Circo queer

Circo queer

O desejo, o sonho por uma sociedade mais igualitária sempre esteve presente nos meus pensamentos. Criar uma página dentro do Circonteúdo, na qual possa me dedicar às pautas de gênero, das pessoas com deficiência, dos povos originários, das ações afirmativas e discussões étnico-raciais, entre outros assuntos relevantes para um processo de reparação histórica, dando o protagonismo devido às pessoas que tiveram e têm as suas narrativas apagadas, é um sonho que começa a se construir. Trata-se da construção de um espaço para vozes perseguidas ao longo da história. Ansiamos que aqui nesta página tais vozes possam ter um fórum seguro e democrático para a produção de conhecimento e a divulgação de trabalhos, artigos e entrevistas.

O objetivo é criar um espaço para novas perspectivas da linguagem circense, para a construção de outras subjetividades sobre o conceito de família circense e o papel da masculinidade tóxica que habita o picadeiro. Trabalhamos com a ideia do estabelecimento de um espaço de reparação histórica, o qual coloque pessoas que atuam com diversidade de gênero na linha do tempo da história da produção circense.

Esta página será dedicada a todos, todas e todes artistas que lutam por direitos igualitários dentro dos espaços de trabalho, no nosso caso, o picadeiro.

Eu sou um/uma artista que pertence à comunidade LGBTQIAPN+ e atuo com a linguagem circense há mais de 20 anos. Sinto que, nesse tempo todo trabalhando como palhaço, acrobata e bailarino, a linguagem da palhaçaria, mais especificamente na figura do palhaço, mostrou-se atravessada por um comportamento heteronormativo determinando os modos de produção e os percursos estéticos. Tudo que era diferente desse molde tinha que ser excluído da cena e da sociedade.

Sempre senti o peso de carregar um corpo que não me representava para sobreviver nesse sistema opressor: tinha que me esconder, assim como milhares de pessoas pelo mundo. Entrei em um sistema estruturado socialmente para o corpo cis heteronormativo. Dentro da linguagem da palhaçaria, há um dito popular que já foi cantado, declamado, verbalizado de várias formas e que pode ser traduzido na seguinte pergunta-resposta: “E o palhaço o que é? É ladrão de mulher”. Essa frase me perseguiu de várias formas, porque cria um imaginário para população de que a linguagem da palhaçaria é só concebida por homens heteros. Tal perspectiva causa muita dor e traumas psíquicos para uma comunidade inteira. Ser um/a palhace, uma pessoa que não se identifica com essa maneira de existir heteronormativa, é simplesmente ser apagado/a da história, pois é como se sua presença nesse planeta fosse colocada no vazio.

A presente página tem o desejo de encontrar pares, criando uma rede de apoio e o fortalecimento da linguagem circense dentro da diversidade; de provocar deslocamentos em modos de produção repassados de geração em geração; e de romper com um pensamento de que o masculino, dentro do universo circense, é o “normal”. Buscamos fomentar uma produção de conteúdo circense para quem não tem um corpo dentro da “normalidade”, conceito construído para excluir pessoas com diferentes formas de existir. Além disso, pretendemos estruturar uma análise das várias frentes de trabalho que existem no circo, ainda hoje dominado pelo corpo heteronormativo.

Os contextos históricos, sociais e educacionais das pessoas que fazem parte do universo queer também serão problematizados de modo a compreender como se dão os processos de apagamento e silenciamento dessa comunidade. A autora Guacira Lopes Louro, em seu livro “O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade”, no qual levanta pontos estruturantes para um convite reflexivo sobre os modos de produção heteronormativo, apresenta-nos o seguinte: “as coisas se complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com interesse distintos da norma heterossexual. A esses restam poucas alternativas: o silencio, a dissimulação ou a segregação. A produção da heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da homossexualidade. Uma rejeição que se expressa, muitas vezes em homofobia” (Louro, 2022, p. 33).

Essa análise apresentada pela autora traz uma discussão sobre a exclusão de uma sexualidade que foge da “normalidade”.

