Público e privado: entre aparelhos, rodas e praças.

Emerson Elias Merhy. Campinas, fevereiro de 2006, debaixo de chuvas intensas.

“Tinha nascido do lado de uma igreja católica, construída numa elevação que a colocava um pouco acima das casas ao lado. Á frente havia um adro bem amplo, com jardins e muros; além de um pátio bem generoso.

Cedo, quando acordava e levantava, caia da cama já no adro; assim como uma dezena de garotos de 8 a 16 anos. Juntavam-se, logo após um café da manhã imposto pelas mães, e com uma bola na roda invadiam o adro e a transformavam em algo só deles: um campo de pelada.

Por várias vezes eram denunciados pelo padre da igreja como invasores e perturbadores. O carro de polícia, um Cosme e Damião, chegavam de sirene ligada e por um tempo acabava com aquela festa. Meninos corriam para tudo que era lado. Os policiais ameaçavam prendê-los. No fim, todos escapavam. A polícia se retirava. E, o adro virava praça de novo.”

Nesta pequena história, de fato vivida no Bairro da Bela Vista em São Paulo, nos anos 1950, há muitos dos elementos que gostaria de colocar aqui nesta pequena introdução ao livro do Giovanni.

Destaco, em primeiro lugar, a idéia de um lugar público constituído como um aparelho com

funcionalidade bem definida: ser um adro de uma igreja. Uma função que torna o lugar público em uma coisa de uso privado: só faz sentido para certos viventes e crentes, cujos interesses naquele espaço o tornam extensão de uma certo modo simbólico de produzir aquilo como lugar de fé cristã.

Enfim, uma produção e apropriação do espaço, enquanto possuidor de um sentido bem preciso e bem definido, com um valor de uso bem delimitado. O público e o privado constituem-se, claramente, prevalecendo uma certa conformação do público por formas bem privadas e específicas de constituí-lo. Esta figura, para mim, assemelha-se a noção de aparelho institucional, como: um partido, um aparelho estatal, uma máquina governamental, uma repartição de uma empresa, uma empresa em si. Em todos, a funcionalidade definida é imperativa do lugar, é instituinte. Dá a cara do instituído. A dobra público/privado se expressa como relação bem instrumental e só esta razão dá conta deste processo. Por exemplo, uma organização fabril que não produzir o seu produto, não é uma organização fabril; e como tal, ao perseguir esta alma particular, captura privadamente todos os seus lugares públicos. Entretanto, como em todos os formatos aquiridos – aparelho, roda e praça – , como veremos, adiante, não é indiferente os tipos de atores sociais/sujeitos que estão operando a produção do lugar, pois constituir certo valor de uso é, antes de tudo, uma operação simbólica e imaginária. Como diz Ruben Alves, parafraseando: para algo ser útil ela deve ser simbolicamente constituída como necessidade.

Destaco, em segundo lugar, a roda que os meninos constituíram fabricando suas equipes de futebol e invadindo o aparelho adro. Reuniram-se e fizeram ofertas um para o outro, construíram entre si acordos e regras. Organizaram-se para atuarem como um coletivo, mas onde cada um pudesse jogar do seu jeito. Jogar tanto para produzir o acordo, quanto para participar do que mais queriam: jogar bola. Depois de vários movimentos, formaram os times. Dividiram o adro, imaginariamente, em um campo de futebol de rua. Instituíram os gols e ordenaram os times. Iniciaram o jogo. Isso funcionou direito até a chegada da polícia. Aí, aquela roda dos meninos foi desfeita por uma imposição muito forte e invasiva da lógica funcional anterior: a do aparelho que o adro era, como espaço da igreja; e não campo de futebol. Mas, o interessante é que existindo os meninos e saíndo a força impositora, o adro seria ocupado de novo pela roda de meninos para virar de adro da igreja em campo de futebol, onde as regras eram outras, e acoordadas pelo coletivo, e o modo de ser operada obedecia a outros tipos de lógicas. Chegando bem perto poderia ser visto o encontro “entre” o adro aparelho e o adro roda, um dentro do outro como uma dobra; veria-se o modo como os meninos estabeleciam em ato acordos e regras, mas se permitiam altera-las para adaptar as características do jogo ao coletivo em ação. Um time teria mais ou menos jogadores conforme a quantidade de meninos. O tempo do jogo poderia variar. Ter ou não goleiro era algo a ser decidido em ato. Enfim, o modo de construir a funcionalidade do espaço que estava sendo produzido era muito mais elástica e muito mais disponível ao grupo que estava constituído e em ação. Entretanto, todo este processo tinha um objetivo final imposto a ser atingido: organizar a ação do coletivo para produzir um jogo de futebol.

