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Fazer artístico e educação no circo de família

Graduada em Pedagogia pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia. Artigo apresentado durante o evento XIV Semana de Mobilização Científica (SEMOC) – UCSal em 2010. ISSN: 2177-272X.


INTRODUÇÃO

O presente artigo trata dos temas educação e circo enfocando o contexto do circo de família, direcionando-se mais especificamente a demonstrar a contribuição da arte para desenvolvimento físico e cognitivo daqueles que as pratica. O fazer artístico que permeia o cotidiano dos sujeitos que fazem parte dessa modalidade de circo gera influências no seu processo de educação. Com base nesta premissa, é realizada uma análise que busca demonstrar as relações existentes entre a arte e a educação e como a linguagem circense contribui para promover o aprimoramento de um conjunto de capacidades que são essenciais ao desenvolvimento de qualquer sujeito, além de auxiliar no rendimento escolar. Ao sublinhar que a prática artística envolve tanto a expressão de sentimentos quanto a comunicação, são tecidas algumas considerações sobre como esta prática propicia o desenvolvimento de capacidades ligadas ao campo cognitivo, evidenciando, por fim, como as técnicas circenses propiciam o desenvolvimento psicomotor.

 

ARTE E EDUCAÇÃO

 A prática das técnicas circenses nos circos de família permeia significativamente todas as atividades desenvolvidas e acontece tanto nos momentos lúdicos, no treino das técnicas, na composição dos números, como na apresentação de espetáculos. Sem dúvida, todos os procedimentos atrelados aos processos de formação do artista, de criação e de encenação do espetáculo acabam por criar estímulos que colaboram para o desenvolvimento cognitivo. Bock (2002, p. 98), ressalta que o desenvolvimento cognitivo se caracteriza pelo aparecimento gradual e contínuo de estruturas mentais que levam a um estado de equilíbrio superior, o qual envolve aspectos tanto da inteligência, da vida afetiva, quanto das relações sociais. Vale ressaltar, que o cognitivo se desenvolve numa relação de interdependência com os aspectos motor, emocional e social e que qualquer mudança ocorrida em um desses aspectos pode afetar o desenvolvimento dos outros.

O ensino das artes contribui para o desenvolvimento de processos de cognição que são aplicáveis não apenas ao âmbito artístico, mas também às outras áreas de conhecimento; no campo da educação ela poder ser utilizada como facilitadora da aprendizagem de conteúdos escolares. Por meio da arte, pode existir uma transferência de aprendizagem que mobiliza os processos cognitivos desde a imaginação até a intelecção.

Nesse sentido, tornam-se pertinentes as palavras de Barbosa (2006) quando relata a existência de pesquisas que demonstram a potencialidade da arte como eliciadora da aprendizagem, ressaltando que os sujeitos que realizam atividades artísticas apresentam melhores resultados também na escola formal.

Ainda segundo Barbosa (2006), potenciar a performance acadêmica é uma consequência do desenvolvimento da cognição, que é propiciado através da “metodologia triangular”: ver, fazer, contextualizar. Os três elementos fundamentais da “metodologia triangular”: a prática artística, que no circo se inicia ainda em tenra idade; a apreciação de uma obra de arte e a sua contextualização, encontram dentro do circo um espaço profícuo para que aconteçam de maneira conjunta, de forma quase inconsciente.

A apreciação da obra de arte no circo de família acontece de maneira continuada e compreende não apenas a apreciação dos espetáculos apresentados, mas inclui também os ensaios dos diferentes números dos integrantes do circo. No momento dos ensaios acontecem o confronto e a comparação entre diferentes estilos, posturas, mímicas, números e técnicas, que favorecem ao circense o desenvolvimento de um senso crítico não apenas do próprio desempenho, mas, também, em relação aos outros do grupo.

Outro aspecto interessante inerente à produção artística do circo de família é que, atuando num contexto itinerante, os circenses buscam manter uma relação com o público que assiste ao espetáculo. Por ser a interação com o público um componente fundamental do espetáculo circense a contextualização do espetáculo em suas vertentes artísticas e sociais se torna necessária e isso acontece a partir da observação das características sócio-culturais dos lugares em que o circo se instala.

Ressalta-se aqui que a prática artística, a apreciação e contextualização do espetáculo por parte dos circenses fazem de modo que todo o processo artístico auxilie na refinação de sentidos e na ampliação da imaginação. Sendo assim, as palavras de Barbosa (2006, p. 18) tornam-se relevantes por corroborar tal afirmação ao relatar que a cognição é o “processo através do qual o organismo se torna consciente do seu meio ambiente”, sendo a educação mediada pelo mundo em que se vive, pela cultura e pela linguagem.

