Artigo Publicado na: Revista Anjos do Picadeiro 8 – Encontro Internacional de Palhaços , 2009/2010. Rio de Janeiro: Edição Duas Águas; Realização: Teatro de Anônimo, Editoração e consultoria: Ieda Magri, 2009/2010, pp. 19-27. ISSN 1983-6449, 104 p.
Em qualquer tipo de encontro, até em um simples bom dia, podemos ser afetados pela presença do outro, no sentido de que esse acontecimento, de forma imprevisível, pode provocar efeitos de diferentes naturezas. Por exemplo, pode produzir uma empatia física ou rejeição; nos animar emocionalmente ou não; agir no nosso pensamento racional e nos levar a elaborar alguma reflexão. Imaginem, então, quando esse encontro acontece em eventos coletivos nos quais a quantidade e qualidade de afecções – como ações de outro sobre nós – se amplia muito e, portanto, torna mais complexa a produção desses efeitos.
Tanto no plano individual quanto no coletivo essas afecções são compostas por tudo aquilo que se processa nos encontros de homens e mulheres com o mundo, disparando em cada coletivo ou individuo produções de sentidos em mil direções e naturezas como, por exemplo, as do sentido político, moral, religioso, cultural, ecológico, entre muitos outros.
Em um encontro como o Anjos do Picadeiro as afecções ocorrem a cada momento, durante todos os instantes do evento e sentimos isso de uma maneira muito viva. É nesses encontros que temos condições, ao estarmos disponíveis para isso, de observar as diferenças e semelhanças de nossos fazeres e de nossos modos nas relações com os outros. É também nesses encontros que podemos nos abrir para processos de aprendizagens com os outros distintos de nós ou manter nossas resistências.
Para exemplificar o que chamo de detalhes que fazem a diferença, trago presente a mesa que coordenei, “Encontro da tradição.” Dela fizeram parte: Adriano, o palhaço Biribinha (Teatro Biriba-SC); Geraldo Santos Passos, o palhaço Biriba (Circo-Teatro Biriba-SC); José Ricardo, o palhaço Bebé (Teatro do Bebé-RS); e Marcelo Benvenuto de Almeida, o palhaço Serelepe (Circo Teatro Serelepe/Teatro de Lona Serelepe-RS). Diferenças e semelhanças não faltam entre eles, apesar de afirmarem ser da mesma origem da “tradição”. Há nos discursos colocações que parecem ser todas iguais. Assim como os ditos “tradicionais” são às vezes olhados e analisados de fora, equivocadamente, como um todo homogêneo. Claro que alguns pontos se tocaram. Mas, cada um falou de sua singularidade na relação com o público, de suas metodologias de formação, do que significava para cada um fazer rir etc. Mesmo que todos tenham como marca o circo-teatro, relataram formas de chegadas e aprendizagens com certos detalhes que os diferenciam nas semelhanças e fazem com que suas histórias sejam singulares.
Nesse mesmo encontro, mas não na mesa, havia outro artista, o palhaço Biribinha, Teófanes Silveira, também de origem circense tradicional e do circo-teatro, mas de uma região brasileira totalmente oposta àqueles da mesa, o Nordeste, e vivendo atualmente mais “fixamente” em Arapiraca, Alagoas. Quando relata seu processo de formação e aprendizagem, o modo como se relaciona com o público nordestino, nortista, sulista ou do Centro-Oeste, Biribinha demonstra possuir uma caixa de ferramentas com alguns elementos diferenciados da de seus parceiros do Sul, também tradicionais. Entre estes é interessante observar o modo como Teófanes reconstruiu-se profissionalmente, sempre a partir de um discurso do tradicional como artista, mas nas ruas e praças, não mais sob o toldo, elaborando novas formas de se relacionar com um público que não pagou para assistir e não fica sentado, é o pedestre, o transeunte. Teve que ressignificar e sofisticar toda sua caixa de ferramentas tradicional e transpô-la para a rua. (1) É a diversidade circense, mas também a artística de um modo geral que possibilita a percepção dos detalhes do que parece igual e é, no entanto, diferente.
