O picadeiro do dia a dia

“Esta crítica foi premiada e classificada em segundo lugar no Concurso Estadual de Estímulo a Crítica Cultural – 2011 da Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB”.

Hábitos, encontros e dificuldades da vida cotidianas são apresentados em “Cenascotidianas@circ.pic”, um espetáculo de circo produzido pela Escola Picolino, instituição que há mais de vinte e cinco anos se dedica ao ensino de técnicas circenses, ações sociais e montagem de espetáculos.

O enredo da apresentação se baseia no trajeto que um fiscal de renda experiencia ao entrar em contato com os jovens da Escola Picolino. Atritos burocráticos iniciais deixam espaço à compreensão das dificuldades de ser artista na sociedade contemporânea. O espetáculo foi dirigido por Anselmo Serrat e encenado pela Cia. Picolino de Artes do Circo, a qual conta com vinte e dois artistas circenses e dois músicos.

O espetáculo predominantemente acrobático surpreende o público com técnicas aéreas quais, corda, tecido, trapézio e quadrante, destacando também números de contorção, malabarismo, acrobacia de solo, equilibrismo e entradas cômicas.

Os artistas que interpretam, de maneira performática, jovens inseridos num contexto urbano, mostram ao público momentos felizes e complicados da vida do dia-a-dia: desde as tarefas diárias ao momento de se despertar, às dificuldades encontradas no uso do transporte coletivo, momentos de socialização, lazer, assim como situações de reflexão e embate.

Os números circenses são inseridos numa estrutura narrativa, mas não estritamente sequencial, dando espaço a cenas de introdução que se destacam pela teatralidade. Objetos são ressignificados em cena: uma corda de acrobacia aérea se torna simbolicamente um estopim e bancos para sentar são utilizados como instrumentos para realizar números de malabarismo em grupo.

Os elementos cenográfico desempenham muitos papeis até se tornarem, em casos pontuais, instrumentos musicais tocados com pertinência e propriedade, dando um suporte cênico à musica ao vivo que interage com a sonoplastia e música eletrônica.

A quase totalidade das cenas, ao propor um grande número de artistas no picadeiro, frisa a intencionalidade de destacar o indivíduo no social e propor o momento do espetáculo como uma experiência coletiva vivenciada pelos artistas.

Não se pode evitar de apontar números que colaboram de maneira marcante para a produzir a tensão do espectador, como o de monociclo, no qual a artista ocupa a cena tocando a música “brasileirinho” se equilibrando num monociclo girafa de aproximadamente dois metro de altura, ou o numero de báscula, no qual os acrobatas realizam saltos de alto risco.

O conjunto da obra encontra o seu caminho ao se aproximar e distanciar do tema central que é o embate entre o fiscal de renda e os integrantes da própria Escola Picolino, os quais, ao responderam às provocações do fiscal que pretende multar a instituição e interditar o espetáculo, indicam as justificativas de suas ações que, além de terem finalidades artísticas, visam propor ações sociais para mudanças na realidade objetiva.

Os números circenses, de maneira crescente, alcançam o momento máximo da performance para finalizar num desfecho criado com muita propriedade e dialogam continuamente com os elementos técnicos do espetáculo, dando ênfase, de maneira não unívoca, ao diálogo com a luz, os figurinos, a música ao vivo e os elementos cenográficos.

O espaço cênico é um picadeiro de forma quadrada, ao redor do qual o público se dispõe em semi-arena em arquibancadas fixas, que, pela amplitude proporcionada também pela lona circense de dois mastros que constitui o circo, permitem ao publico de apreciar de maneira confortável o espetáculo, que, apesar de ser estruturado segundo uma concepção predominantemente frontal, agrada o público indistintamente do ângulo de observação.

O caráter anti-ilusionista proposto ao deixar os aparelhos em vista e inclur na própria ação cênica a intervenção de barreiras e contrarregras, interessa o público que pode perceber com clareza o risco presente nas diversas técnicas propostas, e aproxima a narrativa encenada à vida real do artista. Do outro lado, o risco em cena não é subestimado pelos próprios artistas que utilizam equipamentos de segurança adequados, em conformidade com as peculiaridades de cada técnica.

É interessante observar a inclusão, não apenas de diálogos entre personagem, mas também a presença de poesias, podendo se destacar textos de Maiakowsy e Santana.

Numerosas cenas evidenciam também o intenso trabalho coreográfico desenvolvido no processo de criação, o qual colabora de maneira determinante para influenciar o ritmo do espetáculo, permitindo despertar o interesse do público ao longo de toda a apresentação.

Cenascotidianas@circ.pic é um espetáculo para pessoas de todas as idades, no qual os mais jovens ficam surpreendidos pelas evoluções e virtuosismos realizados pelos artistas, ao mesmo tempo em que os adultos são atraídos, não apenas pelos números circenses, mas pelo tema discutido em cena e pelos aspectos dramatúrgicos que levam a refletir sobre nossa sociedade.

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