Texto publicado on line www.funarte.gov.br, sob o título Escola Nacional de Circo, um histórico.
Tentar recuperar, mesmo que brevemente, o processo de desenvolvimento da história do ensino da arte circense em escolas no Brasil tornou-se uma tarefa investigativa que teve como metodologia o cruzamento de relatos orais, pesquisa em fontes e bibliografia. Apesar da constatação da sua proliferação nos últimos vinte anos, pouco ou quase nada foi escrito de modo sistematizado a respeito de como tal processo ocorreu. Antes de abordar uma proposta de análise do surgimento das escolas, quero explicitar que inicio o texto com um histórico de como se dava o processo brasileiro de socialização, formação e aprendizagem entre os circenses até pelo menos a primeira metade do século XX. Esta opção metodológica se deve ao fato de que acredito que, ao mesmo tempo em que houve mudanças significativas no processo pedagógico de ensinar as artes circenses para fora do espaço da lona, não se pode pensar estas transformações sem uma presença marcante de homens e mulheres circenses no próprio surgimento das escolas de circo por aqui. Além disso, como afirmei em minha dissertação de mestrado, o modo de desenvolvimento da transmissão dos saberes circenses fez e faz desse mundo uma escola única e permanente; e isto esteve e está presente nas construções pedagógicas contemporâneas.
O circense, até 1960, na sua maioria, nascia no circo ou a ele se juntava. O processo de formação e aprendizagem tinha início desde o seu nascimento. A criança representava aquele que portaria o saber. No ensinar e no aprender estava a chave que garantia a continuidade do circo, estruturado em torno da família. Aparentemente não havia como fugir do “destino”. Nem todas as crianças, porém, sentiam-se aptas ou queriam aprender números que implicassem risco; havia no circo as que não podiam executá-los, por problemas físicos, ou simplesmente por não quererem aprender. Não era a maioria, até porque a chance de escolha era muito reduzida. Mas nem mesmo nestes casos deixavam de trabalhar em outras atividades que não exigissem a destreza corporal. Entravam em sketchs, atuavam nas peças teatrais, participavam da organização do circo, trabalhavam na armação e desarmação e na bilheteria. Era muito comum, para essas crianças e jovens, aprenderem a tocar instrumentos, cantar e dançar. Enfim, os números de risco não eram os únicos apresentados durante o espetáculo, sempre havia o que aprender.
A criança circense, no circo-família, era de responsabilidade de todos. Mesmo que perdesse seus pais, não era abandonada; ela seria absorvida pela “família circense”, pois fazer parte daquele modo de organização pressupunha que crianças, jovens e adultos sempre teriam algo a aprender e a apresentar no espetáculo. Somente os circenses eram conhecedores da arte de armar e desarmar um circo, ou construir um “aparelho”. Eles mesmos garantiam a sua segurança e a do público que assistia ao espetáculo. Era “natural” que tanto proprietários quanto contratados fizessem parte da montagem de cada detalhe. Como se diz na linguagem circense, “todos tinham que ser bons de picadeiro e bons de fundo de circo”, não bastava só saber executar um número, fosse acrobacia, dança, canto ou representação no teatro. Aprender a dar um salto mortal, por exemplo, muitas pessoas aprendiam, não precisavam de circo para isso. Mas saber “empatar uma corda ou um cabo de aço”, confeccionar um “pano”, “preparar uma praça”, ser mecânico, eletricista, pintor, construir seu próprio aparelho, armar, desarmar, isto tudo é que diferenciava um artista circense de outros artistas.