A razão que me trouxe até aqui foi a procura constante por pares na militância, para que juntos/juntes pudéssemos: romper com o silêncio; sair da solidão que assombra todo e toda artista que está fora do padrão; achar novos caminhos e práticas no picadeiro; dar o protagonismo devido à comunidade queer, dentro e fora do picadeiro. Esses elementos são impulsionadores da necessidade de compreender que o corpo queer está fora do risível pejorativo no qual fomos colocados e colocadas. É preciso romper com o tipo de exposição a qual o corpo queer sempre esteve submetido por não se encaixar naquilo que a sociedade estabelece como “normal”: um corpo cis heteronormativo, um corpo padrão.

O conceito de dentro e fora do padrão foi construído para excluir, para criar uma sociedade separatista, que diz quem pode e quem não pode ocupar o picadeiro. Somos mais complexos e amplos do que uma divisão de dois, macho e fêmea, somos uma soma de fatores, de experiências que dizem das escolhas políticas e sociais nesse mundo.

Esta página, neste primeiro momento, traz e diz de um percurso que segui como artista circense, militante, trabalhando em picadeiros, palcos, ruas, escolas de arte e instituições do terceiro setor, para, finalmente, ter o desejo e a coragem de abrir mais um espaço para a comunidade LGBTQIAPN+ junto com o Circonteúdo. Sinto-me honrado, trago dentro de mim a memória de Erminia Silva, uma das pessoas mais importantes na minha vida. Ela sempre me provocou, conheceu-me quando eu ainda era um jovem, começando a adentrar no universo circense na periferia da grande Recife, Pernambuco. Este texto surge de uma provocação dela.

É sobre esse menine que vou falar agora. Trago uma pequena biografia, que é o perfil de quem está escrevendo. É uma parte da vida narrada dentro de poucas linhas para mostrar como a sexualidade e o gênero podem interferir na construção de mundo de um indivíduo. Quando você é uma pessoa que faz parte da comunidade LGBTQIAPN+, isso te marca desde o seu nascimento. O mundo que vai te receber, muitas vezes, pode ser agressivo, violento, homofóbico, transfóbico, misógino, racista, capacitista e opressor, mas também pode te apresentar muito amor e é, nesse lugar do afeto, que se concentra a energia motora dessa escrita, o amor que fui encontrando em meio ao caos.

A sociedade é muito complexa, tem muitas nuances e subjetividades: uma pessoa queer precisa desenvolver mecanismos de defesa e estratégias para não adoecer; é fundamental construir muros, mesmo inconscientes. Isso, muitas vezes, é um processo doloroso de sobrevivência. Como não nascemos com um manual de instrução, e os pais também não, as experiências vão nos ensinando a cada dia. A vida não será fácil, mas também será desafiadora, apaixonante, angustiante; será uma série de fatores e escolhas. As decisões tomadas ao longo desse percurso dirão da sua existência e resistência nos espaços. Imaginem, então, viver tudo isso sendo uma criança viada que nasce no subúrbio de Recife, no final dos anos 1970. Viver a infância e a adolescência em periferias abandonadas pelas políticas públicas gerou muitos desafios e conflitos.

A chegada ao mundo foi no dia 28 de fevereiro de 1977, a escola de samba Beija-Flor foi a bicampeã do Carnaval do Rio de Janeiro. O país caminhava para o fim da ditadura, estava em meio às lutas pela democracia, que até hoje vive ameaçada por radicais. Nasci um menino mestiço, de pele clara e olhos verdes, classificado como pardo/negro de pele clara segundo o IBGE. Filho de homem branco e uma mulher preta. Sou fruto desse encontro, desse amor, de uma união inter-racial. Cresci em dois mundos: a família branca do pai, que é da periferia de Recife; e a família preta da mãe, que vivia do corte de cana-de-açúcar das usinas da região da cidade de Goiana, interior do estado de Pernambuco. Mas as duas famílias tinham algo em comum: a vida empobrecida por um sistema. Ao apresentar esse contexto socioeconômico, tiro toda a poética. Não existe poesia na miséria em que uma grande massa populacional vive até hoje. A poética da pobreza é construída por pessoas burguesas e elitistas. Vivi um dos retratos clássicos da família pobre nordestina – mãe empregada doméstica e semianalfabeta, e pai que entra para o corpo de bombeiros e depois vira taxista para se salvar um pouco da pobreza, não tendo também completado o que hoje corresponde à educação básica. A oportunidade de dar prosseguimento aos estudos veio para ele alguns anos depois, dentro da própria vida militar. Foi uma realidade dura.