Além disso, nos encontros dos quais participo tenho observado e analisado detalhes significativos que ao mesmo tempo em que nos identificam com certos fazeres artísticos das várias nacionalidades presentes, tornam-nos totalmente diferentes em nossos processos históricos de construção, enquanto artistas, pesquisadores, professores etc. É o detalhe da mistura.
A produção do Anjos do Picadeiro sempre esteve envolvida em homenagear os artistas palhaços do circo tradicional brasileiro e estrangeiro. Até porque, entre seus vários processos de formação, os componentes do Teatro de Anônimo estiveram na Itália com Nani Colombaioni, cuja família é uma das representantes da tradição europeia circense que data de pelo menos dois séculos.
Porém, até a quinta edição do Anjos do Picadeiro, em dezembro de 2006, a presença de circenses tradicionais brasileiros se restringia quase que a homenagens, pouco apresentando seus trabalhos e nunca os colocando como mestres de oficinas. Só a partir do Anjos do Picadeiro 7, em dezembro de 2008, houve o primeiro momento histórico de uma oficina dada por um artista daquela origem, o próprio Teófanes Silveira.
Mas vejam que interessante. Apesar dessa demora em incorporar os tradicionais como artistas debatedores e/ou oficineiros, não há um encontro do Anjos, ouso mesmo afirmar, no qual a grande maioria dos participantes brasileiros não tenha sido aluno, tido contato, conhecimento, até mesmo convivência diária com esse passado da história do circo no Brasil ou com um artista palhaço ou cômico que em algum momento de sua vida não tenha passado dias, horas ou meses sob um toldo de circo itinerante.
Na mesa que coordenei apenas Geraldo Santos Passos já havia participado dos Anjos (era sua terceira vez). Para os outros era a primeira. A plateia estava lotada para ouvir aqueles mestres.
Vou pegar emprestado o texto escrito por Renato Turnes para o blog Picadeiro Quente (2), que achei melhor que minhas palavras para exemplificar o que chamo de detalhes que definem o fazer artístico do Circo-Teatro Biriba e que influenciaram de modo significativo a trajetória de Renato:
Tudo que eu falo sobre a experiência, que não esteja no âmbito da linguagem fílmica documental, tende a soar abstrato e metafórico, talvez romântico e apaixonado demais para os limites de um seminário de pesquisa. Mas o fato é que essa aproximação com a Família Passos, e com o trabalho das duas companhias-irmãs que levam o nome Biriba em Santa Catarina, me muda, a cada novo encontro, por completo.
Faz-me entender e respeitar a tradição, e me envolve em memórias, imagens, falas, textos guardados em um velho baú cheio de histórias prontas para serem recontadas. Esse mergulho historiográfico me conecta com uma longa linhagem de artistas admiráveis e deles aprendo sobre o ofício. Ajuda-me a estabelecer com o público uma forma direta e afetuosa de comunicação e esperar dele a resposta mais sincera.
Em cena me faz repensar os modelos formais de interpretação e a recuperar certo grau de liberdade expressiva, inventar uma presença ao mesmo tempo profunda e ingênua. Leva-me a ser de novo um jogador e um brincante e redescobrir a alegria do palco e o prazer perigoso do improviso.
Em termos estéticos, posso dizer que o encontro me faz ainda adquirir repertório de gêneros populares, que todo o tempo releio nas encenações que crio, me ajudando a moldar um estilo, destilar poéticas, definir algum caminho autoral, ainda em formação.
Também me ensina a empreender, tomar conta de mim, buscar viver da arte a que me propus, pois não há beleza maior que a dignidade do trabalho desses artistas. Por fim torna-me um ator mais alegre. Possivelmente um ser humano mais feliz. Depois da inesquecível apresentação de Biribinha contra o Monstro de Frankenstein, escrevi: Quando o palhaço sobe ao palco o jogo é alucinado, febril. Sinto soprar ao seu redor um vento que é graça e liberdade. Sob a lona da trupe andante reencontro uma certa ligação ancestral que une a nós atores numa tradição tão antiga quanto o ofício: a de não pertencer a lugar algum. A opção radical pelo risco de ser artista.
Os encontros de artistas circenses, palhaços, malabaristas, entre outros, no Brasil, tem como singularidade combinações e miscelâneas, talvez pela herança de nosso processo de constituição enquanto um país colonizado por portugueses que se misturaram mais do que qualquer outro colonizador, com índios, negros, imigrantes etc. etc. e etc, quase que se dissolvendo por aqui nesse processo.