O mesmo também ocorria com aqueles que não haviam nascido no circo, “gente da praça” que fugia com o circo ou que simplesmente a ele se incorporava. Este “estranho” poderia até se tornar um tradicional, um formador de família ou de uma dinastia circense, desde que passasse pelo ritual de aprendizagem dado por uma das famílias tradicionais. Qualquer pessoa poderia ser aceita pelos circenses, mas para isso tinha que aprender a sua arte, não bastava apenas se agregar para ser figurante ou participar de uma grande aventura. A técnica aprendida por meio dos ensinamentos de um mestre circense era a preparação para o número, mas continha, também, os saberes herdados dos antepassados sobre o corpo. A transmissão oral da técnica pressupunha um método, ela não acontecia por acaso, mesmo que não seguisse nenhum tipo de cartilha. A dimensão tecnológica era indissociável da dimensão cultural e ética, e revelava como o grupo construíra a sua relação de adaptação. As alternativas e as soluções tecnológicas encontradas eram orientadas pelas referências culturais específicas dos grupos circenses, pois em última instância a tecnologia se inscreve, antes, como um tipo de saber.
Não é demais recolocar a ideia de que no circo nada é apenas técnico. A criança seria não só a continuadora da tradição, mas também um futuro mestre. Para ser um circense, tinha que assumir a responsabilidade de ensinar à geração seguinte. Ao longo de sua aprendizagem, a criança “aprendia a aprender” para ensinar quando fosse mais velha. O “ritual de iniciação” – aprendizado e estreia – era um rito de passagem, a possibilidade de tornar-se um profissional circense. O contato com a geração seguinte era permanente, havendo um envolvimento direto na aprendizagem. A partir da adolescência, muitas crianças começavam a ensinar aos mais novos – irmãos, primos, e outros.
A partir de tudo isso, o que se conclui é que as atividades circenses, desenvolvidas por homens e mulheres, continham uma rica produção cultural, com uma multiplicidade de linguagem artística – que não só a acrobática – o que transformava o circo em uma escola única e permanente. Esse modo de organização do trabalho, que pressupunha a transmissão oral dos saberes e práticas para a geração seguinte portadora dos mesmos, passou por transformações. O tema relacionado ao ensino/aprendizagem, dentro da própria estrutura do circo-família, já estava sendo questionado por alguns circenses brasileiros desde a década de 20, como se pode observar em um artigo escrito por Leopoldo Martinelli, sob o título A Decadência da Arte, no Boletim Mensal da Federação Circense, de 25 de novembro de 1925. Nele, o autor afirma que “há 20 anos passados” – portanto, nos primeiros anos do século – “eram os diretores de circos os primeiros a irem com os filhos, irmãos ou discípulos para o picadeiro, e ensaiavam novos números, novas dificuldades, para engrandecerem o nome do artista brasileiro”. Entretanto, continua ele, “hoje [1925], qual o artista que se arrisca a ensaiar um trabalho como voos, acrobacia, jóquei e outros que dependem do auxílio de alguns colegas?” (1).
A problemática apontada por Leopoldo Martinelli, contudo, não esteve presente entre a maioria dos circenses brasileiros, até pelo menos a década de 50. No entanto, a partir das décadas de 60/70, a produção do espetáculo e o próprio circense passam por transformações significativas. Um dos indicativos importantes era precisamente certa ruptura na transmissão à geração seguinte, uma mudança na característica marcante da história dos circenses: o circo ser uma escola única e permanente. A valoração social passava a não ser mais a aprendizagem dada no próprio circo por seus próprios membros; ela estava voltada para a aprendizagem oferecida nos bancos escolares “formais”.
A proposta do espetáculo, que tinha como base a multiplicidade das linguagens artísticas contemporâneas, também passou por mudanças. A presença do teatro, da dança, da música (por meio dos instrumentos musicais), a incorporação de vários outros profissionais de fora do circo, como cantores, entre outros, foram provocando alterações a ponto de muitos circos organizarem seus espetáculos, predominantemente, com números de animais, palhaços e acrobáticos em geral. Este tipo de circo sempre existiu, mas era uma das múltiplas formas de se constituir o espetáculo. O circo-teatro, os shows de outros artistas não-circenses, a dança ainda continuavam sendo apresentados em alguns circos, mas o foco principal dos circenses e do público eram os números acrobáticos, que exigem habilidades e destrezas em que se enfrentam e se superam desafios e perigos. Apesar de vários circos de lona ainda serem constituídos por famílias, não era mais o grupo familiar artista – que trabalhava na armação e na desarmação do circo, no fabrico e na conservação da lona, na parte da manutenção elétrica, de transporte etc. e também representava no teatro, na acrobacia, dançava e tocava um instrumento musical – que ia ser contratado. A partir da década de 60, é somente o artista, individualmente, que é contratado, sem fazer parte de suas obrigações nada além de trabalhar no espetáculo.
