Não sei bem como o circo entrou em minha vida, mas começou a fazer parte dela muito antes que eu pensasse em pesquisar a arte circense e muito depois do tempo em que eu assistia aos espetáculos, nas arquibancadas sob lonas de tamanhos diversos. Muitas vezes vi leões, cavalos, zebras, pôneis, cachorros, elefantes e outros animais nesses circos. Leões sempre foram a grande atração e a tensão crescia quando seu rugido parecia bater contra as paredes de pano do circo, evidenciando a fragilidade do domador diante de animais com aparência de ferozes. Mas era algo distante, pela separação entre o público e a grande jaula montada diante da platéia.
Porém, o que sempre me impressionou foi o paradoxo entre o tamanho e a leveza com que esses os elefantes se moviam no picadeiro, sua quase delicadeza.
Nessa época, jamais pensei em como esses animais viviam no circo. O que eu via durante o espetáculo era a beleza das suas apresentações no picadeiro, e isso me encantava. Hoje, acompanhando os debates sobre a presença de animais no circo observo a legislação, a presença das Ongs que se intitulam defensoras de seus direitos, as divergências de opinião entre os próprios circenses, os debates sobre a forma de conduzir, domar e cuidar desses animais. E até o espaço que os artistas disputam com eles nos bastidores da vida circense.
O relato que se segue foi colhido de uma entrevista, entre as diversas que coleciono sobre o circo, pelo simples prazer de ouvir histórias, pela mera satisfação em conhecer a vida e a arte circenses por meio de narrativas e seus protagonistas, não como jornalista, mas como contadora de histórias da vida real. Conheci Beatriz Bertolozzi durante um curso de italiano e, como sempre, não sei bem por que a sua relação com o circo me foi revelada. Foi dela que ouvi a história que narro a seguir, a qual me remete a passagens do livro Água para Elefantes, de Sara Gruhen.
Memória de elefante
Ela não era circense, não nasceu sob a lona e nem sequer aprendeu a arte antes daquela noite num pub, em São Paulo, nos anos 1980. Tampouco era cantora ou bailarina. Tudo aconteceu simplesmente porque Beatriz era uma jovem branca, loira e seus olhos brilhavam azuis. O convite veio de um circo mexicano. Ela desconfiou, foi até o consulado conferir, informou-se, mas já havia sido conquistada pela idéia de acompanhar um circo para fora do Brasil por oito meses. Era um circo “grande”. Não sei se acertou, mas ela o comparou em tamanho ao Circo Garcia. A estrutura do circo mexicano nada deixava a desejar aos grandes circos da época em que no Brasil o circo-escola começava a ganhar espaço e o fazer circense passava por uma transformação vista por alguns como parte do processo de extinção do modo de vida tradicional do circense no país e na visão de outros, como a mudança necessária para a adaptação e sobrevivência do circo.
Beatriz acompanhou a equipe do tradicional circo mexicano Francisco Atayde, que itinerava pelo México, em 1986. Em seis meses, passaram por quarenta e nove cidades, de Cancúm aos pueblitos onde nem hotel havia. O circo de grande porte e transportava todo seu material – lona, madeiras, estruturas de ferro – em três ou quatro caminhões gigantes além daqueles que levava os animais e suas jaulas e de outro cuja carroceria era o próprio camarim dos artistas, O Atayde abrigava as famílias circenses em traillers imensos. Reunia muitos artistas contratados, e seriam todos de origem mexicana, não fossem os dois palhaços chilenos e um casal de norte-americanos, Audrey e Gim Gardner, ela trapezista, ele domador de animais.
Beatriz estava entre as moças brasileiras e inglesas que deveriam dançar, como uma espécie de pano de fundo no espetáculo. Era um grupo de dez dançarinas que representavam um atração, loiras e brancas, além de altas e com corpo esguio, num país de descendentes de maias, astecas ou outras civilizações, que aquela altura eram todos morenos, em sua maioria de baixa estatura. Mas a moça se enganara se pensava que isso seria fácil. Logo nos primeiros dias, o treinamento para a manutenção de um corpo ao nível do espetáculo daquele circo não era qualquer coisa. E o comando ficava por conta de uma coreógrafa polonesa. Só depois Beatriz começaria a aprender a dançar. E teria a certeza de que “o circo é uma coisa fantástica, porque ele vai entrando no sangue mesmo, não tem como você resistir a isso”!
