Elaine Frere – autora do livro O vento veio brincar no trapézio (São Paulo: Trilha das Letras, 2009) – Veja em Livraria
O que tenho pensado é nas razões pelas quais, se deva lançar um olhar sobre a cena contemporânea, a partir de uma linguagem artística, específica. Considero que isso se justifique, pelo fato de que, o Circo, retoma, neste momento, seu histórico de atuação junto a outras modalidades artísticas, de uma forma consistente, porém, por vezes desordenada e incoerente, mas o fato é que esta invasão, consistente ou incoerente, consagra o que devo chamar neste ensaio de pluralidade artística.
Explico: O público, habituado às facilidades da internet, dificilmente, prende-se a duas horas de uma apresentação sem o colorido e a dinâmica que um corpo cênico pode oferecer, muitas vezes através da dança e do circo, porém, essas duas, por si só, parecem não bastar-se e recorrem ao teatro para contar uma história. O resultado se apresenta na forma de um espetáculo de linguagem plural, com maiores possibilidades para a magia e o encantamento, e que parece substituir processos narrativos, apresentando ao público, uma nova forma de “olhar” e “compreender” as histórias que estão sendo contadas, a partir de imagens e representações simbólicas, restando, a partir daí, aos estudiosos, tentar classificar e lançar juízo de valor através do tempo.
Harmonizando-se com esta forma de atuação e criação, está o Circo, que, nos primórdios, era passado de geração a geração, no interior do grupo familiar ou sob a lona. O avanço tecnológico, porém, operou diversas mudanças sociais, o que refletiu-se no modo de vida e de transmissão da arte circense, pois já não havia a perspectiva de que a geração seguinte seria portadora dos saberes, tendo em vista que as ditas “educações informais” já não tinham seu valor reconhecido. Desta forma, no final dos anos 70, os circenses tradicionais, iniciaram a constituição de escolas e transmissão de saberes para fora da lona . Abriram as portas de sua arte, e artistas de todas as partes puderam, finalmente, conhecer os segredos da arte circense.
O que se pode dizer a respeito desta passagem em específico, é que talvez resida aí, a essência desta cena contemporânea plural, sobre a qual tento lançar um olhar.
E eis, aqui, uma questão relevante para a critica atual:
É possível lançar juízo de valor sobre determinada obra, que se utilize das técnicas circenses, sem conhecimento dos preâmbulos que levaram o circo a fazer parte deste cenário em que a dramaturgia não se dá mais apenas pelo texto, mas também pelas diversas linguagens a serviço da obra?
Será a obra analisada, um espetáculo teatral de posse da linguagem circense que deva ser observada sob características específicas e clássicas referentes a linguagem teatral, ou será um espetáculo circense de posse da linguagem teatral que deva ser analisado sob essa chave da desconstrução, com conhecimento histórico desta linguagem?
E mais uma questão: O uso do circo no teatro, já é reconhecido e aceito como objeto de análise?
Como faço referência acima, é do fim dos anos 70, o registro das primeiras famílias tradicionais de circo, transmitindo seus saberes para fora do reduto familiar. Junto deles, atores e bailarinos com o objetivo de melhorar a performance corporal e pessoas interessadas em manter corpos belos e mente sadia. Há que se considerar que todos atingiram seus objetivos. Aos artistas, possibilidades corporais e expressivas que foram transferidas para o palco e garantiram a novidade e o colorido que faltavam. Aos demais a magia.
UBU Rei, montado pelo Grupo Ornitorrinco, em meados de 1981, com a participação do Grupo Fratelli, que era composto por alunos da primeira turma formada pelo Circo Escola Picadeiro e dirigido por Cacá Rosset, é um bom exemplo de montagem com artistas formados fora da lona, usando a linguagem do circo, na Capital Paulista. O experimento, embora bem sucedido, ainda mantinha o circo como atração, em detrimento da ação dramática, em determinados momentos do espetáculo. Outras montagens se sucederam, com a mesma parceria, e outros grupos seguiram o exemplo.
Outros representantes, porém, retomando um modelo de espetáculo que existiu no século XIX, até 1960, resolveram levar a arte circense na forma mais pura, para ocupar os palcos, foi o caso do Grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões, na primeira montagem intitulada “Bem debaixo do seu nariz”, de 1991 que, mostrava reprises, consagradas no picadeiro, no palco do teatro João Caetano. Espetáculo de circo sendo realizado não sob a lona, mas no palco italiano “caixa preta”, rompendo, definitivamente com a quarta parede, pois é característica primeira, do circo, o contato direto com o seu público. O que diferencia este movimento daquele que era realizado no século XIX é, exatamente o novo personagem que adentra a história do circo, um novo protagonista, o artista proveniente da escola de circo.