Quanto à transmissão oral dos conhecimentos, desde a década de 50 os artistas de circo começaram a se voltar para a educação “formal” de seus filhos, o que significa que muitos deles deixaram de ser portadores daqueles saberes. Os que permaneceram e permanecem trabalhando nos circos de lona não têm mais o aprendizado coletivo como condição de formação. De artistas múltiplos, tornaram-se, dia a dia, especialistas não só dos números apresentados, mas também em relação à parte administrativa do circo. Entretanto, ainda se mantém a ideia de que o modo de realização da linguagem circense, como método pedagógico, pressupõe – ainda que não a partir de base coletiva e total – a formação global da pessoa, ou seja, para se constituir um artista de circo é necessário que se aprenda a dominar, além dos exercícios acrobáticos, as questões de segurança tanto própria quanto dos colegas e do público; tenha conhecimento de maquiagem, figurino, de seu próprio aparelho de trabalho (se possível, construí-lo), de música, de dança, de um instrumento musical, de coreografia, de cenografia, de direção artística, entre outros.
Todas essas transformações ocorridas no modo de organização do circo, particularmente no ensino/aprendizagem, foram aos poucos consolidando a ideia de se montar uma escola de circo no Brasil, ideia esta presente nos debates, nas análises e nas ações de várias pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o cotidiano dos circos de lona ou com famílias circenses, na ativa ou não. O que se observou é que estas questões faziam parte de um movimento que extrapolava o Brasil. Desde o início do século XX, já existiam escolas de circo em vários países do mundo, sendo que as mais antigas são a de Moscou e a de Pequim. Entretanto, apesar da importância social e cultural da formação dessas escolas, somente depois de muitos anos é que se percebeu uma movimentação mais efetiva voltada para a multiplicação de se ensinar as artes circenses fora daqueles países.
No final da década de 70 e início de 80, em alguns países da Europa Ocidental, na Austrália e no Canadá, artistas de diversas origens, circenses ou não, tiveram como resultado dos seus trabalhos artísticos a construção de um processo de consolidação de ensino das artes circenses fora do espaço exclusivo da “lona”. Na Austrália, com o Circus Oz (1978), e na Inglaterra, com os artistas de rua fazendo palhaços, mágicas, truques com fogo, andando em pernas de pau. Na França, a primeira escola de circo é a Escola Nacional de Circo Annie Fratellini, fundada em 1979, com o apoio do governo francês. No Canadá, ginastas começaram a dar aulas para alguns artistas performáticos e a fazer programas especiais para a televisão e em ginásios, em que os saltos acrobáticos eram mais circenses. Em 1981, criou-se a primeira escola de circo para atender à demanda daqueles artistas. Um ano depois, ainda no Canadá, foi criado o Club dos Talons Hauts, grupo de artistas em pernas de pau, malabaristas e pirofagistas, o mesmo que, em 1984, realizaria o primeiro espetáculo do Cirque du Soleil.