Duarte Jr. (2000, p.39), recorrendo às teorias de Langer, afirma que a imaginação é o primeiro passo para a criação de qualquer expressão artística, assim como para a aquisição da linguagem, e que esta permite simbolizações e significados. O autor lembra que o próprio comportamento humano é simbólico, sendo que, por meio da palavra, o homem cria seus valores e significados “emprestando um sentido à vida”. Duarte (2000) evidencia ainda que a linguagem é um código simbólico formado por convenções, sendo também um instrumento através do qual o ser humano relaciona o seu eu com os eventos do mundo, através de uma interação entre o que se sente e o que se precisa expressar.

A linguagem utiliza símbolos para a expressão de sentimentos, existindo, em consequência disso, uma relação com o mundo da arte e, neste caso específico, do circo. Pelo fato de os símbolos linguísticos não poderem, por si só, expressar os sentimentos, é por meio da arte que se permite, de acordo com Langer (apud DUARTE Jr., 2000, p. 44), “a criação de formas perceptivas do sentimento humano”. Assim, os sujeitos do circo têm, através da prática circense e da apresentação do espetáculo, um lugar propício para a expressão, e, sendo o circo um espaço onde se utiliza predominantemente a linguagem corporal, o corpo do artista como um todo está envolvido nesse processo expressivo. 

Deve-se considerar, porém, que através da prática circense, não se estimula apenas a expressão, pois, de acordo com Eisner (2002), o ensino da arte permite a auto-expressão criadora, a solução criadora de problemas, a cultura visual, a disciplina, a preparação para o trabalho, o desenvolvimento cognitivo, além de potencializar o resultado escolar. Observa-se que esses elementos são estimulados também na educação dentro do circo, sendo que o circo tem a arte como base.

Barbosa (2006), ao discorrer sobre a arte-educação, argumenta que a arte mobiliza de processos mentais que possibilitam mudanças de comportamento de aprendizagem, organizando a mente para conhecer melhor tanto outras disciplinas quanto o mundo ao seu redor. 

Porém, deve-se constatar que as possibilidades oriundas da prática circense envolvem o desenvolvimento de capacidades motoras, assunto do próximo item.

 

MOVIMENTO E COGNIÇÃO

Tratar sobre o modo como a prática artística influencia no processo educacional leva, necessariamente, a considerar o caráter corporal das técnicas circenses, mostrando a relação existente entre fazer circo e aspectos educacionais ligados à psicomotricidade.

O estudo do movimento, de acordo com Fonseca (1996), é um instrumento importante para investigar o sujeito como ser integral, sendo que através do movimento se aprende, se comunica e se conhece o mundo. O movimento compreendido desta maneira faz ressaltar que através dele o sujeito desenvolve habilidades não apenas motoras, mas também cognitivas, emocionais e sociais. 

Para que fosse atribuído valor às habilidades motoras em âmbito educacional, contribuiu muito a visão de que as ações motoras são manifestações de uma forma particular de inteligência. Como apontado por Rodrigues (1997), foi Bloom, que, ao propor a “Taxonomia de Objetivos Educacionais”, deu espaço para o estudo do movimento, denominando-o de “domínio psicomotor”.

Um ponto de destaque, que pode ser relacionado com o mundo do circo, encontra-se na afirmação de Fonseca (1996, p. 9) quando aponta que “a originalidade peculiar do movimento não o caracteriza como mecanismo psíquico ou fisiológico, como consciente ou inconsciente, ele traduz e projeta o mundo a ação relativa a um sujeito”. Neste comentário, Fonseca (1996) permite apontar que, na prática circense, independentemente do fato que se esteja realizando um jogo, treino ou uma apresentação, o corpo como um todo está envolvido no processo. Na verdade, o sujeito faz a interpretação e a re-elaboração de um conjunto de significados simbólicos que, no circo de família, estão ligados tanto à imitação dos outros integrantes do circo quanto à interpretação do contexto mutável no qual ele está inserido. Nas artes circenses, o movimento não é fim em si mesmo, mas se traduz numa linguagem a qual instaura uma comunicação entre o corpo dos artistas e o público que os assiste.

Quando Fonseca (1996) marca a existência de uma intencionali­dade em qualquer movimento, o qual envolve a expressão e a personalidade do indivíduo, evidencia que ele se estrutura para ser uma antecipação da ação. No circo de família esse ponto se torna relevante porque, além do diálogo que relaciona artista e público no momento do espetáculo, envolvendo a expressão dos artistas, existe em toda a prática, incluindo o treino, a necessidade de desenvolver uma ação que se baseia na superação de limites e no desafio. O circo é o lugar onde o que parece impossível se torna possível, sendo a ação, que antecipa o resultado, a base para realização de cada técnica, o que envolve se preparar para desenvolver um salto mortal, andar no arame, manipular objetos sem deixá-los cair no chão.

