Jules Léotard em Lisboa

No dia 10 de outubro de 1863, a imprensa de Lisboa noticiou o regresso da companhia equestre de Thomas Price. A sua chegada estava prevista para o dia 29 de outubro e o primeiro espetáculo estava programado para o dia seguinte. A imprensa salientava que os artistas que acompanhavam a companhia eram muito bons, sendo muitos deles desconhecidos do público lisboeta. Dentro desse grupo de artistas estava o «celebre voador» Jules Léotard(1).

Jules Léotard nasceu em Toulouse, no dia 1 de agosto de 1838. O pai, Jean Léotard, possuía, desde 1848, um ginásio, com os aparelhos específicos da metodologia de Amorós. Com naturalidade, o jovem Léotard passou a ter acesso ao ginásio, sendo o trapézio fixo o aparelho que lhe despertava maior curiosidade. Foi para escapar a uma aula de piano que o Léotard correu para o trapézio, passando logo para o outro. Sem querer, ele inventou o trapézio volante.

Léotard começou a especializar-se neste aparelho, tendo as suas exibições despertado a atenção de Henri Maîtrejean, discípulo de Amorós e adepto do trapézio fixo. Ele era um observador de jovens artistas e tentava recrutá-los para os grandes circos de Paris. Henri Maîtrejean ficou fascinado com o jovem talento, tendo solicitado ao seu diretor, Louis Dejean, que o viesse observar. Louis Dejean foi considerado o grande reformador do circo francês. Em 1841 construiu o Cirque des Champs Élysées(2) e em 1852, o Cirque Napoléon(3).

Léotard acabou por ser contratado, tendo chegado a Paris no dia 31 de julho de 1859, para atuar no Cirque des Champs Élysées. Contudo, uma febre tifoide impediu a sua estreia, tendo regressado a Toulouse para recuperar. Três meses depois, no dia 12 de novembro, Léotard estreou-se, mas desta vez, no Cirque Napoléon.

O trapezista utilizou o pai como seu assistente no espetáculo e, também, como empresário. O seu desempenho no trapézio volante foi um sucesso enorme. Paris ficou rendida a um jovem talento, uma vez que trouxe um espetáculo inovador, pois o público estava habituado a ver os exercícios no trapézio fixo. No seu espetáculo, Léotard voava de um trapézio para o outro, imprimindo uma mobilidade inédita. Chegava a utilizar três trapézios com o seu pai a ajudar.

Léotard tornou-se famoso em França, sendo fotografado pelos melhores fotógrafos franceses. A sua imagem foi divulgada amplamente. Contudo, as fotografias em pose mais desnudada foram rapidamente confiscadas pela polícia(4).

Antes de chegar a Portugal, Léotard já tinha atuado nas principais capitais da Europa, onde recebeu cachês elevadíssimos.

A estreia de Léotard no Circo de Price só aconteceu no dia 16 de novembro de 1863. Ao longo dos dias anteriores, os periódicos da capital foram criando grande expectativa relativa à estreia do artista, referindo-se ao facto de ele ser o inventor dos três trapézios. Durante esse período, começou a haver grande procura de bilhetes de camarotes e de cadeiras.

No dia da estreia do trapezista, o Circo de Price teve, como era esperada, uma grande afluência de público, esgotando o recinto. Dizia-se que se o circo tivesse mais lugares disponíveis estes eram rapidamente vendidos. Era a reputação de Léotard que trazia tantas pessoas ao circo.

O fenómeno do trapézio apresentou-se perante um público cheio de expectativas. Apesar de Léotard ser o inventor dos três trapézios, o público lisboeta já tinha visto o trapezista Hubert Mears a realizar este tipo de exercícios(5).

O resultado da atuação de Léotard foi para além do que se esperava, sendo considerada incrível. O artista voava de um trapézio para o outro com firmeza, sangue frio e elegância. No ar, realizava diversas piruetas até chegar ao trapézio seguinte. Todos os seus arrojados movimentos foram alvo de repetidos aplausos. No final da sua atuação, o trapezista foi chamado por diversas vezes à arena, para ser vitoriado pelo público(6).

Os espetáculos seguintes de Léotard foram de idêntico sucesso, estando o Circo de Price sempre repleto de público. Lisboa reconhecia o valor do artista. Dizia-se que o célebre funâmbulo Blondin tinha sido muito admirado e aplaudido em Lisboa, mas Léotard excedia este excelente artista.