No começo do casamento, os meus pais viviam em um cortiço na cidade do Recife, basicamente um corredor de quartos, do lado de um córrego, onde viviam algumas famílias. Alguns anos depois, quando eu era ainda criança, mudaram-se para Caetés I, uma vila da Cohab no município de Abreu e Lima, PE. Foi no bairro de Caetés I que passei mais de duas décadas da minha vida. Nesse território, abandonado pelas políticas públicas, vivi as primeiras experiências da minha sexualidade e do meu entendimento de ser gay. Ainda adolescente não entendia por que era repreendido todo o tempo pelos meus pais. Ao mesmo tempo, tudo que aparecia na minha frente era motivo para diversão. Mesmo vivendo em situação de pobreza, aproveitei o que pude da minha infância e adolescência.

O bairro de Caetés I era longe da cidade do Recife e a casa em que morávamos era muito pequena para seis pessoas – dois adultos e quatro crianças. Havia uma cozinha pequena, dois quartos pequenos, uma sala pequena e um quintal, com o passar do tempo foi sofrendo algumas reformas, os famosos puxadinhos, para acomodar melhor a família. Naquele bairro, não existia nada além das matas que cercavam o território da vila; a água chegava com escassez. A mata no entorno dessa comunidade era cheia de ruídos e vida, e virou um lugar de sobrevivência, onde grande parte das pessoas iam pegar água na bica, feita pelos próprios moradores, também chegava o caminhão-pipa, distribuindo água, as filas eram enormes. Eu, meu irmão e minha mãe íamos pegar água na bica, descíamos uma ladeira bem alta mata adentro e um mundo verde se apresentava diante dos meus olhos. As minhas duas irmãs mais novas ficavam em casa.

Essa imagem de uma mulher negra carregando três baldes de água com seus dois filhos era comum no Nordeste. Em um país em que a branquitude fez seu pacto silencioso para que a população preta vivesse na miséria, essas fotografias foram criadas de modo a estabelecer um contexto social no qual poucos poderiam ter uma vida cheia de privilégios. A autora Cida Bento discute essa pauta em seu livro “O Pacto da Branquitude” e nos revela este conceito, sobre o comportamento de uma sociedade embranquecida, “esse fenômeno tem um nome, branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a um pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios. É claro que elas competem entre si, mas é uma competição entre segmentos que se consideram iguais. É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros, mas é como se assim fosse” (Bento, 2022, p. 18). Amplio essa fala da autora para as discussões sobre a heteronormatividade que se organiza de forma silenciosa para impedir o desenvolvimento de pessoas que não fazem parte dessa normativa de “iguais”. Com isso, surgem as violências e a raiva sobre tudo que é diferente.

Retornando à narrativa que traduz uma parte do meu caminho na sociedade, posso dizer que ser uma criança viada, um adolescente veado, em uma periferia, não é fácil. As tentativas de abuso sexual são muitas. Além disso, a sociedade sempre encontrava, e ainda encontra, os meios de assediar. Meus ouvidos sempre foram preenchidos e marcados por frases, palavras, adjetivos que estabelecem o lugar de uma pessoa que pertence à comunidade LGBTQIAPN+. Algumas delas são muito comuns; tenho certeza de que vocês já ouviram: veado, bicha, frango (gíria pernambucana para quem é gay). Hoje uso esses adjetivos a meu favor. Apropriei-me delas; essas palavras são meu escudo, pertencem a mim e não ao outro.