O grande exercício e desafio, no entanto, foi, sempre, a fusão das linguagens. Como fazer do circo, um aliado do teatro e não um momento deslocado da história que se está contando? Ou ainda, como fazer da linguagem teatral, uma coadjuvante merecedora de destaque e não simples figuração?
Nesse caminho, nos encontramos com o chamado Circo Moderno e seus representantes mais diretos, na atualidade: em São Paulo temos o Circo Mínimo, La Mínima, AUTOJABÔ’s, Linhas Aéreas e Parlapatões, Pastifes e Paspalhões, entre outros que, mais tarde, inevitavelmente depararam-se com o mito “Cirque Du Soleil”, que conduziu a rótulos, comparações e colaborou para a evasão de animais nos espetáculos, havendo hoje, inclusive, leis que proíbem o uso de animais em espetáculos de circo, sem que, contudo, as mesmas regras se apliquem aos programas televisivos ou aos famosos rodeios. E o circo que, nos primórdios, teve na doma de animais, seu auge e mais importante atrativo, hoje padece com seus artistas domadores desempregados e deprimidos, sob a campanha mais forte dos últimos tempos: “Circo legal é circo sem animal”. Vale lembrar que, a contundente campanha se estende por anos e anos a fio, enquanto espera-se que o governo aprove leis que regulamentem o uso de animais, com regras bem definidas, e não a simples proibição, posto que a doma de animais é, das mais remotas, habilidades desenvolvidas pelos ciganos circenses e, portanto faz parte do histórico desta arte milenar que é, sem nenhuma dúvida, patrimônio cultural.
Mas voltemos as Escolas de circo. A partir de uma segunda geração de artistas formados, novas Escolas se proliferaram pela cidade, muitas vezes com professores inexperientes e sem nenhuma ética, deteriorando a Arte e o mercado de trabalho, pois é provável que aí resida a forma, ineficiente, com que muitas vezes o circo ganha a cena. Depois do primeiro processo, em que a arte do circo foi passada pelos Mestres, seguiu-se a contrapartida, em que os “alunos dos alunos dos alunos”, após curtos períodos de oficina passaram a ensinar e a servirem-se da linguagem circense. Como não podia deixar de ser, nessa aventura, entre a escola, o palco e o picadeiro, muitos sucumbiram, apresentando obras oportunistas, enquanto outros, preocupados com os rumos da arte milenar, estão sempre em busca da batida perfeita como diria “Marcelo D2”. E aqui cabem experientes profissionais do teatro que se servem da linguagem do circo, bem como experientes profissionais do circo experimentando o teatro… não vejo culpa ou erro nisso, vejo pesquisa e exercício de linguagem. Há que se considerar, porém, o histórico de cada um.
O circo também é, muitas vezes, usado com o simples propósito de marketing, porque há cerca de quatros anos, por intermédio das lutas de artistas circenses provenientes das escolas de circo, em conjunto com artistas tradicionais e estudiosos, o Circo ganhou verba pública, através de editais de concorrência, amplamente disputados e, ser um representante do Circo, passou a ser um componente determinante, na luta pela conquista de um espaço já que, a maioria dos representantes legítimos, não possui entendimento suficiente, para elaborar tais projetos, driblar as burocracias e fazer uso dessa conquista… “assim caminha a humanidade”, outra citação interessante neste caso.
Neste âmbito, novos personagens se destacaram e merecem ser comentados. Um deles, que vem recebendo duras críticas, é o clown. Clown, termo inglês que significa “Palhaço”, em português. Amparados pela euforia do circo no teatro, surgiram cursos de “Palhaço” por toda parte, eis aí a grande questão… ministrado muitas vezes por profissionais do teatro, sem amplo conhecimento do fazer circense, fruto dos ensinamentos dos velhos mestres, os palhaços, produtos destes cursos, ganham uma sutileza imprópria para o espalhafatoso palhaço do picadeiro, firmado nas imperfeições humanas. Será possível vestir, na pele do Clown, o grandioso Palhaço do Picadeiro? Logo o palhaço, aquele artista polivalente, que faz graça no picadeiro, faz graça na jaula dos leões, conquista o público, toca um instrumento, ri de si mesmo e ainda ama a trapezista?… o palhaço parece não caber nesta vestimenta. Não vejo como torná-los sinônimo, e não cabe aqui, nenhum juízo de valor, mas apenas uma justa diferenciação.