Léotard, para não tornar a sua atuação repetitiva, revelou que no dia 28 de novembro iria realizar, pela primeira vez, vários exercícios de grande dificuldade e que exigiam grande precisão. Era uma forma de continuar a atrair mais público ao circo. Ao longo do mês de dezembro, Léotard decidiu informar o público que o espetáculo seguinte teria a apresentação de novos exercícios. Para a imprensa, que tinha conhecimento do seu sucesso na Europa, a admiração por Léotard crescia de dia para dia, atendendo ao grau de dificuldade que impunha aos novos exercícios que apresentava. Num desses, Léotard colocou no segundo trapézio umas argolas de corda, em forma de triângulo, com o espaço para a colocação das mãos. O seu objetivo era passar do primeiro trapézio para o segundo, agarrando-se às argolas. Era um exercício muito arriscado, onde o público ficava admirado com a execução e aplaudia calorosamente. Léotard realizava também saltos mortais durante a transição entre trapézios, bem como piruetas. Para além deste aspeto artístico, a impressa referia que o artista era uma pessoa modesta, com uma educação esmerada e de um trato muito afável(7).

No dia 12 de dezembro, esteve presente no circo o infante D. Augusto. O anúncio da sua presença trouxe mais público ao espetáculo. Léotard realizou novos exercícios, que foram considerados mais arrojados em relação aos que já tinha apresentado anteriormente. O periódico “Jornal do Porto” considerava que a presença do trapezista veio evitar a decadência do Circo de Price. Apesar de o público lisboeta ter muita consideração por Thomas Price, este raramente contratava artistas de grande categoria e os programas dos espetáculos apresentavam representações já vistas por diversas vezes(8).

No dia 22 de dezembro, o espetáculo no Circo de Price era em benefício do trapezista. O espetáculo estava previsto para se iniciar às oito da noite e Léotard iria realizar novos exercícios, de extraordinária dificuldade(9).

O Circo de Price ficou rapidamente esgotado. Dizia-se que, nesse dia, o circo tinha mais de quatro mil espetadores para verem Léotard. A família real esteve também presente no evento, mas apenas durante o momento em que Léotard atuou.

A sua atuação impressionou bastante os presentes e a própria imprensa. Assim dizia o periódico “O Algarviense”:

«Nós, homens encurtados por uma educação afeminada, que não nos permitte fazer uso das nossas pernas senão para darmos pequenos passeios, e dos nossos braços, para conduzirmos uma leve bengala; tirarmos o nosso chapeo com mais ou menos graça, não pudemos comprehender como um homem possa atravessar tres trapesios distantes, em diversas posições de gymnastica, que se deixa cair uma, duas, tres e mais vezes d’uma grande altura, e que depois d’uma hora de fadigas, apresente disposição para recomeçar, como se nada tivesse feito! Nós, que para irmos de nossa casa para o theatro, temos necessidade descançar n’algum café, ou em qualquer outro logar, para attenuarmos as nossas fadigas, não sabemos como este homem pode fazer o que faz, que nos faz lembrar a raça primitiva, para poder resistir a tão difficeis quanto importunos trabalhos»(10).

Como prometido, Léotard apresentou diversos exercícios com graus de dificuldade bastante elevados. Desde o primeiro exercício até à conclusão dos seus trabalhos foi sempre muito aplaudido e, por diversas vezes, foi chamado à arena. Era admirável a sua formação em ginástica.

No final de dezembro, os periódicos começaram a noticiar que Léotard estava quase de partida e que iria ainda realizar mais alguns espetáculos. Era uma forma de alertar as pessoas para não perderam a oportunidade de verem o afamado trapezista(11).

No dia 3 de janeiro de 1864, Léotard teve uma queda durante a sua atuação. Apesar do aparato da situação, o trapezista não sofreu ferimentos(12).

No dia 8, o periódico “A Nação” dizia que Léotard iria dar as suas duas últimas representações nos espetáculos que se realizavam no dia seguinte. Contudo, Léotard atuou ainda nos dias 11 e 12.