Existe um pacto na masculinidade a partir do qual vários homens se sentem no direito de assediar e abusar sexualmente da comunidade LGBTQIAPN+ e das mulheres, de perseguir psicologicamente esses grupos, como se este fosse para eles um lugar legitimado. A escritora Luísa Amaral, em seu livro “Por uma ética queer”, reforça as minhas palavras com a seguinte fala: “Dessa forma, assim como ativistas queers ressignificaram o insulto e o transformaram em uma bandeira de luta, eles se apropriaram de elementos da cultura cis heteronormativa e deram outros sentidos em suas lutas, muitas vezes na forma de paródias e performances”. Esse foi o meu maior trunfo: rir de mim antes que os outros o fizessem. Já estava exercitando a linguagem da palhaçaria sem saber. No fundo, eu já sabia que ser engraçado me salvaria de várias violências, pois uma boa piada relaxa as pessoas. Você deixa de ser uma ameaça.

Posso dizer que as estratégias de sobrevivência, quando se é uma pessoa da comunidade LGBTQIAPN+, são quase infinitas, mas, mesmo assim, a violência chega. Trago aqui também o escritor Samuel Gomes que, em seu livro “Guardei no armário”, apresenta para o leitor a sua biografia e os desafios desde a infância de se perceber como uma criança diferente das outras: “Tomei cuidado, durante toda a minha infância e adolescência, para garantir que ninguém desconfiasse da minha homossexualidade. Por diversas vezes, passei por situações constrangedoras na escola, na igreja e no quintal da minha casa onde morava” (Gomes, 2020, p. 16).

A violência para um ser queer vem de todos os lados. O chamado módulo de sobrevivência fica ligado o tempo todo; é como se vivêssemos sempre prontos para correr, brigar e morrer. Um grande respiro na minha vida foram os grupos de dança dentro da escola, que passaram a existir devido a um professor de biologia que era artista e voluntariamente dava aulas de dança com diferentes ritmos nos fins de semana. Além disso, existiam os circos que chegavam no campo de futebol do bairro.

O circo surge na minha vida como a primeira arte, ainda criança, na periferia de Caetés I, Abreu e Lima-PE. A única linguagem que chegava naquele território abandonado era o circo, desbravando a geografia da pobreza, erguendo a sua lona, muitas das vezes remendada, em um campo de futebol. Acabavam-se os jogos de fim de semana, mas chegavam os risos e os encantamentos daquela arte para uma população à margem da sociedade. Naquela época, no final dos anos 1980, eu nem sonhava em ser artista circense, mas já assistia ali uma linguagem organizada como espetáculo. O circo tem uma importância profunda de despertar no nosso inconsciente o desejo por ser algo para além do nosso território. O circo nos apresenta a beleza e o encanto. As outras referências cênicas se apresentaram ao longo da minha vida anos depois e se somaram para a construção de um repertório diverso do palhaço, artista circense, diretor e bailarino que hoje escreve estas linhas.

Mas é preciso lembrar que a história do circo não inclui diversidade de gênero. Os temas relacionados a gênero e sexualidade não eram uma pauta dentro do universo circense. Por isso a existência dessa página: para colaborar e legitimar as pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ na história do circo, problematizando o desenvolvimento dessa linguagem, trazendo novos questionamentos.

A arte circense estabeleceu fundamentos estéticos de trabalho em que a relação entre homem e mulher se apresenta como a única forma de existência, negando toda a diversidade de gênero existente. Durante a minha trajetória como um artista circense especializado na linguagem do palhaço, em que a heteronormatividade se coloca como única nesse modo de fazer artístico, viver a minha sexualidade era impossível. De certo, temos alguns avanços nos dias de hoje, mas ainda é muito difícil, pois foi construído um imaginário na sociedade em que o palhaço sempre se apaixona pela acrobata. O palhaço é o bobo. Sempre existiu o palhaço, em um corpo normativo, nunca uma palhaça, palhace. Houve um período da produção circense, em que as mulheres eram proibidas de assumir a comicidade. A mulher sempre era colocada no lugar da beleza e flexibilidade; já bichas e gays tinham que fingir ter um corpo heteronormativo. Um homem só assumia o lado feminino na cena quando era para satirizar o papel da mulher ou quando tinha algum cunho homofóbico.