Pelos relatos dos artistas e pesquisadores nesses encontros, encontrei poucas experiências (para não dizer nenhuma) das quais os artistas jovens que não vieram do circo como escola desconheçam ou não tenham tido contato com algum artista oriundo da “tradição”. Mesmo que em alguns discursos haja tensões, resistências, discordância da estética e da ética, e até mesmo afirmações do tipo “meu trabalho não tem nada a ver com essa história” (tipo geração espontânea), é muito difícil que em algum momento não houvesse misturas. Por outro lado, quando observamos e analisamos os relatos dos artistas, pesquisadores, donos ou coordenadores de escolas de circo ou circo social oriundos de outros países, os pontos de contatos descritos são poucos. Em alguns há afirmações de que desconhecem totalmente a história do circo e correlatos em seus países, quando não afirmam que poucas vezes foram a um circo na sua terra.
Isso ficou muito claro no V Festival Mundial de Circo, realizado em Belo Horizonte, em junho de 2009, no qual, dentro do que se chamou Projeto Diálogos, realizou-se o Encontro Latino-americano de Escolas de Circo, que reuniu pesquisadores, críticos, artistas circenses e representantes de escolas e projetos sociais do Brasil, Argentina, Chile, México, Colômbia, Peru, representante da Federação Europeia de Escolas de Circo Profissionais (Fedec). Além dos latinos, participaram representantes do Ministério da Cultura da França e de escolas de circo francesas. Poucas foram as referências aos contatos com suas histórias nos relatos. Os representantes da maioria dos países da América Latina, desconheciam seus processos históricos circenses, e só recentemente estão se voltando para eles, com exceção do México e da Argentina. Esta, aliás, em particular, é rica em historiadores e pesquisadores sobre essa história, no entanto, ao conhecermos os fazeres cotidianos dos artistas, pouco há de contato entre as várias produções de antes e de hoje, ou mesmo entre eles.
Nos europeus fica ainda mais claro o distanciamento, não no sentido de que desconheçam que houve história, que há circenses, palhaços, cômicos oriundos de outros modos de produção que não seja a escola de circo, mas há a crença de que a tal produção dita contemporânea não é devedora, não é herdeira de nada que houve antes dela. A escola de circo, as produções para fora do circo como escola, são os únicos parâmetros seguidos. Muitos chegam a afirmar que desconhecem o que seja essa produção anterior e seu valor artístico. No Anjos do Picadeiro, acho até que mais do que nos festivais, cada vez mais a presença dessa mistura está presente, mesmo que para alguns (para mim também) ainda seja pouca.
Se diferenças e semelhanças não faltam entre os Biribas, Biribinhas, Serelepes e Bebés, eles, no entanto, se distinguem nos detalhes com relação às diversas produções de memórias sobre sua constituição artística, em comparação com o processo de algumas histórias de europeus e americanos. Interessante comparar suas trajetórias com a de Julie Goel, que também faz teatro na rua com forte marca da comicidade circense, e que, no entanto, quando lhe foi perguntado, na entrevista aberta conduzida por Mauro Bortolotto, sobre sua relação com o circo em seu país, afirmou não o conhecer muito porque não tinha tempo, seu trabalho não lhe possibilitava essa disponibilidade. Afirmou mesmo que desconhecia circo, que a única lembrança que tinha de palhaço era o medo que sentia quando criança. Mas quem viu sua proposta de trabalho no palco a imaginava uma palhaça explorando textos clássicos como qualquer um dos Biribas poderia fazer, ou como Oscarito com Shakespeare em Romeu e Julieta, com sólida formação em circo. Porém, ela deixou claro que não era esse o caso. Sua história não é como a dos muitos Biribas, e muito menos como a maioria dos participantes brasileiros do Anjos do Picadeiro. Entretanto, lá estava ela no Anjos e a todos parecia que também do seu lugar, cabia muito bem naquele encontro. Apesar de toda essa diferença, a ninguém passava despercebido que também tínhamos algo em comum.