Embora nunca tenha sido considerada uma entre os circenses (como as outras dançarinas, ela dormia em hotéis e não podia “misturar-se” aos artistas mexicanos), no Circo Atayde, Beatriz acabou experimentando um pouco de tudo, de partner em números de chicote e fogo a montar um elefante…
Uranos…
Ele se chamava Uranos… E é Beatriz quem conta:
“Aí, comecei a montar elefante, que é bem fácil, viu? Não parece, mas é. E o elefante é um bicho super dócil. Você sobe e monta, aí ele dá a volta e você não pode segurar; tem que ficar fazendo aquele gestual todo, circense, é muito engraçado… Porque nesse outro mundo em que a gente vive, você vai dizer: ‘Mas que coisa brega!’ Sim, mas no mundo circense não é… E quando você está lá dentro, sua visão toda muda.”
Beatriz se saíra bem no número com elefantes, ela tinha carinho pelos animais do circo, mas também era muito crítica, além de odiar ver “passarinho preso em gaiola”. Com essa visão, passou a soltar os pastores alemães brancos durante uma hora por dia para que andassem pelo terreno em que estava o circo, sob seus cuidados. Mas com os animais de grande porte era praticamente impossível… Eles só saíam da jaula na hora do espetáculo. E Beatriz passou a se incomodar com tudo… Via as orelhas dos elefantes constantemente machucadas na parte onde eles eram puxados com um grande gancho.
E também havia Samira, uma moça brasileira que gostava de cutucar Uranos… Era só passar pelo elefante, que dava um cutucãozinho… Beatriz sempre chamava sua atenção por provocar o animal aprisionado. Mas Samira dava de ombros e novo cutucão!
Além de se incomodar com os animais, Beatriz passou também a criticar os donos do circo por pagarem apenas 1000 pesos por semana aos meninos dos povoados que faziam todo o trabalho pesado de limpar jaulas, dar banho e tratar dos animais, enquanto as dançarinas ganhavam 23 mil pesos por semana. Por essa ousadia, a moça foi suspensa do espetáculo por três noites.
E tudo aconteceu na primeira noite em que esteve ausente. O espetáculo durava cerca de uma hora e meia, Beatriz não quis ficar, saiu e entrou num cinema, onde estreava o filme El Testigo, ou A Testemunha, com Harrison Ford. Mas quem seria chamada para substituí-la no número do elefante naquela noite? Ninguém menos que Samira. Ela mesmo, a moça que todos os dias dava seu cutucão em Uranos, o elefante. Ela talvez não soubesse nada sobre “memória de elefante”. Por isso, arriscou-se…
A cena que se seguiu à entrada de Uranos no picadeiro foi rápida, porém uma atração que não fazia parte do spript daquele espetáculo. Poderia facilmente ser captada pela câmera nas mãos de um diretor sensível, mas aquilo não era cinema, era uma história real, no picadeiro de um circo, envolvendo uma moça e um elefante.
Uranos entrou no picadeiro sob os olhares de uma platéia em noite de casa cheia. Um garoto puxava o grande animal usando o gancho pontudo, chamado pincho, fincado atrás de sua orelha. Quando no microfone o mestre de cerimônias anunciou o nome da dançarina Samira para montar o elefante, um bom observador teria notado o leve virar da cabeça de Uranos e seu olhar fixo na moça que se dirigia com passos graciosos para o picadeiro. Numa fração de segundos…
E ninguém precisou apressar o animal. Tão logo Samira aproximou-se, o elefante se abaixou delicadamente, esperando que ela o montasse, e tão gentilmente como havia permitido que ela subisse em seu dorso, Uranos levantou seu pesado corpo do chão, suspendendo-a. Teria sido um número comum com um elefante e uma moça loira em entre suas grandes orelhas, passeando em voltas pelo picadeiro, sob os aplausos de um animado público, não tivesse Uranos mudado o desfecho daquela cena.
Tão logo se pôs em pé com a moça em seu dorso, Uranos fez um decidido movimento com a cabeça e arremessou Samira em direção à carroceria que servia de camarim aos artistas e ficava estrategicamente instalada ao lado do palco. A moça que costumava cutucar sadicamente o elefante, fez um vôo seguido de queda, e do chão foi levada ao hospital. Ninguém ouviu o som de aplausos, mas Beatriz – assim como Samira, é claro! – passou a entender o significado de “memória de elefante”.