Esta funcionalidade não estava perdida em momento nenhum, mesmo que pudesse ser produzido de muitas diferentes formas e maneiras. A dinâmica do coletivo em roda impunha-se sobre a construção do espaço público como um lugar privado. Transformar o adro em campo de futebol era um ato mais imperativo e rompia a funcionalidade do adro aparelho, dependendo em ato da constitutividade do coletivo em ação. Já o adro da igreja, enquanto um aparelho parecia já estar ali consagrado como espaço privado, independente de ter um coletivo em ação ou não, como algo já dado. Assim, a dobra público e privado, agora, parecia mais explícita: a conformação do espaço privado, campo de futebol, passava por um ato coletivo e mais público e em ato. A funcionalidade não estava de tal modo constituída, como no adro da igreja, que bastava a presença de símbolos cristalizados como ícones, a própria igreja, para que todos o vissem sob este ângulo imaginário. O instituir-se como roda não independe do coletivo que está aí atuando. A tensão na dobra público e privado é mais à superfície, não há uma interdição tão forte como no caso do aparelho, que a regra é única e gera punição imediata na sua violação, segundo que o sustenta. Nas rodas os processos estão mais abertos aos acontecimentos.

Em terceiro, é relevante as várias maneiras de se ocupar um espaço constituindo-o como lugar de várias formas de instituí-lo, enquanto modos privados de produzi-lo, mas no qual a instituição de um privado não se incomoda com a existência da instituição de outro no mesmo tempo. Esta imagem é a de uma praça, na qual o espaço público é ocupado por vários diferentes instituindo seus usos sem o compromisso funcional de ter que realizar uma função única e específica, pois várias estão em produção. São vários os coletivos se intercedendo. Há até aqueles que vão para ver os outros. Há outros que vão só para ir. E, há outros que vão para fazerem alguma atividade própria, como a de jogar alguma coisa. Em uma praça o acontecimento é a regra e os encontros são a sua constitutividade. Nela há muitos “entres”. Poder ver isso, inclusive no interior dos outros modos de constituir a dobra público e privado, é ampliar as possibilidades de abrir a tensão público e privado para um processo de produção em fluxo. Não há regra a ser imposta, não há funcionalidade a priori a ser obedecida. Os coletivos que aí estão constituindo-os estão em pleno ato do acontecer, podendo ou não se expressar para o outro, ou ir em busca do outro, como forma de ampliar as muitas possibilidades de encontros, mas deixando os sentidos dos fazeres acontecerem em suas muitas multiplicidades. A possibilidade de compreender esta convivência contaminante produtiva, e criadora, do diferente em nós, nos aparelhos e rodas, pode permitir a instituição da dobra público e privado como um lugar profundamente democrático, como indico um pouco mais adiante. Um adro de igreja que seja lugar de piquenique, de rodas de conversas, de jogos de futebol, de pega-pega, de pregação, de representação artística, não é mais um adro de igreja: agora, é uma praça.

Sem julgamento moral sobre qualquer um dos níveis que apontei, pois não consigo a priori dizer qual é melhor, qual é mais correto, e assim por diante, chamo a atenção para o fato de que em todos os três há mútua constituição do público e do privado, e que um aparelho, também é uma roda, que por sua vez também é uma praça.

O aparelhamento feito a partir de certos poderes instituídos e reconhecidos as organizações

religiosas, as rodas criadas e reinventadas pelos meninos fabricando novos sentidos para o uso do lugar, embora dentro de certas regras que a formação de um time de futebol supõe e, finalmente, os múltiplos encontros com os sentidos mais variados, não necessariamente para cumprir uma missão a priori, mas simplesmente para realizar um acontecer em fluxo, como ficar na praça olhando o céu, ou batendo um papo, ou lendo um livro, ou …. fazem um desenho interessante de olharmos: o público e o privado são mutuamente constituídos, em fluxo, em acontecimento, e vão se constituíndo permanentemente lugares de aparelhos, rodas e praças.

Esta intensa constituição, que nos permite perceber que não devemos separar uma coisa da outra, mas enxergar uma coisa na outra, abre-nos a chance de também podermos atuar sobre isso. Assim, entender que há “entres” de uma aparelho para uma roda, e destas para uma praça, possibilita-nos a poder objetivar a exploração destes “entres” como possibilidades de instituir uma praça em uma roda, de uma roda em um aparelho, pois eles estão ali a serem desvirtualizados. Quando há domínio instrumental de um sobre o outro, podemos pensar em como criar situações para interrogar este domínio pelos “entres”. Como, na saúde, é o caso do desafio de pensar em um lugar tão privado como um consultório de um médico, imaginar a existência de criar situações de praças e rodas, neste lugar claramente aparelho.

