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Jesus Cristo e o Centurião

MIRANDA, Caiubi – “Jesus Cristo e o Centurial”. In: GGN – jornal de todos os Brasis,27 de novembro de 2014.

Só quem passou a infância no interior sabe ou tem ideia do que seja um circo-teatro. Na verdade, eu nem sei dizer se o circo-teatro ainda existe hoje em dia mas era muito popular na minha adolescência – ou seja: 50 anos atrás. Sobretudo em Ouro Fino, a cidade natal de minha família onde invariavelmente eu ia passar minhas férias e não perdia sequer uma apresentação do circo-teatro.

O circo-teatro era, fisicamente, tal qual um circo de verdade. Cobertura de lona, arquibancadas de taboas de madeira, coxias e um tablado central, também de madeira. A diferença entre o circo tradicional e o circo teatro é que, no primeiro, o espaço destina-se à exibição de animais adestrados, palhaços, mágicos, contorcionistas e malabaristas; no circo teatro o espaço presta-se à encenação de uma peça. Que pode ser uma comédia com palhaços, pastelões e um enredo absolutamente non sense, até trágicas histórias escritas, na maioria das vezes, pelo próprio dono do circo.

A última encenação de circo teatro que vi foi, obviamente, em Ouro Fino, e como estávamos nos feriados da semana santa, o tema e o título da peça eram “Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”.  O enredo seguia rigorosamente o roteiro bíblico, começando com a traição de Judas, a prisão de Jesus, a subida ao calvário, a crucificação e terminava com a ressurreição em grande estilo, com fumaça colorida pela luz de spots.

Como sempre na maioria dos circos-teatros, o elenco era formado por “profissionais” do próprio circo e que o acompanhavam pela sua peregrinação no interior, e por amadores que desempenhava os papéis secundários e eram normalmente recrutados na própria localidade e treinados pelos atores profissionais. Naquela encenação da Paixão e Morte eram atores profissionais o Arlindo Pereira, o Lilico, que fazia o papel de Jesus Cristo e cinco dos 12 apóstolos, incluindo Judas. Os demais eram todos amadores recrutados nas lojas comerciais e armarinhos da cidade. Praticamente não tinham fala ou, quando tinham, limita-se a uma ou duas frases.

A apresentação naquela noite era a última em Ouro Fino e tinha tudo para ser uma apresentação tranquila, já que os amadores estavam na sexta apresentação e atuavam praticamente como profissionais.

O que ninguém contava era com o assanhamento da Maria Madalena, representada pela Leninha, um morenaço que trabalhava no Bar do Ádio e que gostava de provocar os frequentadores, apesar de noiva de casamento marcado com o Estáquio, caixa do supermercado Três Poderes e que fazia o papel de centurião. Não é que a Leninha havia se engraçado com Jesus Cristo, o Lilico, e viviam se agarrando pelos cantos quando o Eustáquio não estava presente. E não era uma agarração discreta, era uma agarração cheia de gemidos e “uis” que todos no elenco viam.

Todos menos o Eustáquio que não percebia os chifres que estava levando, já que sempre chegava depois de iniciada a apresentação, sua participação na peça era da metade prá frente.

Aquele dia, no entanto, por alguma razão que desconhecemos, alguém ligou anonimamente para o supermercado e fez uma denúncia minuciosa da pouca vergonha entre Maria Madalena e Jesus Cristo, Leninha e Lilico. O anônimo denunciante deu detalhes das sem-vergonhices e descaradamente, em meio a gargalhadas, chamou Eustáquio de corno manso.

Eustáquio não podia acreditar naquilo, mas eram tantos detalhes, difícil duvidar. Precisava tirar aquilo a limpo. Falou com o gerente, saiu mais cedo do supermercado e foi direto apara o circo teatro, chegando 10 minutos antes de começar a função. Não teve que fazer nenhum esforço: logo de cara deparou com Lilico e Leninha agarrados como se fossem um só corpo, ela gemendo como num orgasmo, um gemido que ele conhecia tanto…

Sem ser notado, ele se afastou em silêncio, o peito doendo… não podia acreditar naquilo. meu Deus, o que ia fazer agora? Afastou-se em silêncio e ficou parado no canto não pensando em nada, só sentindo a raiva crescendo, crescendo…

Aquela era a última apresentação da temporada e a casa estava cheia. Logo vieram chamá-lo: que se preparasse, em cinco minutos entraria em cena. Seu papel era simples, tinha nenhuma fala, era o centurião tinha apenas que simular chicotear Jesus enquanto ele subia o monte do calvário com a cruz.

Mais alguns minutos, deram-lhe o chicote na mão e o empurraram para o tablado para que fizesse o seu papel. Foi então que viu sua oportunidade de vingança. Sem pensar duas vezes gritou tome seu filho da puta sem vergonha, que agora você vai aprender. E desceu com toda violência o chicote nas costas de Jesus Cristo, o sem vergonha do Lilico. Uma, duas, três, quatro vezes o chicote desceu com violência nas costas de Lilico. Assustou-se a princípio mas logo percebeu que não era nenhum engano, nenhuma brincadeira. Largou a cruz no tablado e partiu para cima do centurião, os dois se atracaram e rolaram pelo chão, trocando impropérios.

A plateia, pega de surpresa no início, agora caia na gargalhada ao ver que a briga era de verdade e que, pela primeira vez na história do cristianismo, Jesus se rebelara contra o centurião…

Ninguém sabe o que aconteceu depois mas aquela trupe nunca mais voltou a Ouro Fino.

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