No seu último espetáculo, o trapezista resolveu beneficiar o Albergue dos Inválidos do Trabalho. Foi uma decisão muito generosa, que deixou marcas muito positivas na população lisboeta(13). Por isso, no dia do espetáculo, o Circo de Price teve uma grande enchente, com muitas pessoas da primeira sociedade lisboeta(14). Estiveram presentes o rei D. Fernando e o infante D. Augusto, que assistiram a todo o espetáculo.

Léotard aproveitou para informar que iria partir brevemente. Por isso, aproveitou para agradecer ao público lisboeta. O periódico “O Algarviense” publicou o texto do artista. Assim dizia:

«Havendo terminado a minha escriptura com Mr. Thomas Price, e aproximando-se o dia em que devo afastar-me de Lisboa, diz-me o coração que me despeça de vós.
A minha carreira de artista há recordações que nunca se apagarão do meu espirito, entre ellas ficam a dos rapidos dias que passei entre vós, recebendo os vossos applausos sinceros e as acclamações festivas da vossa illustrada imprensa.
Ao dar-vos o adeus de despedida pressinto as saudades que me hão de acompanhar separando-me d’esta symphatica e formosissima cidade, onde tudo é encantador, desde a affabilidade de seus habitantes até às galas do seu esplendido céo.
Recebei com estas palavras os protestos de gratidão eterna, já que os meus olhos humedecidos não podem traduzir a todos os sentimentos que soubestes gravar na minha alma»(15).

Nesse dia, Léotard foi chamado onze vezes à arena, tendo sido bastante aplaudido. À saída do circo aguardavam o trapezista a banda dos ex-alunos cegos da Casa Pia e um grande número de pessoas, incluindo os membros da comissão do Albergue dos Inválidos do Trabalho, que acompanharam o artista até ao Hotel de l’Europe. À chegada ao local, Léotard gratificou os músicos e agradeceu às pessoas que o acompanharam.

Léotard partiu de Lisboa no dia 15 de janeiro, com destino a Itália, para atuar em Turim. Após a sua partida, o Circo de Price deixou de apresentar as enchentes que tinha, apesar de Thomas Price ter contratado a funâmbula Madame Dellevanti, que era considerada uma excelente artista e que realizava, na corda de arame, a travessia de toda a extensão do circo(16).

A presença de Léotard em Lisboa caraterizou-se por grandes momentos vividos no Circo de Price, onde a população teve a oportunidade de ver em ação o melhor trapezista do momento. Léotard não voltou a atuar em Portugal.

O trapezista criou um uniforme de ginástica, que facilitava a realização dos movimentos e que salientava o corpo do ginasta. Esse uniforme passou a denominar-se de Léotard e vulgarizou-se no mundo da ginástica e do circo.

Em 1867, George Leybourne criou a canção “Daring Young Man on the Flying Trapeze”, em homenagem a Léotard.)

O trapezista faleceu no dia 16 de agosto de 1870, vítima de varíola, quando estava a atuar em Espanha(17).

(1) O Algarviense, n.º 29, 10 de outubro de 1863.

(2) Este circo mudou duas vezes de nome. Em 1853 passou a chamar-se Cirque de l’Impératrice e em 1870 mudou para Cirque d’Été. Foi destruído em 1898.

(3) Em 1870, este circo passou a chamar-se Cirque d’Hiver.

(4) Léotard, Jules & Herpe, Noël (2010). Pirouettes et Collants Blanches. Mémoires de Jules Léotard, le premier des trapezistes (1860). Mercure de France, pp. 8-13.

(5) O Algarviense, n.º 40, 18 de novembro de 1863.

(6) A Nação, n.º 4775, 18 de novembro de 1863.

(7) O Algarviense, n.º 46, 12 de dezembro de 1863.

(8) Jornal do Porto, n.º 285, 15 de dezembro de 1863.

(9) A Nação, n.º 4803, 22 de dezembro de 1863.

(10) O Algarviense, n.º 50, 30 de dezembro de 1863.

(11) A Nação, n.º 4807, 29 de dezembro de 1863.

(12) Jornal do Porto, n.º 3, 5 de janeiro de 1864.

(13) Jornal do Porto, n.º 8, 12 de janeiro de 1864.

(14) O Algarviense, n.º 54, 16 de janeiro de 1864.

(15) O Algarviense, n.º 54, 16 de janeiro de 1864.

(16) O Algarviense, n.º 55, 20 de janeiro de 1864.

(17) Algumas fontes indicam que a cólera pode ter sido a causa da sua morte.

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