Mesmo que se queira separar estes processos, eles se fazem sempre presentes e muitas vezes causam incômodos em certos pensadores que, mesmo muito bem intencionados, procuram valorá-los moralmente ou mesmo destacá-los. Sejam ou não pensadores neoliberais capitalistas que vêm no privado e no mercado o lugar de definição e de determinação, sejam os anti-neoliberais que instrumentalizam a razão e aparelham tudo, inclusive o agir e a subjetividade coletiva. E, diferentes autores que tentam destacar uma dimensão sobre a outra, não conseguem fazê-lo com muito sucesso, sempre apresentando alguma ressalva. Hanna Arendt ao falar da Praça como uma metáfora da República de Cidadãos, não pode se afastar da presença, que a incomoda, da razão instrumental, na política, que a tudo aparelha; Gastão Wagner ao falar da Roda como método de construir co-gestão nas organizações, não consegue negar um estranho instituinte que incomoda: a construção de sentidos não capturáveis pelo método e que podem perverter tudo.

Por isso, é interessante a idéia de Toni Negri quando diz que a democracia, quando normatiza e regra, quando ordena seu arcabouço constitucional, não consegue escapar do poder constituinte, tendo-se que se apresentar efetivamente como uma forma de sociedade e de governo em permanente refazer, assumindo claramente o risco de ser pervertida, de não ser uma roda funcionalmente que gira bem. Negri, fala, por isso, no inevitável Poder Constituinte das multidões, não controlado.

Não é, portanto, irrelevante o tipo de mútua constitutividade entre público e privado que estamos apostando, mas torna-se um problema quando imaginamos que o nosso modo é único e apaga a existência dos outros. Há que apontar certas linhas de sentido, onde me parece que tornar aparelhos verdadeiras rodas e rodas em grandes praças é muito mais adequado e interessante. Há que se conviver com a tensão da constitutividade e há que explorá-la no eterno retorno: o público que se faz privado e vice-versa.

Vale olhar também o modo como pode-se colonizar uma constitutividade na outra e, assim, ordenar formas específicas de poderes para instrumentalizar um lugar a partir de outro. Claro que se isso ocorrer no sentido de tornar sempre em praça as rodas e os aparelhos, estaremos mais próximo do que aponta Negri, mas se for o oposto, no qual o sentido do aparelho se imponha sobre a roda e a praça, ou mesmo que a roda na sua funcionalidade mate a praça que há nela, estaremos diante de um processo que creio legítimo de ser nominado de privatização do público, com uma redução da política ao movimento de tornar universal um projeto bem particular e único. Esta unicidade do espaço público, em certas formas de blocos históricos, não escapa de Arendt. Mas, aqui, chamo a atenção é sobre as maneiras como o Estado ampliado, no Brasil, vem sendo um aparelho efetivo de interesses muito restritos, do ponto de vista da multiplicidade social de interesses que constitue a sociedade brasileira. E, o campo da saúde pode ser um bom exemplo e analisador disso.

Vejo, neste livro do Giovanni um dos estudos mais interessantes nesta direção. Não só mostra a mútua constitutividade do público e do privado, mas revela a intensa privatização dos interesses e do campo das políticas públicas e governamentais. Apontando para os desafios de quem age para inverter as lógicas de ocupação e produção dos espaços públicos e privados, no âmbito societário, em geral.

Algo bem relevante e pertinente na discussão que o SUS colocou para a sociedade brasileira, nestes últimos anos: o que é ser uma política pública de estado, que se modela conforme os blocos governamentais que a constituem. Como operar isso na multiplicidade de tipos de aposta que a saúde é permeável, hoje. De que maneira, a reforma do que é o público estatal com a formação de um privado de interesse público convive com estas situações. E o mercado e as suas organizações privadas. O que tudo isso tem a ver com esta discussão?

Neste livro, o leitor não vai ouvir falar de modo explícito em aparelhos, rodas e praças, mas não lhe escapará que é da mútua constitutividade do público e do privado, que o tempo se trata, no plano dos coletivos sociais em ação, no campo da saúde, enquanto território de práticas sociais e históricas. E com isso, estará à amostra as implicações dos processos de constituição das multidões em ação e suas expressões, como coletivos específicos a produzirem e instituírem aparelhos, rodas e praças, no campo da saúde, no Brasil. Sim, é isso que veremos ser tratado aqui neste livro, com vários outros nomes. E, aí, faço um convite, ao leitor: o que fazer com as aprendizagens a que este livro nos conduz?

Não sei responder a isso de modo direto, mas tenho a sensação de que as possibilidades que abre são muitas, pois expõe a nossa implicação com o que aqui é revelado, mostra o nosso lado em relação a isso tudo. Revela para nós mesmo nossas próprias implicações e a que mútua constitutividade de público e privado estamos de fato interessados. E na saúde, o nosso modo de atuarmos, depende disso.

E aí, que tal ler o livro e checar estas possibilidades.

Texto publicado: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/#indexados

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