Em cartaz no Sesc-Campinas, Biribinha revê sua carreira sob a lona circense
Biribinha é um palhaço espirituoso. Isso dá para averiguar de cara: nem é preciso ser seu amigo ou ter sido seu confidente. Poucos dedos de prosa e pronto: a questão está resolvida. Na mesma intensidade em que lida com as pilhérias de sua vida, dentro ou fora do picadeiro, mostra-se disposto a antecipar por meio de palavras e imagens bem-humoradas o dia de seu espetáculo final. Encara a morte dessa maneira. De diminutivo em sua carreira, só a alcunha recebida sob a lona: Biribinha. Uma perfeita incoerência ao mencionar um palhaço de grandes predicados.
O nome de professor de latim: Teófanes Silveira recebeu numa pia batismal em Jequié, na Bahia. Nas veias, o menino carregou desde sempre o sangue P+ (palhaço positivo). Afinal, foi o primogênito do terceiro casamento de Nelson Silveira, o reconhecido palhaço Biriba, falecido em 1977. Ao lado do velho, Biribinha aprendeu a ser ator, diretor, empresário circense e, acima de tudo, cômico de picadeiro. Aos 59 anos, Biribinha coleciona 52 anos de carreira, contabilizando a participação em 43 peças de circo-teatro, desde a estreia com 7 anos em Marcelino Pão e Vinho.
Desde semana passada, Biribinha está na cidade. Em companhia de Seliane Barbosa (Pipoca), mulher e companheira de palco, e do caçula Júlio, de 9 meses (já batizado de Cuscuz), o palhaço faz temporada no Sesc-Campinas. O próximo espetáculo acontece sábado, às 16h. Denominada pelo singelo nome de Lembranças de Presente, a montagem reúne amigos de nariz vermelho. Além de Biribinha e Pipoca, Ésio Magalhães (Barracão Teatro) Márcio Parma e Thiago Sales (Circo Caramba). Guardado num gravador digital desde novembro do ano passado, o bate-papo com Biribinha ganha a partir de agora a forma escrita. Confira trechos da entrevista:
Agência Anhanguera — Verdade ou mentira: o palhaço é ladrão de mulher, como prega aquela famosa charanga circense?
Teófanes Silveira — É muito verdadeiro isso: o palhaço é ladrão de mulher (risos). Por causa disso, na cidade por onde passávamos, sempre havia confusão com os outros rapazes. Porque normalmente o palhaço simpatizava com alguém do lugar, dali a pouco viravam namorados e com o passar do tempo se casavam. Só comigo isso aconteceu quatro vezes. Na terceira vez, por exemplo, deu-se da seguinte maneira: precisei de elenco para o circo e durante a seleção duas irmãs passaram. Casei-me com uma delas.
Essa característica de palhaço conquistador vem de seu pai, o palhaço Biriba?
Com certeza. Meu pai tinha uma história interessante sobre a segunda esposa dele, Olindina. Ele simpatizou com ela, que na época era uma moça linda, branquinha e de olhos azuis. Então, sugeriu a ela uma fuga. Eles tentaram uma vez, mas não deu certo, porque o pai dela descobriu. Então, papai simulou um passeio de táxi com Olindina e sua mãe. Quando o carro saiu da cidade onde as duas moravam, a velha começou a se apavorar. Daí, em Cruz das Almas, na Bahia, meu pai disse à futura sogra: “Estou acabando de roubar a sua filha. A senhora pode voltar para casa com o motorista e contar tudo ao seu marido”.
É verdade que a sedução começava logo no picadeiro, com um paletó perfumado jogado à plateia?
Tudo era combinado. O palhaço provocava uma discussão com o mestre de cena ao ponto de tirar o paletó e arremessar contra ele. Na hora do escada jogar de volta ao palhaço, o grande Biriba se abaixava para o paletó cair no colo de uma dama. Quando isso acontecia, as mulheres deliravam, se acabavam, com o perfume que vinha daquele paletó. Isso provoca no dia seguinte comentários do tipo: “Gente, se vocês sentissem o perfume daquele palhaço…!” Pronto: daquilo, rolava toda uma história.
A intelectualidade de Nelson Silveira nunca teve êxodo, mesmo quando resolveu abandonar a faculdade de direito para se tornar palhaço. É verdade que ele usava de tal atributo para compor seu clown?
