“Não esperem vir ao circo e saírem ilesos…
Não só de graça se preenche o picadeiro…”
Esse texto de uma das diretoras do espetáculo da Trupe Circus é mais que um aviso, um alerta para que espectadores não sejam, sobremaneira, surpreendidos com as provocações em forma de arte que passarão diante de seus olhos e ouvidos, colando à sua pele e fazendo insurgir questionamentos que perdurarão muito além da cena.
Fruto inacabado de um processo iniciado com o Centro da Juventude do Grande Circo Arraial / Escola Pernambucana de Circo – EPC – CÍRCULOS QUE NÃO SE FECHAM… Experimento Nº 1 é a materialização cênica dos questionamentos, desejos, sonhos, inquietações, revoltas, tesões e tensões de adolescentes da periferia urbana do Recife, como poderia ser de São Paulo ou Belém. O recente trabalho conta com roteiro e encenação de Fátima Pontes, direção de Maria Luíza Lopes, Anne Gomes e da própria Fátima Pontes; coreografias de Patrícia Costa, Iluminação de Sávio Uchôa e Figurino de Júlia Fontes. O espetáculo que conta ainda com uma enorme ficha técnica de oficineiros, educadores e técnicos é um momento mimético-mágico que transcende quaisquer predefinições de papéis entre observado e observador.
Exibindo bandeiras, explicitamente assumindo um estado crítico diante de diversos elementos do nosso cotidiano, o espetáculo não resvala no discurso panfletário e politiqueiro de quem só reclama, aponta, critica, mas não age, não condena e reproduz o comportamento padrão de uma sociedade pautada na hierarquia econômica e de dilaceradoras desigualdades de oportunidades. Os vigorosos jovens artistas da Trupe Circus ardem, põem fogo e dilaceram algumas (só algumas!) questões que os tocam cotidianamente – educação, sexualidade, violência, guetos, polícia, droga e relações de poder. Não fecham círculos, não ditam normas. São agentes protagonistas do processo, de uma vida em construção, de uma sociedade que, esperam, seja transformada em algo melhor.
É impossível mesmo não sair mexido diante da inquietude de uma ação feita “não só para ser apreciada, mas especialmente para ser discutida, refletida”.
Mas onde entra o circo nesse manancial de idéias, de bandeiras, de círculos abertos? Ele está presente no pulsar das veias e no ar respirado variavelmente por cada artista. Números de trapézio, báscula, perna de pau, malabares, pirofagia, arame, lira, acrobacias de solo servem de elos de uma única corrente para dizer um único discurso que se multiplicará em dezenas, centenas, milhares: OLHEM, ESCUTEM, PERCEBAM QUE O PROBLEMA EXISTE E PRECISA SER ENFRENTADO AGORA, ENQUANTO OS CÍRCULOS AINDA ESTÃO ABERTOS.
É um espetáculo feito por adolescentes e jovens especialmente para adolescentes e jovens. Ou também para quem acredita corajosamente, como adolescentes e jovens, que pode mudar o mundo. Por isso sua batida é forte, é intensa, é pesada. Por nossos ouvidos passeiam a rebeldia do funk, a insurgência do mangue beat, a força do maculelê, a canção-poesia-protesto de Gonzaguinha até pérolas do cancioneiro romântico popular (brega??).
É um trabalho ousado que assume todos os riscos de falar sobre intimidades de seus próprios protagonistas, e de expor a GRANDIOSIDADE do potencial crítico e artístico da Trupe Circus sem esconder suas fragilidades. Se a perna ainda treme no equilíbrio, se a bola escorrega da mão no malabares, e se o salto da báscula não é perfeito – não importa; a corrente não quebra, a verve não esmorece. Numa das apresentações um artista-moleque de 16 anos deixou cair o carretel do diabolo. Apertou os lábios de insatisfação, mas não perdeu o ritmo da cena. Pegou o “bicho” novamente e o jogou muito, muito mais alto, recebendo-o divinamente como um hábil manipulador que se tornara naquele instante. Olhando para a platéia sua expressão disse sem palavras – como se gritasse ao mundo: OLHEM PRAM MIM. EU POSSO TUDO ISSO!
E a Escola Pernambucana de Circo com seus sólidos passos de uma instituição que durante 15 anos desenvolve ações através da pedagogia do circo social está PODENDO ousar, arriscar e construir um espetáculo onde a arte circunscreve um momento valioso no universo social e cultural de quem constrói e de quem recebe esses CÍRCULOS QUE NÃO SE FECHARAM…
Williams Sant’Anna – O Chicó
Julho-2011