaculos durante as festas.
Cine-Pathè
Percorrendo as páginas dos exemplares do jornal O Sãoroquense de 1909, não encontrei uma única nota sobre a presença de circos na cidade. Nesse ano, além da presença do teatro, surge o cinema na cidade, primeiro com apresentações no teatro São João, pela empresa Santos, vinda de fora, anunciada no jornal como Cinematographo “Pathè”, em cuja programação constavam vários filminhos de curta duração, dramas e comédias, entre eles um intitulado “Os dois palhaços na hospedaria”. E depois com sessões da companhia Amosso & Bonini, pertencente a famílias de italianos da cidade, que aconteciam no teatro local ou no hotel Garibaldi, de propriedade dos Bonini, quando se intercalavam exibições de filmes e peças teatrais.
Mas, embora os anúncios de circo estejam ausentes do “Noticiário” do jornal O Sãoroquense em 1909, o historiador local Joaquim Silveira Santos, em seu livro São Roque de Outrora, afirma que nesse período, os carros de boi cruzavam as cidades sonorizando as manhãs. Havia um único carro de praça e o primeiro automóvel que cruzou a cidade, por volta de 1907, vinha roncando entre rolos de fumaça, rodeado da molecada que corria para alcançá-lo em verdadeira algazarra. Ainda segundo o historiador, O grande divertimento da cidade nessa época era um Circo de Cavalinhos que visitava a cidade esporadicamente, apresentando-se no Largo dos Mendes.