Sim. Em razão disso, foi chamado de palhaço intelectual ou palhaço advogado. A roupa dele era formada por terno de linho, sapato de verniz, bengala envernizada e cartola-coco. Sempre, com pouca maquiagem. Fazia o uso do falar difícil, da sua intelectualidade, para se tornar engraçado. O palhaço Biriba dizia mais ou menos assim: “Nos momentos radiotelepáticos das consignações terapêuticas, ele fica todo encurubilube que se via estabafonético”. Entendeu? Ele pegava palavras de bula de remédio e as encaixava dentro do texto de forma genial.
A genética do riso em sua família chega na quarta geração. Todos os seus seis filhos são palhaços?
Todos começaram comigo, mas alguns não seguiram. Quem continua ao meu lado são dois: Mixaria e Mixuruca. Mixuruca já pintou a cara do filho dele, batizado por mim por Bibi, com cinco anos.
Apesar de estar com nove meses de vida, Júlio Silveira, seu caçula, já recebeu as honrarias clownescas. Como foi o batismo?
Já alguns anos, em Arapiraca (Alagoas), venho fazendo um trabalho com a minha esposa no hospital, na área de pediatria, sobre a conscientização do aleitamento materno. Então, no Dia Mundial do Aleitamento Materno do ano passado, quando Júlio estava sendo alimentado, coloquei um narizinho de látex nele. Daí, me veio a inspiração de batizá-lo naquele momento de palhaço Cuscuz. Pela autoridade que me é conferida como palhaço, impus as mãos sobre a cabecinha dele e dei a ele esse nome.
Qual o significado do nome?
Nada melhor do que leite com cuscuz. O cuscuz é um alimento nordestino muito forte: de grande poder de consistência, que dá vigor ao homem. O nome pegou, porque no mundo artístico já é conhecido. Ele já tem nariz, roupinha e tudo…
Sua estreia no picadeiro não foi de cara pintada. Pode voltar ao palco do Pavilhão Teatro Copacabana, em 1958, para relembrar sua performance em Marcelino Pão e Vinho?
Nós estávamos em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, quando meu pai resolveu adaptar do cinema o filme Marcelino Pão e Vinho. Era de costume ele fazer isso com os filmes que bombavam na época, porque ao vivo no circo as histórias rendiam uma bilheteria fantástica. Fui com ele algumas vezes no cinema para assistir ao filme e me basear em Pablito Calvo, que interpretava Marcelino, para compor o meu personagem. Estreamos. Não deu outra: o cinema fechou e as filas do circo só aumentaram. Depois disso, ainda fiz Felisberto, o negrinho cômico em Coração Materno, antes de ser palhaço.
O nascimento de Biribinha demorou muito?
No final do mesmo ano, na Avenida Rio-São Paulo, no quilômetro 49. Papai me chamou e disse: “Olha, eu vou pintar teu rosto de palhaço! A partir de hoje, senhor Teófanes (Ele quando queria falar sério, chamava a gente de senhor) o senhor está assumindo um fardo muito pesado. Se você não conseguir carregá-lo, o senhor vai soltá-lo na hora em que entrar pela primeira vez no picadeiro”. Quando ele botou tinta no meu rosto, um nariz postiço e me deu um chapeuzinho, aquilo pesou. Senti que as pernas dobraram mas não de nervoso e sim pelo peso da responsabilidade.
Parênteses: ao falar sobre Nelson Silveira, o senhor faz cara de sério. Seu pai foi muito rígido com os filhos?
Como professor e mestre, meu pai era muito exigente e impunha a todos nós o respeito à arte. Aquilo para ele não era brincadeira e fazia a gente entender disso. Eu tinha meus momentos de farra, mas quando se tratava do encenar e enveredar na arte, deveria encarar de forma disciplinada. Por exemplo, o meu pai não permitia que a gente cruzasse a perna com a sola do sapato virada para a plateia. Ele achava que isso era falta de respeito ao público. Se precisássemos fazer uma cena dessas, tínhamos que engraxar a sola do sapato antes de entrar em cena e só calçá-lo quando pisássemos no palco. O público não poderia ver as solas sujas.
De volta ao quilômetro 49, como foi aquela matinê?