Existem hoje companhias de circo atuantes fora do picadeiro que trazem a diversidade de gênero no seu fazer artístico. Estamos no século XXI, mas, ainda assim, um corpo queer no picadeiro causa muito incômodo, mesmo dentro da própria classe artística. Uma vez fui trabalhar em um circo americano, seguindo a eterna projeção de uma carreira internacional. Como não falava inglês na época, tinha uma timidez que tomava conta de mim. Mas o tempo foi passando e, depois de exatamente um mês, a produtora percebeu que eu não havia paquerado nenhuma mulher. Isso é algo estranho para o sistema heteronormativo, então, ela, por curiosidade, perguntou: Você é gay? Eu, na minha inocente alegria, disse que sim com todas as letras. Achei que ela fosse me indicar alguns bares, supondo que estava em um país que se declara de primeiro mundo. Aí o comentário dela foi o seguinte: “Não fala para ninguém. O dono do circo não gosta. Ano passado, um menino que fazia patinação no gelo foi expulso do camarim. Tinha que trocar de roupa na costureira”. Isso me marcou. O interesse de aprender a língua se perdeu e ainda bem que voltei antes do contrato acabar para não presenciar outra reação homofóbica.

A minha formação circense foi dentro da Escola Pernambucana de Circo, um projeto social que tem um trabalho de extrema relevância na cidade do Recife, atuando com jovens periféricos. Ali começou, de forma prática, a busca por me tornar um artista profissional, mas as escolas de circo não estão fora de uma discussão tão importante, quando se trata de diversidade.

Os espaços de formação da área deveriam ter uma disciplina obrigatória, intitulada: As escolas de circo: gênero e diversidade sexual, para o processo de aprendizado do artista circense. O circo, essa linguagem das artes cênicas, tinha, e em certa medida ainda tem, um modo de formação dos seus artistas muito particular: o ensino familiar, passado de geração em geração ou para pessoas que entravam ou fugiam com o circo e, na convivência dentro desse espaço, iam aprendendo os modos de produção circense. Uma arte profissional, que, em seu formato itinerante, foi desenvolvendo um modo de aprendizagem interno: aprendia as técnicas circenses quem estava trabalhando no picadeiro, viajando de cidade em cidade. O circo era a escola, o espaço de formação. Esse modo de ensinar durou muito tempo como uma única forma de disseminação do conhecimento circense, um ensino na prática e oral no picadeiro.

O circo chega na América Latina no final do século XVIII e, durante o século XIX, como cita Ermínia Silva, os artistas circenses “percorrem vários países antes de passar a viver como nômades preferencialmente em um deles. E, mesmo quando isso ocorria, as turnês eram frequentes, possibilitando trocas de experiencias. Rio de janeiro e Buenos Aires eram as principais cidades do período a receber constantemente trupes estrangeiras. Entretanto, cidades como Porto Alegre, São Paulo, Montevidéu, Assunção e Lima também faziam parte da rota de artistas, de um modo geral, e dos circenses” (Silva, 2007, p. 54).

A citação acima evidencia que a vida nômade era o que possibilitava uma grande troca de experiência entre os circenses antes de começarem a se constituir os espaços fixos de ensino, como as escolas profissionalizantes de circo e as escolas de circo social. A diminuição dos territórios para subir as lonas, as mudanças econômicas, bem como a chegada da televisão e de outros espaços e territórios para o encontro com essa arte provocaram os circenses a revisitar e encontrar outros modos de produção, como se fixar em espaços ao invés de circular pelo Brasil de forma nômade. Foi nesse momento que surgiram as escolas de circo, principalmente nos estados de são Paulo e Rio de Janeiro.