Acompanhando a cena plural que se manifesta, o Circo Tradicional, lança mão de recursos teatrais para inovar o espetáculo sob a lona, com erros e acertos. Uma pena que representantes diretos do Circo Tradicional, com espetáculos repletos de números e artistas que impressionam pela destreza e beleza, como deve ser, preocupem-se em lançar mão de recursos teatrais e cenográficos, muitas vezes dispensáveis.
Penso que, talvez, o melhor caminho para o Circo Tradicional seja fortalecer-se enquanto Arte Milenar, firmando-se em seus moldes mais remotos, até como forma de resgatar aquele espaço que se abriu com a evasão dos seus filhos.
Já aos representantes da vertente que entendemos contemporânea, cabe prosseguir na pesquisa da fusão de linguagens, tendo sempre por base a fonte, o princípio, que é o Circo Tradicional.
Com isso, não quero afirmar que o Circo Tradicional não possa fazer uso da linguagem teatral, uma vez que o Circo-Teatro foi, sempre, uma forma artística plural e consagrada, de representação debaixo da lona, e visitou todos os cantos deste país, chegando a espaços onde nenhuma outra forma artística sequer pensou chegar. Tampouco quero propor o separatismo, mas a valorização e preservação da fonte, que é o Circo Tradicional, o que seria de grande valor para os jovens artistas circenses que, hoje, perseguem os passos dos primeiros alunos formados pelo Circo Escola Picadeiro.
O fato é que a cena contemporânea se enche de cor e de energia quando o circo se faz presente, é o elemento surpresa e faz o espetáculo para o respeitável público.
Importante observar que, se estiver inserido numa história, é interessante que possa compor, junto das demais linguagens, uma espécie de partitura que soe melodiosa, pois os dissonantes podem ocasionar uma quebra entre o conteúdo e a forma cênica, aparentemente prejudicial para o resultado da obra, embora, seja a cena contemporânea plural, uma obra em pleno movimento e pouco se possa dizer sobre certo ou errado nesse caminho.
Como observadora da cena contemporânea, intuo os caminhos que levaram o circo a trocar o picadeiro pelo palco, pois não é raro encontrarmos palcos onde sonhávamos encontrar picadeiros, e a partir destas observações, reflito sobre o quão grandes foram as transformações que se seguiram na forma teatral
Resta afirmar que, este caminho, que busca o diálogo entre as linguagens artísticas em cena, é um trabalho que exige exercício, delicadeza, sensibilidade, respeito e intuição, além do ilimitado universo das pesquisas e experimentações pessoais. Apenas com grande carga de responsabilidade e reflexão, sobre esse fazer artístico plural, teremos condições de colaborar para o entendimento e registro histórico dos caminhos da criação.
Para o Artista Contemporâneo, de todas as vertentes, é grande o desafio de criar uma obra de arte que contemple tantas possibilidades artisticas, com toda a atenção e respeito que cada uma delas merece. Para tanto, uma vez que não domine a todas, talvez deva recorrer a profissionais especializados por ocasião de suas montagens, em nome do profissionalismo e compromisso com a excelência da obra, no cenário cultural.
Com relação ao espaço que a Arte Circense ocupa, nesse cenário, é bom constatar que, alguns passos já foram dados, no sentido de abandonar velhos preconceitos, tirando-a do subúrbio das artes, pois a despeito das duras provas as quais foi submetida, sobreviveu e se reinventou.
Agora, é preciso que ela se fortaleça, ocupando o espaço que lhe é de direito, seja nos picadeiros, nos palcos, na cena plural, ou mesmo nos livros escolares, como um capítulo especial e não uma nota de rodapé. Desta forma, passando a povoar o imaginário infantil da atualidade e não apenas do passado.
Aliás, esse processo de fazer o sistema educacional compreender que a ARTE não é, só, um momento de pura distração, mas, sim, um elemento essencial na educação, além de representar um conjunto de linguagens, entre elas, o teatro, a dança, o circo e o cinema, entre outras, e não apenas as “artes plásticas”, é, também, merecedor de muita reflexão e compromisso. Mas isso merece outro espaço de abordagem, a cargo de um profissional especializado.