O clown italiano Leris Colombaioni revê a sua história

leris_colombaioni
Imagem gentilmente cedida por Claudia Zucheratto

“Muitos podem pensar que fazer clown é simplesmente vestir a roupa de palhaço, mas não funciona bem assim.”

O clown italiano Leris Colombaioni tem uma queda por gastronomia. Tal como os pizzaiolos de seu país, traz na ponta da língua a receita e o modo de fazer de uma iguaria daquelas. Só que no seu caso não se tratam de redondas, mas de um clown. Os ingredientes seriam parecidos com os das pizzas: mussarela, tomate e pimenta. Mas a razão da escolha é outra: O queijo representa o branco, símbolo da ingenuidade, da alma e da pureza do palhaço; o vermelho do tomate é a cor prevalente do clown e a pimenta faz alusão à energia que o artista da graça deve ter em cena.

Nasceu em berço de ouro. Não no sentido de riqueza monetária, mas de tradição artística: sua nonna (do italiano: avó), como gosta de lembrar Catarina Delacqua, descende de artistas de Commedia Dell’Arte. Já seu pai, Nani Colombaioni, morto em 1999, é considerado um dos grandes clowns de todos os tempos. Prova disso, é que se tornou assessor de Federico Fellini (1920-1993) quando a dúvida do cineasta era no campo da palhaçada. E foi ao lado de Nani que Leris aterrissou no Brasil pela primeira vez em 1998, a fim de apresentar no evento Anjos do Picadeiro o espetáculo Um pouco de tudo, praticamente nada.

De lá para cá, Leris, de 56 anos, tem atuado como mestre cuca na preparação de novos clowns pelo País, por meio de cursos e oficinas ministrados com certa regularidade. Serviço que alia com a direção cênica de espetáculos de grupos brasileiros, entre os quais La Mínima, Lume Teatro, Seres de Luz, Teatro de Anônimo e As Graças. Aliás, foi para dar suporte ao espetáculo Como Saber?, do último grupo, que Leris retornou a São Paulo, em 2009. Aproveitou a estada para ministrar o curso Palhaçaria Clássica no Espaço Cultural Semente, em Barão Geraldo. Antes da abertura oficial do workshop, conversou com o Caderno C. Confira a seguir trechos do bate-papo.

Agência Anhanguera – Como a arte da representação teatral popular entrou em sua família?

Leris Colombaioni – A origem está ligada ao teatro ambulante, de comediantes de rua, especificamente pertencentes ao gênero da Commedia Dell’arte. Isso se remonta a 1660. Minha avó, Catarina Delacqua, descendia da família Travaglia, de grande tradição da Commedia Dell’Arte na Itália. No final de 1700, por conta do nascimento do circo, meus antepassados artistas migraram para essa estrutura de espetáculo. Por volta de 1900, minha avó conhece meu avô e não se separam mais. Meu avô, Alfredo, não era de circo e sim um filho de garçom, mas desde pequeno participou de uma trupe de ginastas. Antes de se apresentar em circo por conta de minha avó, ele fazia shows em teatros e velódromos, durante competições de bicicletas.

Sua estréia no picadeiro aconteceu aos 4 anos no circo de seu pai. Houve algum preparo, um ensaio talvez, ou o senhor caiu na pista de supetão?

Meu pai chegou e me disse: “Vamos armar o circo e amanhã você trabalha”. Teve que ser assim. No outro dia, montamos o circo, que não era um de lona. Era aberto, todo rodeado por tábuas de madeira presas por pregos, que eram sempre reutilizados. E foi ali que aconteceu o meu debut, no dia 3 de julho de 1958, em Roma. Antes de entrar na pista, meu pai me deu apenas algumas coordenadas do tipo: “Você faz isso, diz aquilo e fala aquilo outro.”

Antes de ser batizado no picadeiro como Ercolino, o seu palhaço teve outro nome. Conte esse episódio.

Na primeira noite que me apresentei, meu pai me batizou de Gianduia, que era o nome da máscara de Commedia Dell’Arte prevalente da cidade onde nasci, que foi Torino. Só usei esse nome uma única vez, porque logo depois meu pai trocou. Gianduia não significava nada para a plateia do nosso circo. Por serem bem populares, muitos analfabetos, os espectadores não entendiam aquela referência. Então, fui rebatizado de Ercolino (nome de um brinquedo italiano popular aos moldes do João Bobo brasileiro), que uso até hoje e que virou o nome do nosso circo.