O surgimento das escolas de circo no Brasil gerou muita polêmica no seu início, pois muitos circenses eram contra. Eles acreditavam que esse modo de fazer artístico tinha como lugar de aprendizagem o seu próprio espaço itinerante, o circo. Mas o surgimento dessas escolas só ampliou a difusão dessa linguagem no território nacional. Por outro lado, o mesmo pensamento heteronormativo que existia no picadeiro foi transportado para a sala de aula e continuou a prevalecer como a única forma de entender os corpos.

Um olhar para a diversidade de gênero só começa a surgir realmente quando aparecem as escolas de circo social, que têm fundamentos bem diferentes das escolas técnicas profissionalizantes de circo. O acolhimento da população em vulnerabilidade socioeconômica é o foco. O circo social já surge com o desejo de construir uma sociedade mais igualitária e, dentro disso, o foco de aprendizagem não é só a técnica circense. Existe uma diversidade de conteúdo. Existem outras subjetividades dentro do processo pedagógico do indivíduo.

Mas, ainda assim, as escolas de circo, em sua grande maioria, não têm disciplinas que tratam de gênero e sexualidade. Um corpo queer também é uma estética, é uma forma de viver e olhar o mundo. Temos que levar para o picadeiro aquilo que somos, nossas existências. O picadeiro é um lugar de produção de arte e estética. A diversidade tem que chegar no picadeiro; não podemos ficar presos a uma única narrativa, uma vez que nem tudo é cinza. Precisamos do lilás, rosa, amarelo e preto, etc. no mesmo espaço de aprendizagem.

Hoje o circo é uma linguagem cênica e tem espaços de formação em todo território nacional. As escolas precisam ampliar as disciplinas para além da técnica. Um/a artista é um corpo político, mas a política se aprende dentro dos espaços de formação comprometidos com a diversidade. O entretimento da arte circense não precisa anular a diversidade e nem o pensamento político de cada ser que pisa no picadeiro.

Guacira Lopes Louro, em seu livro “Um Corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer”, apresenta-nos o seguinte ponto de vista: “queer sempre faz pensar no estranho, no esquisito, no excêntrico. Queer parece ser algo que incomoda, que escapa das definições. O termo fica atenuado quando dito em português. Provavelmente porque deixa escondido a sua história de abjeção. Usado para indicar o que é incomum ou bizarro, o termo em inglês é, também, a expressão pejorativa atribuída a todo sujeito não-heterossexual. Equivaleria a ‘bicha’, ‘veado’, ‘sapatão’. Um insulto que, repetido à exaustão, acabou sendo deslocado desse local desprezível, foi revertido e assumido, afirmativamente, por militantes e estudiosos. Ao se autodenominarem queer, eles e elas reiteraram sua disposição de viver a diferença ou viver na diferença. Foram e são homens e mulheres que recusam a normalização e a integração condescendente” (Lopes, 2018, p.83).

Não podemos nos esquecer que as palavras de Lopes sintetizam o aspecto político imbricado no ato de assumir-se como corpo queer. Isso vale para as reflexões acerca do circo tradicional, dos diversos espaços de formação e dos processos de criação de espetáculos.

Os espetáculos circenses ou números de circo, em sua maioria, trazem as relações heteronormativas como foco das suas narrativas artísticas. É comum assistir a espetáculos em que o palhaço se apaixona pela acrobata. Muitos números de acrobacia que colocam os corpos feminino e masculino em cena sempre têm uma atmosfera de romance, de conquista. A esse cenário tradicional, contrapõe-se um movimento de produção artística de mulheres palhaças, que começa a surgir no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. As pautas étnico-raciais também começam a disputar espaço e alguns artistas da comunidade queer iniciam um movimento de mudança dessas relações heteronormativas da cena, trazendo para o picadeiro mais diversidade, saindo da história única.