O circo estava lotado. Na ocasião, meu pai tinha organizado um espetáculo para as escolas, inclusive a minha. Todos os meus colegas estavam lá. Abri a pontinha da cortina, vi todo mundo e daí me bateu a timidez de entrar no palco. Disse: “Não vou entrar!”. Papai retrucou: “Entra!”. Tentaram me arrastar, mas eu me segurava nas coisas. Não entrava… Até que meu pai me atirou no meio do picadeiro. Eu passei pela cortina e caí de joelhos. Depois que olhei para plateia, comecei a chorar. Tentando enxugar as lágrimas, passei a misturar a tinta branca, com a preta e também com a vermelha. Lambuzei a cara toda. Quando meus colegas viram aquilo, passaram a rir e fazer chacota de mim. Meu primeiro ato cômico foi assim.
Teve o privilégio de dividir o picadeiro com o mestre?
Muitas vezes. Ainda tive a oportunidade ímpar de mestrar cena para o meu pai, de ser o escada para o seu palhaço. O mestre de cena, aquele que fica todo bonitinho ao lado do palhaço, representa a aristocracia, a sociedade. Ele me preparou para ser os dois lados. De palhaço, meu pai repassou todo o repertório dele que vinha de três grandes mestres: Arrelia, Quero-Quero e Tontolino.
A máxima de que os palhaços do nordeste são apelativos tem coerência para o Biribinha?
Tem sim. No Nordeste, encontram-se muitos assim. Eu vivo numa região onde o teatro que mais agrada é o escrachado, o podre, o sem lógica. O baseado em palavrões. Pior que estou vendo isso também no Sul. Estou ficando surpreso com a situação, porque os palhaços do Sudeste e Sul tinham uma linha mais limpa. Não precisavam de apelações para fazer rir, porque eram engraçados. Por sua vez, as histórias eram engraçadas, todas vindas do repertório dos palhaços tradicionais. Hoje vejo palhaços por aí contando piadas tiradas de livrinhos de anedotas ou escutadas em roda de amigos. Não mais com duplo sentido, mas pornográficas. Isso para mim é falta de recursos para se fazer rir.
Há quatro anos resolveu terminar com Circo Mágico Nelson, em seu comando por mais de 15 anos. A gota d’água veio por meio de um presságio?
Foi uma visão. Pensei até que teria sido um sonho, mas não era. Numa certa noite, meio sonolento, me vi retirando a lona de cima do meu circo e percebi que a plateia continuava no lugar. Eu estava em meio a uma clareira, que era o picadeiro. E naquele lugar, eu representava o meu papel de palhaço. Percebi naquele instante que eu tenho circo onde eu chegar. Independente de ter uma lona armada ou não, o espaço alternativo da rua, do salão, do clube, do teatro ou do cinema me dá a possibilidade de fazer circo.
Biribinha já tentou aposentar o nariz vermelho?
Se um dia acontecer isso, pode me amarrar de cordas, levar-me a um hospício, porque eu estarei doido. Considero-me privilegiado. Sem querer ofender as demais profissões: existe uma faculdade para se formar engenheiro, existe outra para se formar um advogado, mas não existe nenhuma para formar um palhaço. Ou você nasce, ou você não se torna um. É um privilégio de Deus. Por isso, não posso nem pensar numa coisa dessas…
Mesmo se tratando de dom, quais seriam os predicados de um bom palhaço?
Em primeiro lugar, respeito pela profissão e pelo público que o assiste. Em segundo, humildade. Por outro lado, ele precisa ter definições certas para o seu personagem, uma lógica de quem é essa figura: como ele anda, ri, senta e a forma que sente e reage a um determinado impacto. Ter uma voz bem definida e possuir um repertório compatível à sua história. E, por último, ter percepção e conseguir dominar a plateia. Abraçá-la. O palhaço não pode agredir o público, mas também não pode ficar nunca sem respostas a dar a ele.
Passa entre as pilhérias que povoam a cabeça de um palhaço pensar no dia do seu espetáculo final?
Costumo dizer que nunca vou morrer, nem tampouco envelhecer. Sempre achei que velhice enfraquece o irracional e que a morte só leva a matéria. Quando eu desse tchau: não desejaria propriamente uma festa, mas gostaria da presença de uma banda de música no meu enterro. Nada de carro de som, pelo amor de Deus. Outra coisa: nada fúnebre! A banda só tocaria música circense. Seria muito legal! Para minha lápide, quero duas frases escritas: “Papai do Céu quando me chamou é porque o céu estava triste” e “É proibido chorar: aqui repousa um palhaço!”
Publicado in Correio Popular – Caderno C, p.08