O trabalho circense infantil na legislação brasileira – primeira metade do século XX

[1]. Este texto foi produzido em 1996 para o curso de pós-gradução – doutorado – IFCH-Unicamp, incorporado, alterado, revisado quando da publicação da dissertação de mestrado em livro sob o título Respeitável público…o circo em cena. Rio de janeiro: Funarte, 2009, junto com Luís Alberto de Abreu. O livro está disponível on line no site da Funarte.

Quando da análise das fontes na produção de minha dissertação de mestrado (1996), uma informação constante no livro de Dirce (Tangará) Militello chamou atenção:

Alguns artistas dizem, que o desinteresse pela profissão circense, começou quando (em 1920), foi decretada uma lei proibindo a participação de menores.
Mas, quando nós ainda éramos bem pequenos e já trabalhávamos, toda a família, nunca fomos proibidos de trabalhar. Meu pai escreveu uma carta para o então presidente Getúlio Vargas, pedindo-lhe uma atenção especial. Ele dizia na carta que era nosso pai e nosso mestre e que estava sempre presente em nosso trabalho, em todos os nossos movimentos e que para se conseguir executar um bom número, era necessário aprender quando criança, e que a nossa troupe sem os componentes menores, não teria nenhum sentido.
Sei que meu pai recebeu uma licença especial para que pudéssemos trabalhar, e em todos os circos que íamos, nunca voltamos sem nos apresentar.(2)

A que lei Dirce se referia? Já que este tema não foi desenvolvido na dissertação de mestrado (pelo menos não em termos de uma discussão sobre legislação), pois nenhum entrevistado e, em nenhum outro livro de memorialista, foi mencionado uma “lei proibindo a participação de menores” para trabalhar em circo.

Não foram apenas as fontes orais – os entrevistados circenses – que não mencionaram tal proibição, os registros escritos pesquisados – jornais e revistas do período, bibliografia consultada sobre o circo – também não a menciona.

Mas tínhamos uma informação importante sobre uma lei, que de alguma forma, opunha-se à análise desenvolvida em minha dissertação sobre a importância da criança no circo-família, pois naquele trabalho (que será exposto posteriormente com mais detalhes, quando da discussão da lei), tivemos como uma das suas conclusões que a criança representava a continuidade da “tradição”, na medida em que seria a portadora do saber presente na memória familiar.

Dirce afirmava que “alguns artistas dizem” que a lei trouxe problema, a ponto de causar “desinteresse” pela profissão circense. Mas, afirma também, que nunca foram proibidos de trabalhar porque o pai teria tido uma autorização especial por parte de Getúlio Vargas. Por um lado a lei, num primeiro momento parece ter trazido problema, mas por outro, tendo em vista os “silêncios” das fontes orais e escritas, na prática parece não ter trazido obstáculos que impedissem que a criança continuasse a trabalhar e ser a portadora dos saberes e práticas.

Então, por quê a lei? Afinal que lei era esta?

A partir da informação de Dirce, resolvi iniciar uma pesquisa num campo “desconhecido” por mim – o do Direito e, em particular, o do Direito do Trabalho. Foi necessário inteirar-me sobre a legislação que regulamentava o trabalho do menor da primeira metade do século XX e, a partir dela, tentar reconstruir o contexto no qual a lei surgiu e a inclusão do “mundo circense” sob o seu foco. Além disso, tive como intenção analisar a legislação através do exame dos sujeitos alvo, envolvidos no processo, ou seja, mostrar o modo como os que viviam “debaixo da lona” se constituíram e o que isto tinha a ver com a lei, o que, somente através da análise da mesma, não seria possível.

A primeira Constituição Republicana de 1891, não dispunha de nenhum artigo que versasse sobre questões do trabalho, assegurando apenas o livre exercício de qualquer profissão e garantindo a inviolabilidade dos direitos de propriedade, bem como era omissa no que se referia às normas específicas de tutela à infância.

Em meados de 1917 teve início, na Câmara Federal, um debate sobre um projeto de Código de Trabalho, que procurava ordenar e pôr em execução as leis e os projetos de leis já existentes sobre o assunto. No Código de 1917, a idade limite para o trabalho do menor era de 10 anos, sendo considerado maior para o trabalho o indivíduo de 14 anos de idade.

Além da questão do limite de idade e tempo de trabalho, o Código pouco disciplinou sobre os direitos da criança.