Recorda-se dos primeiros números que executou no picadeiro?

A minha primeira entrada na pista foi com Bárbara, minha irmã. Ela entrava para executar seu último número, que era de trapézio. Nisso, eu, embaixo dela, vestindo uma calça larga, esperava meu pai ordenar: “Ercolino, coloque a rede de proteção!”. Para fazer graça, eu esticava a calça, como se fosse para ela pular ali dentro. Depois disso, meu pai me perguntava se eu conhecia os animais. Eu dizia que sim. A partir daí, ele me questionava: “Qual animal que fica em casa e que tem quatro patas?”. Eu respondia: mesa, cadeira, armário… (risos). Quando completei 7 anos, passei a aprender números acrobáticos, primeiro parada de mãos, depois saltos.

O Circo Ercolino era fixo ou excursionava pela Itália?

Não era possível viajar. A gente não tinha nada, não tinha estrutura. As poucas coisas que contávamos eram com uma mesa grande, que depois do espetáculo nós usávamos para dormir debaixo, e um tapete, resíduo da guerra, que colocávamos por cima.

De que forma, então, percorriam os arredores de Roma?

Não tínhamos caminhão. Por isso, meu pai precisava pegar emprestado. Sei que, mesmo com o transporte, toda vez que nossa família necessitava percorrer cinco ou seis quilômetros, a gente saía de manhã e só chegava à noite. O homem que emprestava o caminhão ao meu pai era muito generoso. Meu pai perguntava a ele: “Quanto eu te devo?” Ele respondia sempre: “Depois, depois…”. Nunca pagamos.

Há alguma história dessa época digna das pilhérias de picadeiro?

Bem antes de o meu pai conseguir comprar um caminhãozinho inglês, também resíduo da guerra, construímos uma pequena carroça. Nossa família sentava ali e aquele senhor generoso, com seu caminhão, puxava-nos. Não me lembro a razão, mas sei que meu pai ganhou um burro e o colocou para puxar a carroça. Num dia, na hora da partida, o burro empacou. Não mexia as patas de jeito nenhum. Meu pai teve que colocar o burro em cima da carroça junto com as nossas tralhas. O pior foi todos nós descer para empurrar a carroça (risos).

Nessa época, havia alguma situação que apagava o sorriso dessa família de palhaços?

A falta de comida. As pessoas iam para o circo e levavam vinho, pães e queijos. Nós, então, aproveitávamos a situação para comer. Só de primeira comunhão fiz mais de trezentas vezes. Nos lugares por onde passávamos, as pessoas queriam saber do meu pai se Ercolino tinha feito primeira comunhão. Meu pai respondia: Não! Ao ouvir a resposta, as pessoas se juntavam e faziam o almoço para celebrar a cerimônia. Aniversário? Perdi as contas de quantos fiz. Era para eu ter hoje mais ou menos uns 3 mil anos. Isso não era um modo de enganar as pessoas, mas de ter a oportunidade para comer.

Demorou muito para a família Colombaioni adquirir uma lona própria?

Em 1962, já com a fama de um grande artista, meu pai foi chamado para trabalhar no Circo Darix Togni que, ao lado do Medrano, foi um dos maiores de toda a Europa. Lá ele ganhou dinheiro suficiente para comprar a nossa própria lona, feita de algodão. Cortamos aquele algodão, que era o mesmo utilizado nos cenários de teatros, e o impermeabilizamos com parafina. Em tempos de chuva, a lona aguentava apenas três dias. Depois disso, tínhamos que fazer o processo da parafina de novo.

Nani Colombaioni, seu pai, esteve ao lado como assessor do grande cineasta italiano Federico Fellini em filmes como La Strada e I Clowns. Como se estabeleceu essa amizade?