Por outro lado, a própria história das técnicas circenses, sua universalidade e difusão global, trazem consigo uma herança cultural que mostra, através dos números, como o movimento é para um artista de circo a expressão de sua existência. O movimento, no circo, constitui a essência do artista, existindo uma relação com o envolvimento e com o pensamento. Especialmente na prática circense, parece fundamental que, assim como é inconcebível perceber o artista sem envolvimento, também não é possível concebê-lo sem movimento.

O movimento, que está na base da prática circense, demonstra a sua relevância quando Fonseca (1996, p. 11) aponta que “todas as reações de origem interoceptiva, proprioceptiva ou exteroceptiva, que constituem as premissas psicofisiológicas de toda a vida afetiva, são provocadas e desencadeadas pelo movimento”. Enfatiza-se aqui que, no circo, o aspecto afetivo está atrelado ao desenvolvimento das técnicas.

Em âmbito educacional, Wallon (1977), tratando sobre o processo de desenvolvimento da criança, marca a necessidade de motricidade, assim como da reciprocidade existente entre os movimentos, as atitudes e a sensibilidade, à acomodação perceptiva e mental.

No circo de família a criança diferencia o eu do outro tendo o seu próprio corpo como instrumento para interiorizar esse eu. Esse processo no circo acontece principalmente através do treino e da imitação dos outros artistas, colaborando para o desenvolvimento mental da criança, sendo cada movimento permeado de um caráter antropológico. Resulta claro que, num contexto como o do circo de família, no qual todos os integrantes compartilham conhecimentos ligados à prática de alguma técnica circense, essas técnicas são concebidas como modelo para a imitação. Através delas, a criança pode se aproximar e se diferenciar dos outros indivíduos do grupo, pois quanto mais vê o outro, mais o projeta em si mesma desenvolvendo, posteriormente um estilo particular.

Conforme reportado por Wallon (1977), o movimento não interfere apenas no desenvolvimento psíquico e na maneira pela qual a criança se relaciona com os outros, mas acaba influenciando o seu comportamento habitual. Assim sendo, para um sujeito que nasce num circo de família, as técnicas que ele vê praticar e que ele mesmo pratica acabam influenciado no seu comportamento como pessoa.

Observa-se, portanto, que o movimento permite alcançar a dissociação entre a adaptação motora e a representação simbólica, e proporciona a constituição de noções culturais; o próprio movimento está ligado à atividade psíquica e mental, a aspectos da inteligência, da afetividade e da percepção, e ao aprimoramento de capacidades fundamentais. A prática circense, com a sua peculiar exploração dos movimentos, até os que são considerados como limite no corpo do artista, torna-se um instrumento valioso para propiciar o desenvolvimento dos sujeitos.

Ao analisar a fundamentação teórica que Fonseca (1996) traz como suporte ao tratar sobre a psicomotricidade, percebe-se a relevância das contribuições de Piaget, o qual, ao estudar as relações existentes entre a motricidade e a percepção, indica que a motricidade interfere na inteligência antes mesmo da aquisição da linguagem, sendo que a coordenação dos sistemas sensório-motores se estabelece e se concretiza através do movimento.

Piaget (1956) deixa evidente que a organização dos sistemas sensório-motores cria o movimento, o qual, de maneira cumulativa, se desenvolve como consequência da assimilação dos estímulos exteriores. Porém, o autor não aprofunda em suas pesquisas as dinâmicas desses estímulos, observando apenas que eles têm papel relevante no processo de desenvolvimento. Relevante, porém, é que o movimento permite a assimilação, a qual advém como compreensão prática da ação. Piaget (1956) realça que a motricidade tem papel relevante na formação da imagem mental e, consequentemente, da linguagem, apresentando uma cadeia evolutiva que se constitui como movimento – linguagem – inteligência.

Sobre esse aspecto Wallon (1977) marca que não se devem separar estes três elementos ação, pensamento e linguagem, por estes se constituem em um todo indivisível. Independentemente dessa diferença teórica, torna-se relevante que a prática circense, baseada principalmente no movimento, proporciona o desenvolvimento do indivíduo, não apenas na construção da personalidade e nas operações propriamente ditas, mas também na aquisição da linguagem, nas suas interações com os outros e no desenvolvimento das funções cognitivas.