Concomitante ao movimento que estava ocorrendo naqueles países, teve-se a primeira experiência brasileira voltada para o ensino das artes circenses fora do espaço familiar e da lona, a Academia Piolin de Artes Circenses, fundada em 1978 na cidade de São Paulo. Proposta pela Associação Piolin de Artes Circenses, dirigida então por Francisco Colman, teve o apoio da Secretaria de Estado da Cultura, através da Comissão de Circo sob a direção de Miroel da Silveira. É interessante notar que foi uma iniciativa dos circenses aliada a uma parceria institucional governamental. Dirce Tangará Militello, testemunha desse momento e uma das professoras da escola, afirma em seu livro que, a partir dessas duas iniciativas – a Associação e a Academia – o circo brasileiro começava uma nova fase em sua história. Para a autora, bem como para aqueles que a fundaram, particularmente Francisco Colman, o objetivo principal de se ter uma escola de circo naquele momento era tentar reabilitar uma “profissão agonizante” através dos mestres circenses, antes que fosse tarde demais. Era preciso que todos os artistas de circo tivessem consciência da importância da escola, pois somente com o seu apoio, enviando os filhos para participarem dos cursos, é que a ela poderia demonstrar o seu “verdadeiro objetivo” (2).
De certa forma, os argumentos para que se abrisse uma escola de circo não diferem muito daqueles levantados por Leopoldo Martinelli em 1925. A Academia funcionou inicialmente debaixo das arquibancadas do estádio do Pacaembu e depois se mudou para uma lona no Anhembi – atual Sambódromo. Sem verba e sem apoio da Secretaria à qual estava vinculada, veio a fechar suas portas em meados do ano de 1983. A experiência de São Paulo, apesar das muitas dificuldades pelas quais passaram aqueles que estavam envolvidos no projeto, acabou por mostrar que era possível formar pessoas não nascidas em ou vinculadas aos circos de lona, mesmo que elas não fossem o público-alvo que fazia parte dos objetivos que fundamentavam a criação da escola.
É importante assinalar que, durante quase o mesmo período de formação e consolidação da Academia em São Paulo, outros artistas estavam se movimentando para pôr em prática a ideia presente entre os circenses brasileiros, ou seja, montar uma escola de circo. Isto vai ocorrer no Rio de Janeiro, e não se tem estudos ou informações se estes grupos mantiveram contato ou trocaram informações a respeito disto, bem como poucos são os trabalhos que se voltaram ou se voltam aos estudos sobre o processo de desenvolvimento histórico desses grupos e a criação da Escola Nacional do Circo. O que se sabe é que, segundo Martha Maria Freitas da Costa, Franco Olimecha, pertencente à tradicional família circense e que estava residindo na cidade do Rio de Janeiro, também tinha como proposta a construção de uma escola de circo. Seus argumentos se baseavam em pressupostos semelhantes aos de seus congêneres paulistas, ou seja, de que a tradição familiar não seria suficiente para garantir a perpetuação da arte circense ao longo do tempo; que um número maior de pessoas talentosas nascidas dentro ou fora das famílias circenses deveria ter condições de aprimoramento e, por fim, que como o processo ensino-aprendizagem era inerente à vida do circo, uma escola seria a extensão lógica dos pequenos núcleos familiares para a grande família circense, promovendo uma democratização da informação e da ampliação de oportunidades (3).
Assim como havia ocorrido em São Paulo, o amadurecimento da formação de uma escola foi tomando vulto entre os circenses cariocas. Para Martha M.F. Costa, como eram conhecedores das diversas escolas já existentes em vários países que, na sua maioria, se não eram diretamente ligadas aos Ministérios da Cultura ou equivalentes eram pelo menos bastante subvencionadas, a ideia de uma escola vinculada a uma instituição governamental também se lhes apresentava. A proposta da formação de uma Escola Nacional de Circo chegou ao Serviço Nacional de Teatro em 1974, quando assumia a direção Orlando Miranda. O projeto Escola iniciava seu desenvolvimento dentro de uma organização pública, mas agora de caráter nacional, através do herdeiro de Franco Olimecha, o também circense Luis Franco Olimecha, seu neto. A criação do então Instituto Nacional de Artes Cênicas por Aloísio Magalhães, em 1981, incorporando as áreas já absorvidas pelo Serviço Nacional de Teatro – teatro, dança, ópera e circo – foi o último passo necessário para a consolidação e a fundação, em maio de 1982, da Escola Nacional de Circo no Rio de Janeiro.