Foi nos anos 50. O mestre (se refere a Fellini assim) foi um grande apaixonado pelo circo. Onde enxergava uma barraca ou uma lona ele parava. Num dia, o mestre parou no nosso, conheceu meu pai e se tornaram amigos. Por exemplo, você pega La Strada e dá para perceber que aqueles personagens lembram a nossa família. A história era diferente, mas a estrutura do circo, a lona, o tecido eram tudo iguais. Em I Clowns, que participei quando tinha 14 anos, isso se repete. Nesse filme, a única família de lona é a nossa, o restante são atores de teatro de feira e de variedades. Na verdade, meu pai era um conhecimento ambulante da arte circense. Dessa maneira, as dúvidas que o Fellini tinha durante as filmagens Nani era quem as solucionava.

O Circo Ercolino está em atividade há 51 anos ininterruptos. No entanto, sofreu algumas modificações na temporada. O que mudou?

Desde de 1993, instalado em Netuno, o circo só entra em temporada durante o mês de agosto, por causa do verão. Atuam eu, minha mulher Mary, meus filhos: Lenny, Barry e Wendy, com seu marido Marco e minha neta Daiana.

A estrutura dos espetáculos também se modificou?

Não. Os espetáculos funcionam da mesma forma quando começamos: números, sejam eles acrobáticos, de equilíbrio, malabarismo ou de pirofagia; esquetes de clowns; e também representação de farsas, que têm um enredo maior e uma dramaturgia própria. O que fazemos lá de interessante, e isso devo graças a Nani e Carlo Colombaioni, meu tio, é levar o clown para as representações teatrais e trazer o cômico teatral para a pista.

Para o senhor, que vem de uma família tradicional de circo e de teatro popular, é possível ser um grande clown sem ter nascido sob uma lona?

Não é porque você nasceu no circo que se torna mais fácil fazer um clown. Não! É bem pior. Filho de artista é um problema, porque sempre vão esperar dele a perfeição. Claro que é uma fortuna impagável nascer num ambiente como aquele, que desde de pequeno se convive com a arte. Você se sente protegido. No entanto, quando a pessoa tem vontade, paixão, e eu vejo isso muito no Brasil, não há nenhum impedimento. Muitos podem pensar que fazer clown é simplesmente vestir a roupa de palhaço, mas não funciona bem assim. A base de tudo é a humildade aliada ao estudo. E saber onde estudar é importante. O bom professor é aquele que te ensina como se portar e o que não fazer na pista. Mas quando vejo jovens querendo aprender a ser clown para mim é uma grande emoção.

Tem alguma arte que o senhor quis aprender, mas não teve aptidão?

Eu sempre quis desenhar. Eu queria muito, muito… Mas não deu.

Como o senhor enxerga, sendo um herdeiro de escola europeia, o clown brasileiro?

No começo, o que mais me chocou foi a confusão de cores, seja na maquiagem como no figurino. Para mim, parecia que o clown brasileiro tinha caído da escada e se apresentava daquele jeito. O clown não é um ser que se veste de pano de chão. Até quando ele faz um mendigo, esse mendigo deve ter uma roupa adequada, como um fraque de estopa, por exemplo. Também percebi a falta de um sapato de clown, que para nossa tradição europeia é imprescindível.

Depois de mais de dez anos de intercâmbio com Brasil, sua visão continua a mesma?

Hoje, percebo que as coisas se modificaram. (Toma em mãos um banner com a foto do palhaço brasileiro Carequinha). Não o menciono como clown, mas como um mestre, que influenciou as gerações de palhaços do Brasil. A parte debaixo de sua maquiagem traz uma grande influência do clown norte-americano, a grande referência do Brasil, em compensação a de cima, se mostra a tradição italiana e francesa. Nele, vejo a elegância que um clown deve ter. Porém, num certo momento do Brasil, a arte desses mestres não teve seguimento. Seus filhos ou netos não quiseram seguir os mesmos passos. E isso atrapalhou muito. Foi por essa falta de prosseguimento, a razão daquela confusão de cores toda.


Publicado in Correio Popular – Caderno C, setembro/2009, p.08


Related posts

#1 – Reinventando o Circo – Nina Leles e Rodrigo Mallet – da Cia Corpo na Contramão

Silva

A Experiência Poética do Coletivo Camaradas e do Experimentalismo Brabo (vídeo)

Silva

Contemporaneidade circense e reinvenções pós-covid / com Ermínia Silva – Colunistas

Silva