LIMA, Cléo – Crônicas de uma dra. borboleta : (re)inventando a Saúde pelo afeto. [recurso eletrônico] Porto Alegre (RS): Editora Rede UNIDA, 2015. ( Série Arte Popular, Cultura e Poesia).
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Prefácio Emerson Elias Merhy
Prefácio para Borboleta, o que muito me honra Em um longo cine-documentário, Utopia e Barbárie, Silvio Tendler vai nos apresentando muitas das mais dramáticas experiências humanas vividas no século XX. Narra os enormes genocídios que várias apostas de muitos coletivos produziram.
A morte dos mais de 60 milhões de pessoas na Segunda Grande Guerra, os milhões de Cambojanos eliminados pelo Kmer Vermelho, os milhões de vítimas das práticas colonialistas de várias nações europeias, consideradas civilizadas, as práticas de genocídios das ditaduras latino americanas.
Os efeitos mais perversos das práticas civilizatórias da democracia americana e da construção socialista soviética. A matança terrorista do Estado de Israel.
Por aí, vai e vai e vai. Temos a impressão que por trás de grandes apostas de construção de certos campos identitários de muitos grupos sociais, sempre há um rastro de barbárie em relação a um outro que aí não se enquadra.
Os negros nos EUA, no Brasil. Os palestinos. Os muçulmanos que não pertencem aos jihadistas. Os judeus no nazismo. Os camponeses na Rússia. Os vietnamitas. Os marroquinos. Os Argelinos. E por aí, vai e vai.
Vai nos revelando como tem sido frustrante a aventura humana nesses últimos tempos. Como o capitalismo tem gerado modos de viver incompatíveis com a produção da vida, se alimentando da morte diária do trabalhador, do que não se enquadra, do que se considera uma ameaça.
Vamos ficando encurralados se tentarmos pensar onde tudo isso vai dar.
Mas, …
Outras imagens vão aparecendo a cada narrativa dessa imensa barbárie. Ali, onde é gerada, aparece não se sabe muito de onde, nem como, humanos que se portam e se arriscam exatamente ao contrário da barbárie.
Há solidariedade com o outro no front de uma das mais duras guerras entre ingleses e alemães. Judeus que se unem a palestinos e procuram construir uma outra convivência.
Pessoas que morrem para tentar salvar um outro do qual nem o nome sabem.
Em uma cena, um Palhaço está atuando com crianças e adultos em plena Faixa de Gaza. Ao ser entrevistado revela ser um judeu que como vários outros está ali se expondo ao risco de morte em uma aposta de que só a paz faz sentido.
Só a vida do outro plenamente reconhecida é o que interessa.
Que conectar com o momento do sofrimento do outro e poder abrir com uma chave para desmontá-lo é tudo que vale a pena ser vivido.
Que sua vida só vale a pena porque a do outro vale a pena.
Temos a sensação que no meio das grandes barbáries, nascem por si amores novos, amores pelo outro, sem pieguice, sem ingenuidade.
Ouvir um relato dessas vivências, sem saber que elas são de fato vidas vividas que estão ali em risco permanente, até parece ser uma historinha meio boba. Mas, ao ver a força daquilo que efetivamente está acontecendo, aquele momento do encontro com o outro na mais lamentável vulnerabilidade e como uma nova força se produz nesse ato amoroso incondicional, nosso corpo sofre efeitos de que nada daquilo que está sendo contado é um ato piegas.
Compreendemos, talvez, o que é de fato um ato político dos mais radicais.
Quantos desses milhões de opositores da barbárie, ali no cotidiano do seu acontecer, já foram eliminados, e eles continuam a aparecer e a nascer no mais fértil dos encontros com o sofrimento com o outro, seja por que razão for, como se cuidar de si passasse pelo cuidar do outro.
Cuidar do outro é cuidar de si.
Fica em nós, na aproximação com essas histórias de vidas, com essas “ingênuas” narrativas dessas vivências corajosas, do recolhimento das experiências que elas possam conter, a noção da força da fraqueza. A potência do amor pelo outro.
Esse outro que nos cria, como um divino.
E, isso, permite pensarmos: de onde vem essas pessoas, do que são feitas, porque fazem isso.
Ficamos sem respostas e essas não importam. Não importam as explicações para além delas como verdadeiros acontecimentos na vida dos outros e dos outros nelas. Não importam as análises.
Importa que existem. Que nascem sem explicações, mas que estão aí nascendo aos milhões no mesmo instante que milhões são eliminados.
Estão aí aparecendo, se expondo, correndo riscos, desafiando poderes constituídos de várias ordens. Sejam
os policiais dos órgãos de repressão do Estado, sejam os militantes de grupos violentos, sejam instituições que praticam a submissão do outro, como a medicina.
Essas pessoas nascem ali na Faixa de Gaza, em um campo de concentração, em uma favela, no corredor de um hospital, na sala de espera de um Pronto-Socorro.
Em todos os lugares, nos mais inusitados.
Dessa matéria bruta esse livro de contação de causos é feito.
Dessa matéria de vida esses causos tratam.
Borboleta é uma, é cem, é mil, é milhões.
Quase todos nós somos Borboleta.
Querida amiga, obrigado por ter me permitido essa escrita.
Tudo de mim em você.
Te amo.
Obrigado por existirem, me esperançam.
Emerson Elias Merhy
Janeiro, 2015