Os muitos circos do Trepinha

trepinha_intO mais antigo palhaço em atividade no Ceará tem 81 anos. José Gomes de Souza, o Trepinha, trabalha no Theatro José de Alencar – TJA desde o começo dos anos 70, oficialmente contratado pela Secretaria da Cultura do Estado.

Depois de viajar pelos brasis em circos como o Nerino (leia sobre Trepinha no livro “Circo Nerino”, de Roger Avanzi e de Verônica Tamaoki) e Garcia, de ter sua própria lona, ele chegou a Fortaleza a tempo de viver os mundos dos circos que ainda armavam lona no Mucuripe, então bairro de pescadores, e no Centro, o coração da cidade.

Sua iniciação no TJA nos remete à sua iniciação ao circo que, por sua vez, lembra as legiões de artistas célebres e anônimos que chegaram à lona por acaso e ali inventaram uma vida para si.

Trepinha conta que conheceu o alfaiate Clóvis Matias nas festas e brincadeiras de rua: “Seu Clóvis me levou para o Theatro José de Alencar, onde era porteiro, trabalhava n’O Mártir do Gólgota”. Na história do TJA, as temporadas d’A paixão de Cristo embaravalhavam os códigos estabelecidos, interferiam nas apartações entre o mundo da rua e o mundo do teatrão edificado. Multidões enchiam o teatro durante semanas. E traziam a vibração da rua, das rodas de artistas em praças, pátios de igreja, terreiros a céu aberto. Trepinha estava lá: no meio, no espaço entre um e outro. É uma espécie de zona de transição, de corredor de passagem, um dos lugares que Trepinha cultivou no Theatro José de Alencar.

Até hoje, ele fica à entrada do Theatro José de Alencar para convocar o público da rua a entrar no teatro. Um misto de mestre de cerimônia e articulador de público, um palhaço-rito de passagem: muitos dos que entram no teatro pela primeira vez, fazem a travessia a convite do mestre. Sob o sol, protegendo-se em dias de chuva, Trepinha deixa o presente mais denso ao atualizar no TJA uma experiência larga de tempo do encontro do artista com o público. Melhor: da passagem de transeunte, indivíduo, moradora, um dado da população, para o lugar de platéia. A passagem para uma experiência de coletivo, como são as experiências de platéia, de ser público.

Megafone na mão, ele inventa textos. Conhece o dia-a-dia do teatro e da rua, experimenta na pele as diferenças entre um e outro e trabalha com elas como possibilidade de encontro, de ligação. Sabe que um não existe sem o outro. Em um final de tarde de 2008, estava ele no saguão, com um olho na rua e outro no teatro, chamando os passantes para ver Flor de Obsessão, espetáculo-solo do ator e dramaturgo Ricardo Guilherme, a partir do universo de Nelson Rodrigues. Antes, programação oficial na mão, como sempre faz, Trepinha havia ido ao camarim para saber mais sobre o espetáculo. Conversou com o ator, dois mestres partilhando no dizer e no ouvir o universo amoroso-obsessivo do dramaturgo pernambucano. Ricardo Guilherme falou do solo e, sobretudo, de como Nelson Rodrigues escrevia sobre as paixões, sobre a experiência amorosa. Já na calçada do teatro, dizia Trepinha: “Entrem, entrem! Hoje, grande espetáculo do grande ator Ricardo Guilherme. Hoje, Flor de Obsessão, uma história de amor, carinho e chifre. Você não pode perder”.

 

De Bonito de Santa Fé para a cena
O menino José Gomes de Souza fugiu da casa do pai, em Bonito de Santa Fé, na Paraíba, no rastro de um circo que havia passado pela cidade. “Voltei de férias para casa, vindo do colégio interno, em outra cidade. Quando cheguei, meu pai me apresentou sua nova mulher. Foi assim que eu soube da morte da minha mãe”. Do desgosto, livrou-se embrenhando nos caminhos até chegar à lona, onde se ofereceu para ficar. “Fiz de tudo no circo: dava água para os animais, cuidava da limpeza, fui aprendendo”. Tinha 12 anos. Cinco anos depois, entrou em cena por acaso. “O palhaço Trepa Trepa ficou doente e o dono do circo lembrou do menino, eu… Aí o palhaço Trepinha não parou mais. Uso a mesma maquiagem até hoje”. No circo, inventou uma vida para si, só possível na partilha com o público. Aprendeu saltos, mágica, a tocar violão, sanfona, a cantar. Palhaço que é, virou também ladrão de mulher. “Eu era perigoso… Um dia, eu me vi numa delegacia com 14 mulheres”, conta sabendo das gargalhadas que vai provocar.

trepinha_int2Adora contar suas andanças. É um narrador de fala encantatória. Leva-nos para as muitas lonas onde trabalhou. Circos miúdos, circos sem coberta. Grandes caravanas de grandes circos. E os dois circos dos quais foi proprietário. Sua chegada ao Theatro José de Alencar; as viagens com o grupo Comédia Cearense, onde foi contra-regra e ator. Neste trecho, levanta-se e mostra como ficava em cena, quase duas horas parado, silencioso. O corpo de 81 anos esquece qualquer peso que o tempo possa ter lhe dado. É a aula que faz sempre como se faz um espetáculo: sabendo que é irrepetível, efêmera, que só existe no encontro com a platéia. Foi assim no encontro Anjos do Picadeiro em Salvador (2007); nos encontros com alunos do Curso Princípios Básicos de Teatro – CPBT, do TJA; no primeiro encontro de artes de rua e circo do Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza (2009): “Viví demais. Eu começava a vida de novo. Ô vida boa!”

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