Um dos principais objetivos definidos por aquele órgão era o de dar continuidade aos ensinamentos da arte aos filhos de circenses que frequentavam a escola formal. Pelo menos no início do processo. Os professores contratados, em geral oriundos das tradicionais famílias circenses, tiveram que passar por várias fases de adaptações ao trabalharem em um modo de organização administrativa totalmente diferenciada dos circos, com objetivos empresariais. Não confundir a administração da escola com a administração de suas próprias relações circenses empresariais familiares foi uma das questões enfrentadas, além daquelas oriundas de decisões governamentais que, entre outras, envolviam investimento político e financeiro por parte do governo para políticas públicas voltadas para o circo.
Mesmo com vários percalços, a Escola funcionou até 1990, quando Collor tomou posse como Presidente da República e iniciou uma reforma administrativa que, entre outras, teve como alvo também a área da cultura. Diversos professores da tradição circense foram aposentados compulsoriamente, os investimentos foram escassos, não houve nenhum tipo de manutenção do material, a lona apodreceu, e a Escola fechou em seis meses. Somente em agosto de 1991, depois da criação do IBAC, é que ela pôde ser reaberta sob a direção da educadora Omar Elliot Pint, que teve participações no processo de fundação da Escola. Naquele momento, privilegiou-se a indicação para a direção de uma pessoa com experiência como educadora e administradora, diferente da fase anterior, na qual não havia uma separação da direção pedagógica e administrativa da direção artística. O passo seguinte foi a escolha da direção da área artística, para a qual foi nomeado (nomeação pró-forma, pois não estava previsto em estatuto) Abelardo Pinto, um dos mais velhos e experientes professores da escola e oriundo de tradicional família circense.
Segundo Martha M. F. da Costa, novas instâncias de decisões foram priorizadas, com definições de programas e elaborações de projetos de financiamentos para a sua execução. Em linhas gerais, o plano de trabalho de 1993, elaborado em 1992, era: formação do artista circense e reciclagem para profissionais circenses do Brasil e do exterior. Estes programas seriam executados através dos seguintes projetos: sistematização do ensino da arte circense; desenvolvimento de projetos de pesquisa em história do circo brasileiro, arquitetura e capatazia circense; apoio à criação de escolas ou centros de formação em todo o país; intercâmbio com instituições equivalentes em todo o mundo; e construção e recuperação de aparelhos. Além disso, os encaminhamentos propositivos pedagógicos e administrativos tornavam-se mais claros: a Escola não era apenas o prolongamento da família circense, mas uma instituição cujo “caráter básico era a formação de jovens e adolescentes para enfrentar o mercado de trabalho”, tendo como função realizar a formação profissional de artistas circenses num curso regular de quatro anos. Mais do que repetir a pedagogia da tradição familiar, a direção da Escola deveria ter um “cunho muito mais educacional”, incluindo-a nos calendários internacionais, credenciando-a e credibilizando-a, o que implicava “adequá-la aos mais modernos padrões vigentes no mundo, desde que fossem respeitadas as características culturais brasileiras e as formas peculiares de transmissão do conhecimento”.
Durante todo o processo de criação, abertura, fechamento e reabertura da Escola Nacional de Circo, outras propostas de aberturas de espaços voltados para o ensino das artes circenses estavam ocorrendo; contudo, ao contrário da Academia e da Escola Nacional, eram iniciativas de natureza não-governamental. Na cidade de São Paulo, em 1984, fundava-se a primeira escola de circo de iniciativa privada – a Circo Escola Picadeiro, coordenada por José Wilson Leite, de tradicional família circense. E no ano seguinte, na cidade de Salvador, Anselmo Serrat e Verônica Tamaoki fundavam a Escola Picolino de Artes do Circo. Com relação a esta escola, há uma distinção importante a ser assinalada: seus fundadores não pertenciam a nenhuma “tradicional família circense”. Anselmo começou dirigindo espetáculos de circo em São Paulo e Verônica fez parte da primeira turma formada pela Academia Piolin entre os anos de 1978 e 1982, sendo que um de seus professores foi Rogê Avanzi, o Palhaço Picolino, que mais tarde deu nome à escola. Portanto, o que se observa é que a Escola Picolino foi a primeira escola brasileira fundada por profissionais circenses que receberam os preceitos de uma geração de artistas de circos que não ensinavam mais debaixo da lona e nem para seus próprios filhos. Eram artistas formados fora do modo de organização do circo-família.