A escritora Chimamanda Ngozi, ao problematizar os perigos de um mundo com única história, anulando as diversas narrativas que existem em diferentes lugares do mundo, lança-nos perguntas como: “O que sabemos das outras pessoas?”. Na esteira desse questionamento, vale indagarmos: o que sabemos sobre diversidade sexual e de gênero? O processo criativo do circo precisa ampliar seu olhar estético sobre o seu fazer artístico. Pensar sobre/nas diferentes formas de existir, ampliando a cosmovisão. Temos que nos provocar e ser tocados pelas mudanças de comportamento que surgem o tempo todo. Tenho vivido um processo profundo de letramento racial e de gênero. Isso fez com que eu revisitasse a minha trajetória no universo circense: procurar nas gavetas da minha memória os caminhos estéticos e referências daquilo que entendo sobre o que é a arte da palhaçaria e da direção circense. Como se libertar de referências heteronormativas? Qual o porquê desse oficio, desse trabalho, das escolhas políticas, das escolhas estéticas? Quais os caminhos de produção dessa linguagem? Quais as conexões entre vida e arte circense?

A função do/da diretor/a circense é de olhar profundamente para a beleza que existe no mundo. Quais as pautas relevantes para o público? Quais são as narrativas da contemporaneidade que não têm espaço?

Como um homem gay, oriundo de uma pobreza localizada nas regiões periféricas da grande Recife, tive que ter muita paciência e pensamento criativo para transformar as minhas referências em beleza, as angustias em silêncio e paz, e a raiva em espaços do brincar.

A arte circense é um processo de pesquisa muito profundo, no qual o corpo testa seus limites de forma criativa, surpreendendo quem aprecia esse modo de produção.

Existe uma camada de complexidade para trabalhar e atuar nessa função de diretor/a circense. Cada um/a tem uma maneira e um jeito de dialogar com o mundo, mas a linguagem central em meio a essas diversidades de existências é o Circo. Essa linguagem é o que nos move, é nosso lugar de conversar com o mundo.

A sociedade vai caminhando e trazendo novas narrativas e pautas o tempo todo, portanto, a função do/a artista e diretor/a não pode se desconectar do mundo, das pessoas.

Hoje existe uma revolução muito bonita acontecendo no universo circense, dando luz às pautas de gênero e raciais, colocando em xeque aquilo que se diz por circo.

Por fim, nossa página pretende passar por várias vertentes e espaços de atuação da arte circense, mesmo que isso a faça parecer uma colcha de retalhos. Queremos construir o entendimento de que todas as áreas do circo têm que ter entre seus princípios a diversidade, para que possamos promover uma produção de trabalho mais saudável e igualitária. Ainda estamos longe disso, mas sinto que temos avanços significativos. A página que aqui se propõe é uma parte desses avanços. Seja no picadeiro, no palco, na escola circense, na escrita de artigos, textos ou na dramaturgia, a diversidade tem que estar presente. Chega de uma história única!

A frase “sempre foi assim” não serve mais para os dias de hoje. É no presente que construímos o futuro e quero um futuro com várias cores diferentes, como um arco-íris, um dos símbolos na luta por diversidade na sociedade.

Finalizo essa abertura de caminhos, agradecendo a algumas pessoas e espaços que fazem parte da minha jornada, Zezo de Oliveira (o professor que foi o inicio de tudo), Fatima Pontes (parceira da inquietações circenses), Daniel de Carvalho (novo parceiro querido nessa jornada), Marta Aguiar (uma grande presença minha vida e das inquietações da escrita) Jhoão Junior (meu companheiro e pensador da arte), Doutores da alegria (onde atuo há mais de 20 anos na arte da palhaçaria), Escola Pernambucana de Circo (meu encontro pratico e politico com a linguagem circense) e a grande Ermínia Silva que deixa uma saudade tão grande no meu coração e de todos e todas circense desse pais.

Até o próximo encontro aqui no Circonteúdo.

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