Mesmo se tomássemos qualquer outro grupo do Brasil que não tenha vindo do circo como escola, mas de uma escola de circo qualquer, veríamos muitos pontos em comum com os Biribas e com Julie. Entretanto, no Brasil, nenhum deles poderia dizer que não tem a marca da vivência direta com circenses oriundos do circo. A história do circo no Brasil e das artes em geral não nos permite uma fala como a dela, por outro lado nenhum desses alunos poderia falar do lugar de um Biriba. Porém, todos estão no mesmo campo: o da comicidade constituída pela teatralidade circense, de uma forma ou outra. Aliás, a marca do comum que o Anjos do Picadeiro sabe tão bem construir a cada evento.
Como entender e aprender com esse encontro tão singular que reúne diferentes que são ao mesmo tempo portadores de coisas em comum e partilham de um mesmo tempo e lugar de exposição da multiplicidade da comicidade circense?
Apesar das inúmeras análises, todas válidas, sobre o que significa ser palhaço, cômico ou clown; sobre como se produz a graça; sobre o que é o riso e a comicidade ou o que é o picadeiro, a rua, o palco; sobre a linguagem ou a performance; sobre personagens ou estado de clown; sobre ética e estética; aprendizagem, formação, tradição; sobre o novo, o antigo, o tradicional e, enfim, sobre repetição ou criação, há uma ideia, quase que presente em todas elas, que entende que não se pode pesquisar, estudar, analisar e compreender tudo isso sem considerar que conta significativamente o modo singular de constituição de cada artista em seu ambiente de aprendizado. É esse conjunto de saberes que vai nortear todo o processo de constituição da sua rede de significações.
Não é por acaso que a palavra quase foi destacada. Quando, numa mesa de debates, numa roda de conversas informais, se diz que toda formação humana é cultural e que deve prevalecer a diversidade, parece haver um certo consenso. Mas não é real. É no detalhe do fazer, ali no encontro com o outro, que as diferenças aparecem, que as aceitações e resistências operam.
A diversidade, para mim, pressupõe distinções e igualdades, mas é no contato com os detalhes da heterogeneidade que nos vemos diante da necessidade real de ações orientadas para transformar ou não o outro em igual a mim, ao que penso, ao que faço e pratico.
Há uma certa crença, herança de uma cultura judaico-cristã, de que todos temos que ser iguais. No fundo, procuramos identidade e não diferença. E com isso há a constituição de ações efetivas de desrespeito ao diferente, que aparece como ameaçador naqueles detalhes que o separam de mim.
Histórias se cruzam, se alimentam, se produzem. Uns pegam antropofagicamente alguma coisa de um encontro que viveram, outros pegam outras coisas, de outros. Novas constituições vão se fazendo. Tradições e mudanças vão se costurando. Multiplicidades e singularidades vão se encontrando em cada um e entre si. Mas, igualdade identitária chapada não cabe mais e menos ainda a soberania de um saber fazer sobre outro. Querer padronizar e regular, enquadrando, seria a morte dessa riqueza que o Anjos do Picadeiro expõe para que possamos ver como é produtiva a igualdade na diferença, onde o detalhe do outro é alimento e não ameaça; onde o saber do outro é negociação com o meu e não mais algo a ser adotado como o verdadeiro; onde a história do outro é exemplo e caminho a se repetir, repetir, repetir até ser diferente, como diz o poeta Manoel de Barros.
1. Para os que querem conhecer a trajetória desse artista, recomendamos sua entrevista concedida a Erminia Silva e publicada na Revista Anjos do Picadeiro 6 – Trocas: modos de fazer, usar e pensar. Rio de Janeiro: Teatro de Anônimo/Petrobras, 2008 pp. 137-157.
2. Pesquisado em 26 de janeiro de 2010: http://picadeiroquente.blogspot.com/2009_11_01_archive.html
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Para os que querem conhecer a trajetória desse artista, recomendamos sua entrevista concedida a Erminia Silva e publicadana Revista Anjos do Picadeiro 6 – Trocas: modos de fazer, usar e pensar . Rio de Janeiro: Teatro de Anônimo/Petrobras, 2008 pp. 137-157.
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Pesquisado em 26 de janeiro de 2010: http://picadeiroquente.blogspot.com/2009_11_01_archive.html