É a partir da década de 1920, que a infância passou a ser objeto de discussão jurídica no Brasil. Foram criadas leis que visavam regulamentar o trabalho do menor para absorvê-lo na indústria emergente e leis para punir aqueles que não se enquadravam nas regras sociais, os considerados infratores: “É a partir daí que a palavra ‘menor’ passa ao vocabulário corrente, tornando-se uma categoria classificatória da infância pobre.” (3)

O tratamento realmente jurídico com a criança começou com o Decreto n. 17.943-A – Código do Menor de 1927. E é este Código que nos interessa mais de perto, pois pela primeira vez encontramos na legislação federal uma menção direta ao circo e, em particular, ao trabalho da criança no circo. Esta “descoberta” confirma a informação de Dirce quantos aos “problemas” enfrentados pelas famílias circenses e o trabalho de seus filhos a partir da década de 1920.

Em 01.12.1926 o Congresso Nacional, através do Decreto nº. 5.083, instituiu o Código de Menores. Em 12.10.1927, através do Decreto nº. 17.943-A, o Presidente da República constituiu o Código de Menores, consolidando as leis de assistência e proteção aos menores. O Capítulo deste Código, que nos interessa em particular, é aquele que irá regular e legislar o trabalho do menor, que transcrevo abaixo com a grafia da época:

Capítulo IX
Do Trabalho dos Menores
Art. 101 – É prohibido em todo território da República o trabalho aos menores de 12 annos.
Art. 102 – Igualmente não se pode ocupar a maiores dessa idade que contem menos de 14 annos, e que não tenham completado sua instrução primária. Todavia a autoridade competente poderá autorizar o trabalho destes, quando o considere indispensável para a subsistência dos mesmos ou de seus paes, ou irmãos, contanto que recebam a instrução escolar que lhe seja possível.
Art. 104 – São prohibidos aos menores de 18 annos os trabalhos perigosos à saúde, à vida, à moralidade, excessivamente e fatigantes ou que excedam suas forças.
Art. 111 – Os menores do sexo masculino de menos de 16 annos e os do feminino de menos de 18, não podem ser empregados como actores figurantes, et, nas representações públicas dadas em theatros e outras casas de diversão de qualquer gênero, sob pena de multa de 1:000$ a 3:000$000. Também sob as mesmas penas, é interdicto a taes menores todo trabalho em estabelecimentos theatraes ou análogos, inclusive a venda de quaesquer objectos.
Parágrafo 1º. – Todavia, a autoridade competente pode, excepcionalmente autorizar o emprego de um ou vários menores nos theatros para representação de determinadas peças.
Parágrafo 2º. – Nos cafés-concertos e cabarets a prohibição vae até à maioridade.
Art. 113 – Todo indivíduo que fizer executar por menores de idade inferior a 16 annos exercícios de força, perigosos ou de deslocação; todos indivíduos que não o pae ou a mãe, o qual pratique as profissões de acrobata, saltimbanco, gymnasta, mostrador de animaes ou director de circo ou análogas, que empregar em suas representações menores de idade inferior a 16 annos; será punido com a pena de multa de 100$ a 1:000$ e prisão cellular de três mezes ou um ano.
Parágrafo único – A mesma pena e mais a suspensão do pátrio poder é applicavel ao pae ou mãe que, exercendo as profissões acima designadas, empregue nas representações filhos menores de 12 annos.
Art. 114 – O pae, a mãe, o tutor ou patrão que tenha autoridade sobre um menor ou o tenha à sua guarda, ou aos seus cuidados e que dê, gratuitamente ou por dinheiro seu filho, pupillo, aprendiz ou subordinado, de menos de 16 annos, a indivíduos que exerça qualquer das profissões acima especificadas, ou que os colloque sob a direcção de vagabundos, pessoas sem ocupação ou meio de vida, ou que vivam na mendicidade, serão punidos com a pena de multa de 50$ a 500$, e prisão cellular de dez a trinta dias.
Parágrafo único – A mesma pena será applicada aos intermediários ou agentes, que entregarem ou fizerem entregar os ditos menores, e a quem quer que induza menores de idade inferior a 16 annos a deixarem o domicilio de seus paes ou tutores ou guardas, para seguirem indivíduos dos acima mencionados.
Art. 115 – Os menores que houverem de tomar parte em espectáculos theatraes, sejam ou não de companhias infantis, ou em companhias equestres, de acrobacia, prestidigitação, ou semelhantes, só serão admittidos mediante as seguintes condições:
I, os emprezários ou responsáveis pelo espectáculo apresentarão à autoridade fiscalizadora autorização em divida forma dos paes ou representantes legaes dos menores para que estes tomem parte nas representações, e exporão em memorial as condições e o tempo de trabalho diários dos menores;
II, os menores não trabalharão em mais de um espectáculo por dia, salvo permissão especial, e a autoridade fiscalizadora pode exigir a alteração do tempo e modo de serviço, si a julgar conveniente à saúde dos menores, negando a licença, si não for acceita a alteração indicada, e cassando-a no caso de não ser exactamente observada;
III, é lícito à autoridade fiscalizadora exigir que os menores sejam submettidos a exame médico de capacidade physica, e fiscalizar si a alimentação e o alojamento delles são conforme às exigências de hygiene, assim como verificar si elles são pagos regularmente pela forma convencionada com seus paes ou representantes legaes;
IV, os menores não tomarão parte em peças, actos ou scenas que possam offender o seu pudor ou a sua moralidade, ou despertar nelles instinctos maos ou doentios, ou que não sejam adequados à sua idade ou ao seu desenvolvimento physico e intellectual;
V, não andarão em companhia de gente viciosa ou de má vida. (4)  (meus destaques)