Deve-se lembrar que a prática circense propicia não apenas o desenvolvimento físico, mas envolve também o desenvolvimento de capacidades ligadas à inteligência. Destarte, é possível considerar que na educação de um sujeito é relevante o que é definido como “poder educacional das técnicas circenses”, amplamente discutido nas pesquisas de Hotier (2003), nas quais ele evidencia como a prática do circo pode influenciar no desenvolvimento de uma criança nos campos físico, psicológico e social. Deste modo, considera-se pertinente reportar como exemplo algumas das habilidades desenvolvidas através das técnicas circenses.

A acrobacia, entre as habilidades motoras, permite reforçar e condicionar a musculatura corpórea, o equilíbrio e a flexibilidade. Entre os aspectos psicossociais, desenvolve a capacidade do indivíduo de ter autonomia nas decisões, a atenção, a percepção e a capacidade de lidar com o risco. Sobre esse ponto, Hotier (2003) sublinha como as crianças, especialmente as mais novas, são mais levadas a afrontar o risco pelo fato de que se torna uma experiência estritamente ligada ao desenvolvimento das faculdades motoras e cognitivas.

Entre as outras técnicas, pode-se brevemente comentar sobre o equilibrismo que, envolvendo funambulismo, equilíbrio de objeto, antipodismo, etc., colabora para trabalhar a respiração, a concentração e a consciência interior. O malabarismo e toda manipulação de objeto desenvolvem capacidades ligadas com a visão periférica e a lateralidade.

Vale ressaltar que a maioria dos movimentos envolve a combinação de algumas ações, identificadas a seguir: flexão, movimento muscular de inclinação; movimento de retorno, que acontece após a realização da flexão muscular; e rotação, que envolve tanto movimentos de translação em que o corpo realiza movimentos de velocidade igual e direção constante e de oscilação em que ocorre a mudança de velocidade e direção. Dito isto, é possível constatar que no circo, através das técnicas, se aprende os conceitos de sentido, direção e velocidade e, outrossim, se desenvolve a força muscular, a capacidade de equilíbrio, a consciência corporal, espacial e temporal. Os movimentos, então, sendo realizados através da prática artística propiciam o desenvolvimento de aspectos psicológicos, fisiológicos e sociais.

Trata-se de capacidades que, além de trazer benefícios físicos para o corpo, têm relação com o campo cognitivo, auxiliando em múltiplos momentos, inclusive nas aulas da escola formal, nas quais são requeridas atenção, autonomia, raciocínio.

 

CONCLUSÃO

Observa-se que a prática circense, sob o ponto de vista da psicomotricidade, revela-se uma prática que disponibiliza experiências e o aprimoramento de capacidades que estão relacionadas com o desenvolvimento do indivíduo em múltiplos aspectos, incluindo o campo cognitivo. Essa consideração se torna importante, pois, dentro do circo de família, a aproximação com a prática das técnicas acontece desde muito cedo, e mantém uma continuidade, o colabora no desenvolvimento dos sujeitos que estão inseridos nesse contexto.

Em relação à arte como eliciadora da aprendizagem destaca-se que, por envolver a emoção, a criação, a expressão, a intelecção, além de auxiliar na aprendizagem de conteúdos escolares, ela também influencia no desenvolvimento cognitivo. A prática artística no circo inclui tanto fazer circo, assistir espetáculo de circo, quanto contextualizar esse espetáculo, e assim conclui-se que a linguagem circense, a qual propicia o desenvolvimento de várias capacidades no sujeito, contribui para o desenvolvimento no sujeito desde os aspectos físico, cognitivo ao psicossocial.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Ana Mae. Perspectiva para o novo milênio: ver, fazer, contextualizar. Revista Viver Mente e Cérebro, São Paulo, Segmento- Dueto, n.6, p.16-21, 2006.
BOCK, A. M. B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva, 2002.
DUARTE Jr., João Francisco.  Por que arte-educação? São Paulo: Papirus, 2000.
EISNER, Elliot. The arts and the creation of mind. New Haven: Yale University Press, 2002.
FONSECA, Vitor da. Psicomotricidade. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
HOTIER, Hugues.   La fonction educative du cirque. Paris: L’Harmattan, 2003.
PIAGET, Jean. Motricité, perception et intelligence. Enfance, Paris, 9, n. 2, p. 9-14. 1956.
RODRIGUES Jr., José Florêncio. A taxionomia de objetivos educacionais: um manual para o usuário. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.
WALLON, Henri.  La evolución psicológica del niño. Barcelona: Crítica Grijalbo, 1977.

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