Todo circo tradicional, desde o mais humilde ao mais rico e glamoroso, busca na medida do possível ser o mais profissional. Até mesmo os erros dentro do circo são programados para que tudo faça parte do show, com isso garantindo ao público uma apresentação sem traumas. Quando um artista “erra” em cena, ele repete o ato e logo em seguida supera seu limite, amenizando o impacto de sua “falha”, assim, ele cresce aos olhos da platéia e faz com que o espetáculo não pare. Essa falha, sempre é prevista, e todos do circo são conscientes dela, dessa forma, estão sempre atentos a qualquer movimento e prontos para a ação.
Desde criança, o circense é treinado em diversas habilidades, mas o que predomina, na maioria das vezes, é a técnica que é transmitida de pai para filho ou de mãe para filha. O sinônimo de artista de circo é superação, porque, logo, nos seus primeiros anos de vida é colocado nas diversas experiências das técnicas existentes no circo, que vai desde saltar, jogar objetos para o ar (malabarismo), voar, deslocamentos de membros do corpo com o auxilio da flexibilidade e elasticidade dos músculos e tendões, equilibra-se em diversas formas e estruturas. Depois de ter passado por essas habilidades, pintam seu rosto e o jogam no centro do picadeiro, circundado por pessoas que pagaram para assistir ao espetáculo e que serão as testemunhas do nascimento ou da morte de um palhaço. Assim, nos relata Waldemar Seyssel, o famoso palhaço Arrelia em sua autobiografia de mesmo nome publicada em 1997.
“[…] e uma noite ele (pai) e meus dois irmãos mais velhos me pegaram quando o espetáculo já estava começando, e me levaram para o camarim dos artistas. Me vestiram e me pintaram de palhaço: calça larga, sapatões que pareciam mais umas lanchas, uma bengala de meia tonelada, uma fita amarrada no topete do cabelo, um nariz abatatado, e me jogaram no picadeiro. Caí de mau jeito e me machuquei; fiquei gemendo, e a platéia rindo[…]”
O dia-a-dia circense é muito incomum para as demais pessoas e segue regras que mudam a cada cidade. Buscando ser mais genérico para que possam compreender esse atípico artístico, inicio este relato pelo viés mais próximo da normalidade possível. De manhã logo cedo, antes do café da manhã, a criança circense se levanta da cama faz um pequeno aquecimento corporal e corre por 30 minutos em volta do circo, toma banho e, só, assim se dirige ao café da manhã. Às 7 horas, deve começar seu treinamento de malabares, aquecendo com uma bolinha, duas e até três para que possa iniciar de fato com as claves juntamente com os truques já aprendidos. Dentro desse aquecimento, a criança deve repetir os mesmos movimentos 500 vezes sem errar, porque, caso erre, ainda na contagem, tudo tem que ser reiniciado do zero, para que seus movimentos fiquem precisos, não importando em que parte da contagem esteja, no número 03 ou nos 499, se errou tem que recomeçar. Entre os circenses, o malabarismo é conhecido como a arte ingrata, por nunca está bom e nunca tem um fim. Um malabarista sabe começar e nunca saberá acabar. Além do mais, é uma técnica que ele irá passar a vida treinando e durante o momento de apresentar, algum motivo físico ou mental pode interferir ao ponto dele não conseguir manipular a bola de uma mão para outra. Técnica e habilidade em um momento podem está em perfeita harmonia e, um segundo depois, não… E, tudo que o artista passou treinando, não valeu de nada! Esse é o verdadeiro malabarismo!
O que o malabarista faz quando esse tipo de situação acontece? Ele só tem duas opções, uma é desistir para o resto da vida e ficar frustrado. E outra, é continuar tentando para que um dia ele possa bater a mão no peito, fazer uma grande reverência ao público em forma de agradecimento aos aplausos e assim levantar a cabeça e falar para si
“Eu consegui… valeu apena treinar todos esses dias só por esse momento”. E, esse momento, irá se repetir todos os dias… Agora, voltando a nossa criança artista, segue a narrativa!
E, a criança fica treinando até 11 horas, faz a lição da escola, toma banho, almoça e vai para a escola. Por volta das 17 horas, ela chega da escola, como toda criança, vai ao banho novamente, em seguida janta e vai se arrumar para o espetáculo de logo mais a noite. E quando o show termina, naquela noite, e o público retorna as suas casas, nosso pequeno artista troca de roupa para subir ao trapézio, pois essa é a melhor hora de aprender a voar. E, assim, segue a rotina dentro do circo…
Dentro do circo existe uma névoa de preconceito por parte de uma pequena parcela da sociedade, que é de notório saber, e também histórico, faz parte do DNA circense, se assim posso me expressar. Para a maioria das pessoas que vivem no circo esse fato é o estopim para dar início ao processo de satisfazer o público, e oferecer o que há de melhor, desde o momento da compra do ingresso até o agradecimento final do porteiro quando a ultima pessoa deixa o interior do circo, e as luzes são apagadas. O espectador é a pessoa mais importante para todos os circenses, desde o batedor de estaca (pião) ao dono. Todos que vivem no circo sabem e reconhecem o grande valor de cada pessoa que sai do conforto de suas casas, para se deleitar por alguns momentos no circo. Toda estrutura circular, o show, tudo é feito pensando no bem-estar da platéia, que é composta por famílias, tudo é organizado para satisfazer a todos, crianças, jovens e adultos, é uma comunhão familiar e, sendo assim, é compreendido que estes poucos momentos pode ser, em alguns casos, e, realmente, são, os únicos para que a família possa está reunida e feliz.
e é por isso que estão sempre de coração aberto para receber quem chega. Lógico, que existem momentos em que há divergências entre alguns integrantes, mas nada que faça um circense atender de mau humor ou até mesmo pisar no picadeiro – solo sagrado para todos os circenses no mundo – sem vontade e ânimo de se apresentar. Destratar, atender de mau humor ou fazer qualquer ação que desencante uma pessoa é tido como um dos maiores crimes que um circense pode cometer dentro do circo.
Se prestarmos atenção nas ações de um artista, no momento em que ele pisa dentro do picadeiro, perceberemos que ele entra com os olhos brilhantes, sorriso estampado no rosto e braços bem abertos, simbolicamente, está nos comunicando que está se entregando de corpo e alma. De fato, seja qual for o segmento, habilidade ou técnica circense, o artista está sempre colocando sua vida em risco, um deslize na concentração é fatal e, ali será a última vez que fez seu número. A entrega é total, e assim, sempre, deve ser. Tudo é muito bem preparado. A preocupação vai desde a roupa, maquiagem, sapato, material de trabalho até como agradecer. Tudo deve está, harmonicamente, entrelaçado e combinando, movimentos com a música, a limpeza deve ser vista e compreendida em todos os sentidos, por isso os artistas são bonitos, brilhosos com o intuito de encantar até mesmo eles próprios.
Uma companhia circense é formada por várias pessoas e todas elas têm uma função importante, e sabem que fazem parte de um conjunto de ações para que o espetáculo seja um sucesso diário. Cada um é consciente do que tem de fazer e à hora certa, nada pode atrasar porque essa é a magia do circo, de se modificar a todos os momentos. Se o circo está limpo, lona esticada, pipoca quentinha e a música tocando…
As luzes acesas da bilheteria… Abertos os portões, e o dono do circo na entrada para receber o público, com um belo “Boa Noite, seja bem vindo!” Pode ter certeza que o espetáculo já vai começar…