No dizer de Ângela Maria de C. Gomes, havia consenso na necessidade de legislar e regulamentar o trabalho do menor. Mas não deixou de ter, também, segundo Ricardo T. M. da Fonseca

(…) forte resistência, repetindo-se aqui, o mesmo conflito que se desenrolava na Europa no século XIX. Levantaram-se contra a norma em apreço, várias vozes que reverberavam os velhos argumentos liberais, reforçados pôr conceitos de peso, como a manutenção do pátrio poder, concernentemente à condução dos destinos dos filhos e da necessidade de preservação do baixo custo da mão-de-obra. (5)

Consenso ou resistência, a bibliografia pesquisada refere-se sempre às reações dos grupos sociais diretamente ligados à emergência da indústria, ou seja, sob a ótica de quem estava envolvido com o espaço social do trabalho regulado pelo capital – governo e empresários.

Entretanto, nem todos os grupos sociais estavam exclusivamente submetidos à esta lógica. Os circenses do período, encontravam-se organizados sob a forma do circo-família, no qual se desenvolvia uma organização do trabalho e um processo de socialização/formação/aprendizagem, que não podia ser estudado sob a ótica exclusiva do movimento do capital, além do fato de que a criança nesta relação era quem portaria, para as gerações seguintes, os saberes e práticas que mantinham a singularidade deste grupo. Assim, tanto a organização do trabalho circense, quanto o papel que a criança representava para este agrupamento social, tem que ser analisado considerando-se a sua especificidade.

A aprovação do Código e o Capítulo que legislou o trabalho do menor, parece ter respondido a algumas expectativas da sociedade em relação a esta questão. Porém, com relação à regulamentação do trabalho do menor entregue “às ditas profissões de acrobatas, ginastas, saltimbanco, mostrador de animais ou diretor de circo”, a legislação acima refletia que tipos de expectativas da sociedade frente aos circenses? Havia uma visão de que “tais profissionais” não eram trabalhadores ou empresários portadores de uma “moralidade condizente” com os preceitos da época? Ou seja, os menores que trabalhavam em circos eram vistos como submetidos à tutela de “direção de vagabundos” (Art. 114), ou mesmo viviam em companhia de “gente viciosa ou de má vida” (Art.115-V)? Como ficavam estes grupos perante a lei? Caberia a eles romper seu modo particular de constituição, por que a lei era universal e imparcial, isto é, romperiam o seu modo de vida por quê a lei refletiria o “pensamento” de uma sociedade, e deste modo teriam que se adequar a ela? Se por um lado a lei formalmente refletia o “pensamento” da sociedade, por outro como na prática era realmente realizada a fiscalização, ou seja, a lei era realmente aplicada jurídica e judicialmente?

Para avançarmos na possibilidade de compreender parte das questões levantadas acima, torna-se necessário uma exposição mais específica sobre o circense da época, e para tanto faremos uma apresentação da formação do circo-família, sua relação familiar e de trabalho, mas procurando, ao mesmo tempo, desenvolver uma análise do significado destes artigos do Código.


[1]. A dissertação de mestrado foi publicada em livro junto com Luís Alberto de Abreu sob o título Respeitável público… o circo em cena. Rio de Janeiro: Funarte, 2009. O livro está disponível on line no site da Funarte.
[2]. MILITELLO, Dirce Tangará. Picadeiro . São Paulo: Guarida Produções Artísticas, 1978.p. 69.
[3]. “Dados Gerais sobre a situação da Criança e da Exploração de seu trabalho no Brasil – A Criança na legislação brasileira”. Publicação da primeira sistematização do trabalho de investigação desenvolvido pelo Grupo de Trabalho que aprovou o Tribunal Nacional contra o Trabalho Infantil, constituído em 15.06.1995. Brasília: Palácio do Buriti, 11.11.1995. mimeo.
[4]. Colleção das Leis – República dos Estados Unidos do Brasil de 1927 – Volumes 1 e 2. Actos do Poder Executivo. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, p. 491.
[5]. FONSECA, Ricardo T. M. DA – op. cit., p. 36.

PARA LEITURA DESTE TEXTO NA ÍNTEGRA VER ANEXO ABAIXO EM PDF

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