Apesar de terem sido de iniciativas privadas, ambas as escolas desenvolveram suas atividades voltadas para um público composto por alunos particulares pagantes, mas também para uma população pobre. Seus coordenadores sempre estiveram ligados a parcerias com projetos sociais que atendiam e atendem crianças, adolescentes e adultos jovens em situação de risco ou excluídos social, cultural e economicamente. Até hoje, e juntamente com a Escola Nacional, são responsáveis pela grande maioria da nova geração de artistas de circo. Após essas experiências, os vários profissionais formados por elas tiveram um papel de multiplicadores da linguagem circense, desenvolvida tanto em seus trabalhos como na própria construção de espaços voltados para o ensino desta arte.
Quando essas primeiras escolas de circo surgiram no Brasil, um dos principais objetivos que motivaram aqueles profissionais era o de dar continuidade à aprendizagem aos filhos dos próprios circenses que estariam, segundo suas justificativas, deixando de aprender ou de ser ensinados. Entretanto, nos primeiros grupos de professores que lecionaram nas escolas, estavam presentes os circenses, que pertenciam, de alguma forma, à tradição. O que de fato acabou acontecendo é que os filhos de gente de circo pouco frequentavam tais escolas, cujos alunos eram, na maioria, pessoas de todas as idades, vindas dos mais diferentes estratos sociais e com propostas e objetivos também diversos, muitos dos quais se tornaram depois artistas circenses ou de teatro – utilizando a linguagem circense.
O processo pedagógico dos vários lugares que se propuseram ao ensino também se diferenciou dos propósitos iniciais daqueles circenses, ou seja, de que a formação tinha como pressuposto que o aprendizado deveria conter as várias linguagens culturais, capazes de estarem formando profissionais que iriam se utilizar da linguagem circense nos mais variados espaços de produção cultural. A entrada dessas escolas, entretanto, não deixa de retomar de certo modo as várias linguagens que já estavam presentes na formação do circense até a década de 50: exercícios acrobáticos, teatro, música, dança, além da necessidade de se aprender a montar e a desmontar o circo, ser cenógrafo, coreógrafo, ensaiador, figurinista, instrumentista etc. Não é, contudo, apenas um retorno ao passado: com as escolas há de fato novos profissionais utilizando-se da linguagem circense, demonstrando o quanto ela dá e permite a possibilidade de criar, inovar e transformar todos os espaços culturais.
Este texto é a primeira parte do trabalho homônimo escrito por Ermínia Silva e por Rogério Sette Câmara – Coordenador e professor da Spasso Escola Popular de Circo – Belo Horizonte (MG).
Notas:
(1) Leopoldo Martineli. A Decadência da Arte. In: Boletim Mensal da Federação Circense. Coluna: Colaboração dos Associados. São Paulo, ano I, 25/11/1925, n.7, p.5.
(2) Dirce Tangará Militello. Picadeiro. São Paulo: Edições Guarida Produções Artísticas, 1978, p.7, 86-88.
(3) Martha Maria Freitas da Costa. Reabrir a Escola Nacional de Circo. Um Estudo de Caso. Trabalho apresentado para a EMBAP/FGV, Rio de Janeiro, Curso Processo Decisório e Informação Gerencial, Cipad 93/94. Mimeo. Queremos assinalar que todas as informações referentes ao processo de formação e consolidação da ENC, neste texto, foram baseadas no trabalho desta autora, que não teve como proposta estudar e analisar o desenvolvimento histórico da Escola. Entretanto, chamamos a atenção para a necessidade de se produzirem trabalhos e análises sobre este tema.